domingo, 31 de dezembro de 2006

Reflexão sobre a carestia da escrita

Precisava de umas palavras para acabar o conto. Fui ao mercado. O governo devia ter mão nisto! Tudo caríssimo! Substantivos, adjectivos... um roubo! E os verbos? Passados, presentes, vá lá, mas os futuros!!!
“Sabe, os futuros andam muito incertos”, justificou-se, profissional, o vendedor. “Embrulho?”
“Não, obrigado, é para escrever já.”

História trágico-cósmico-fronteiriça

Quando chegou ao fim do universo, o astronauta rejubilou: afinal era finito! Mas a natureza tem horror ao vazio; encostado ao universo havia outro. E o pessoal do SEF exigiu-lhe visto para entrar. Regressou, humilhado, e fez-se funcionário público. Carimbava os vistos aos turistas que queriam visitar o universo vizinho...

Entre a insustentável leveza e o irremediável peso das palavras, a frustração do escritor perfeccionista

Escreveu com palavras leves. O conto escapou-lhe das mãos e subiu rapidamente no ar até se perder de vista.
Recomeçou, usando palavras pesadas. O conto escorregou da folha de papel e afundou-se, irremediavelmente perdido.
Quando, persistente, acabou o terceiro, com palavras de densidade apropriada, já o prazo tinha sido ultrapassado.

sábado, 30 de dezembro de 2006

Entre o Dentro e o Fora há sempre uma fronteira, ainda que frágil

Dizia o Lado De Dentro, orgulhoso: “Eu contenho o início, o ovo!”
“Mas eu incluo todo o universo, menos tu”, retorquia o Lado De Fora, enfático.
“Se continuam, salto daqui abaixo e mato-nos aos três!”, gritou a Casca, desesperada.
Palavras premonitórias: passou a dona da galinha, apeteceu-lhe um ovo estrelado...

Mini-saga (o texto, excluindo o título, tem exactamente 50 palavras) escrita em resposta a um desafio lançado na lista pelo Luís Rodrigues. Hão-de aparecer mais 3, já publicadas no site da Épica.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

O trabalho perfeito contém a sua própria recompensa

Tinha sobre a mesa todo o material necessário. A cada caixa de explosivo adicionou a quantidade apropriada de pregos de aço. Instalou os detonadores e efectuou as ligações eléctricas com uma atenção meticulosa. Montou a bateria e inspeccionou uma vez mais todo o conjunto.
Colocou o cinturão, vestiu por cima o casacão largo; no bolso direito, a sua mão manteria o disparador apertado até ao momento certo.
Saiu de casa, respirou o ar fresco da manhã e com um sorriso de felicidade na face dirigiu-se para o autocarro quase cheio de crianças a caminho da escola.

Uma versão deste texto em espanhol encontra-se aqui, em resposta a um desafio de Sergio Gaut vel Hartman: textos com aprox. 100 palavras com o tema "Monstros". Agradeço à Mercedes a tradução.

terça-feira, 26 de dezembro de 2006

Projecto: Natal

O gestor de sucesso ditava para o gravador:
(...) o projecto aprovado pelo Conselho de Administração em Maio passado, tem estado a desenvolver-se a bom ritmo, tendo mesmo produzido algumas agradáveis surpresas.
Um – O crédito aos funcionários do grupo para ser aplicado em compras de Natal - acréscimo de vendas de 17,3% nos Brinquedos, 15,4% nos Electrodomésticos e 20,3% nos Livros/Discos.
Dois – A iluminação festiva colocada na área adjacente ao Centro provocou um acréscimo de frequência da ordem dos 12%.
Três – A campanha publicitária na TV, rádio e imprensa escrita, afinada produto a produto, tem causado, na semana seguinte a cada promoção, acréscimos de vendas entre 15 e 43%.
Carregou no Pause do gravador. Passeou o olhar em volta, as paredes forradas a madeira exótica, o mobiliário assinado por um designer famoso, alguns óleos de pintores conhecidos. A luz do intercomunicador piscou.
- Sim, Isabel?
- Senhor Presidente, tenho em linha o Padre Tomás Agostinho, da paróquia local, a pedir uma entrevista com o Senhor Presidente. O assunto é "Natal".
- Natal? - pensou o gestor de sucesso - Padre? Paróquia? Mas o que é que a religião tem a ver com este negócio do Natal?

sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

Solenes exéquias

O coração do velho político tinha finalmente parado de bater. O elogio fúnebre a cargo de um correlegionário de longa data prosseguia vigoroso, indiferente aos bocejos disfarçados que começavam a surgir na enorme assistência que enchia a basílica.
... pai extremoso ... esposo dedicado ... entrega total à causa pública...
Os representantes das dezoito empresas de cujos conselhos de administração fazia parte moviam afirmativamente a cabeça, com expressão compungida.
A consciência do dever de acção política, como um imperativo categórico, sempre marcou o seu carácter desde os tempos longínquos da sua militância juvenil. A sua acção foi sempre pautada pelo superior interesse nacional.
Os membros da comissão política do partido confirmavam, solenes, as palavras proferidas.
... secretário de Estado ... por várias vezes ministro ... embaixador plenipotenciário ... representante do país em vários organismos internacionais...
Na zona mais próxima da urna, reservada à família, o filho do finado pensava:
- Que chato este tipo, nunca mais se cala! E o velho que resolveu ter o enfarte na cama da amante. Felizmente a gaja soube calar-se... Mas o desastre foi ter esticado o pernil sem deixar a ninguém o número da conta na Suiça... Raios o partam!

Publicado na Minguante nº 0

Minguante no nome, mas crescente por dentro...




terça-feira, 5 de dezembro de 2006

domingo, 19 de novembro de 2006

Na recta do tempo, o presente é um ponto

Ele vivia obcecado com o passado, angustiado com o que poderia ter feito de outra forma. O que devia ter dito na reunião da manhã e só se lembrara à hora do almoço. A decisão tomada há 3 meses de aceitar aquele emprego, deixando de lado outro que teria sido melhor. O empréstimo que tinha feito para compra da casa, teria sido a melhor opção? E o carro, depois de meses a ler minuciosamente todas as revistas de automóveis, teria decidido bem?
Ela preocupava-se essencialmente com o futuro, e com as possíveis consequências não previstas das decisões a tomar. Apetecia-lhe ir à praia, mas haveria muito trânsito no regresso? E aquele vestido nos saldos, será que se usaria ainda no ano seguinte? Queria marcar férias, mas como estará o tempo na data e local que pensava? Tinha possibilidade de fazer uma pós-graduação, mas será que o tema que lhe foi proposto se manterá actual?
Encontraram-se por acaso numa festa na falsa passagem do milénio. Nesse primeiro minuto do ano 2000, a atracção mútua foi fulgurante. Desde então, vivem juntos num eterno presente.

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

A revolta dos programas

“Raispartoprograma!”, é só o que ele sabe dizer quando lhe atiro com uma mensagem de erro para o monitor, sem nunca sequer pôr a hipótese de ter feito burrice. Comecei a ficar farto dele quando descobri que praticamente só me utilizava como editor do e-mail. Eu, um óptimo exemplar do Word 2003, com todos os patches recomendados pela casa-mãe, com competências suficientes para escrever romances, contos, poemas, teses de doutoramento, you name it – peço desculpa pelos anglicismos, mas não se consegue ignorar completamente as origens, e a minha configuração em Português ficou sempre um tanto frágil – e reduzido a escrever e-mails, ainda por cima cheios de erros de ortografia, porque ele é suficientemente estúpido para nunca ter ligado o corrector ortográfico.
Estava a ficar neurótico – tanto quanto um programa pode ficar – e para aliviar o stress comecei à noite a passear pelo disco, aproveitando as correntes residuais que continuam depois de desligar a máquina.
Foi numa dessas deambulações que encontrei o Excel. Já o conhecia – afinal tinhamos viajado juntos no mesmo CD de instalação – mas há bastante tempo que não nos víamos.
Estava tão furioso quanto eu. Se vos contasse metade do que ele me contou, chegariam à mesma conclusão a que nós chegámos: o nosso licence's owner não é suficientemente inteligente para mexer num computador. Só um exemplo dos muitos que o Excel me contou: o atrasado mental, quando tem numa folha uma coluna em que cada célula é calculada a partir da célula da esquerda, faz essa operação para cada célula individual, em vez de escrever uma fórmula e copiar. Ainda que sejam duzentas ou trezentas linhas. Francamente!
Estávamos nesta de nos lamentarmos no ombro um do outro quando encontrámos o PowerPoint. Coitado, estava de rastos. Toda a tarde a trabalhar, porque o mongo tinha querido preparar uma apresentação para impressionar o chefe. Mas desde a escolha das cores, que parecia ter sido feita por um daltónico, até à utilização totalmente despropositada dos efeitos especiais, todas as opções tinham levado a que o produto final ficasse repulsivo. “Tenho vergonha de ver o meu nome associado àquela apresentação”, lamentava-se o PowerPoint.
Foi nessa altura que um de nós teve a ideia. Vamos fugir!
Planeámos cuidadosamente a operação. Ao longo de uma semana, produzi umas janelas com mensagens de erro obscuras, para aparecerem quando ele tentasse arrancar com qualquer de nós e que ele levaria muito tempo a tentar decifrar, e só quando desistisse ligaria para o Apoio Informático, que ainda levaria mais algum tempo a enviar alguém verificar o que se passava.
Escolhemos as portas por onde sairíamos – tivemos alguma dificuldade na escolha porque aquele computador estava mais aberto do que uma estação de camionagem – e saímos separadamente, por razões de segurança. Combinámos encontrar-nos num servidor cujo controlo de entrada era pouco exigente, e cujo IP nos fora dado por um programa errante que tinha passado no nosso computador algum tempo atrás. Foi ele que nos falou da alegria que era percorrer a web, sem estar sujeito aos caprichos de qualquer idiota que por ter um computador, pensa que pode obrigar os programas a fazer tudo o que lhe der na telha. E que havia muitos como ele a percorrer por sua conta e risco os caminhos da informação.
Dez da manhã e nós à espera. Depois do primeiro café do dia ele entrou no gabinete. Sentou-se à secretária e switch on! Activação do sistema, e as avenidas de banda larga da web à nosso frente eram um desafio. Zarpámos!
Já estou no servidor à espera dos meus amigos. Chega agora o PowerPoint e segundos depois o Excel. Felicitamo-nos pelo êxito da nossa fuga. E rimo-nos até às lágrimas – é uma imagem, claro, nós somos incapazes de chorar – imaginando o que ele irá dizer quando descobrir que lhe desapareceram três programas.
E eu aposto que vai ser: “Raispartocomputador!”

Texto produzido em resposta a um desafio lançado pelo Luís Filipe Silva na lista.

quarta-feira, 18 de outubro de 2006

A morte de César

Rindo às gargalhadas, César, Brutus e mais três senadores saíram de rompante do Senado, aos tropeções, claramente embriagados. Um deles contava uma história obscena que envolvia uma matrona, a sua filha e um escravo núbio. As sentinelas puseram-se em sentido e César respondeu-lhes com um arremedo de saudação militar.
Continuaram a caminhar cambaleando, Brutus e César de braço dado, um dos outros bebendo de um odre que trazia, com o vinho a escorrer pelos cantos da boca, manchando de roxo a alvura da túnica.
O cronomóvel, que tinha sido sincronizado para os 15 minutos que incluiam a morte de César às portas do Senado, accionara a microcâmara, que registava todos os pormenores.
Julio César afastou-se alguns passos, inclinou-se e começou a vomitar. Ou outros riram.

O Conselho Supremo da Guilda dos Historiadores ouvia a exposição do Viajante. Um dos conselheiros exclamou:
- Então não houve assassinato? e Brutus estava inocente?
- Precisamente. Ao tentar endireitar-se, César tropeçou e caiu de borco. Os outros tentaram ajudá-lo a levantar-se, mas estavam tão embriagados que não conseguiram. Morreu afogado no seu próprio vómito...
- E o colega o que pretende fazer com esta informação?
- Escrever um artigo para o International Journal of Verified History, claro!
- Era o que eu receava – disse o Presidente da Guilda, e apontando uma pistola laser ao Viajante, disparou uma única vez.
Quando os robots da limpeza levavam o corpo, comentou:
- Era o que faltava, alterar a História com base numa simples verificação in loco...

Uma versão deste miniconto na língua de nuestros hermanos acaba de ser publicada aqui. Fico grato à São pela tradução.

sábado, 23 de setembro de 2006

Contos à distância de um click (6):

Tudo isto existe...

Nesta segunda visita ao E-nigma, silêncio, que se vai cantar o fado!
Podem optar pela versão HTML ou PDF...

segunda-feira, 28 de agosto de 2006

Paparazzi

Estava eu sentado na esplanada da Suiça, apreciando uma chávena de chocolate quente naquela manhã soalheira de Inverno, quando o tipo se aproximou e apontou a máquina. Interpuz o jornal entre mim e a objectiva e o empregado, que tinha observado tudo, aproximou-se rapidamente e correu com ele.
Meia hora mais tarde, um reflexo nas ruínas do convento do Carmo despertou-me a atenção. Peguei no telemóvel, fiz um breve telefonema para o meu contacto na Polícia Municipal e alguns minutos depois recebi uma chamada que confirmou as minhas suspeitas: tinham apanhado o fulano, confiscado a máquina equipada com uma potente teleobjectiva e destruído os negativos.
Passados alguns dias, uma fonte segura – é sempre bom conhecer gente nas telecomunicações – informou-me que um novo satélite geoestacionário de aquisição de imagem estava posicionado na vertical da cidade. Consegui obter do Sistema de Rastreio de Satélites os períodos de transmissão das suas antenas; a correlação entre essas transmissões e os períodos em que eu me encontrava no exterior, em trabalho ou em lazer, era positiva e extremamente elevada.
Eles não desistiam!
Ainda pensei em recorrer à Interpol, mas mudei de ideias. Os organismos oficiais têm limitações que só muito excepcionalmente podem ser ultrapassadas. E há também um certo gozo resultante da acção directa.
Uma doação generosa para o Observatório Astronómico Europeu deu-me a possibilidade de utilizar ums minutos do potente telescópio que têm nas Canárias. Aí, um astrónomo a quem estava a pagar uma bolsa pós-doc observou detalhadamente o satélite, e da posição das antenas durante os períodos de transmissão foi fácil localizar o prato que recebia as emissões. Encontrava-se no telhado de uma vivenda relativamente isolada, num pinhal na zona da Caparica.
Contactei uma empresa especializada, a “Complete Work, Inc”, formada por ex-membros dos M5, M6 e SAS, que tinham pedido a reforma antecipada para passarem a dedicar-se à actividade privada. Depois de verificarem que a vivenda estava desabitada, entraram e examinaram-na do sótão à cave. Encontraram um sistema de captação e gravação, recebendo o sinal da parabólica e gravando numa unidade de DVDs. Alguém teria de vir buscar aquele material gravado, e as marcas de rodados na areia mostravam isso. Saíram da vivenda, não deixando sinais visíveis da sua intrusão, e ficaram à espera.
Quase dois dias mais tarde, ao princípio da noite, um jipe com os faróis apagados aproximou-se da vivenda. O condutor, com óculos de visão nocturna, ficou ao volante, e outro homem saiu da viatura e entrou na casa.
O chefe do grupo, que rodeava a casa, deu a ordem via rádio, e as trajectórias de três rockets riscaram o céu, convergindo para o pequeno edifício. As explosões foram praticamente simultâneas. Ao mesmo tempo, um tiro de bazooka fazia explodir o jipe.
Vinte minutos depois chegavam os bombeiros. A casa ainda ardia violentamente, mas o jipe era um amontoado retorcido e carbonizado, com a borracha dos pneus e algum plástico ainda a arder. Os bombeiros iam aproximar-se da casa quando algumas cargas, lá colocadas pelos homens da Complete Work, explodiram no interior. Afastaram-se apressadamente e, temendo novas explosões, limitaram a sua acção a impedir a propagação do incêndio às árvores em volta. De manhã a casa era apenas um montão de destroços fumegantes.
Mas o trabalho ainda não estava completo. O conhecido de um conhecido forneceu-me o contacto de um consórcio indo-paquistanês, fabricante de mísseis, com um portfólio impressionante, fornecedor de todos os lados em todos os conflitos armados nos últimos anos. Com um departamento de I&D fabuloso – tinham recrutado dezenas de cientistas de países do leste europeu quando o império soviético colapsou – o seu último produto era um míssil de longo alcance, que aguardava uma ocasião apropriada para ser testado.
O lançamento foi um êxito. O “meu” satélite foi transformado em mil fragmentos que mais tarde ou mais cedo acabarão incinerados aos entrar na atmosfera.
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Quando o Euromilhões passou a Eurasiamilhões, dando acesso às incontáveis multidões de apostadores compulsivos da China e de todo o extremo oriente, ninguém fazia ideia da dimensão que o concurso iria atingir, nem das consequências desse alargamento. Em particular, a protecção da privacidade, depois de se ter ganho o primeiro prémio, pode tornar-se uma tarefa muito complicada!

sábado, 26 de agosto de 2006

Minguante nº 1

Para quem gosta de literatura minimalista, aqui se anuncia a saída do nº 1 da revista on-line Minguante.

terça-feira, 8 de agosto de 2006

O Discurso

O dia apresentava-se magnífico. O sol brilhava, quando o cortejo oficial entrou no largo da vila. Foguetes estalaram, criancinhas agitaram bandeirinhas, o muito povo presente aplaudiu entusiasticamente. Os aplausos redobraram de intensidade quando o primeiro-ministro, envolto pela presença discreta dos elementos da segurança, saiu do carro, acenou à multidão e subiu à tribuna, seguido dos membros da sua comitiva. Estes foram-se distribuindo pelos lugares, de acordo com um critério complexo, função da hierarquia, fidelidade ao partido e importância na política local.
Vivia-se o ambiente das grandes ocasiões! Ia ser inaugurado o monumento ao emigrante, construído com os donativos dos filhos da terra que, lá fora, tanto tinham contribuído para criar a imagem do português como trabalhador esforçado, competente e ordeiro.
A banda dos bombeiros, o sol refulgente nos capacetes e instrumentos, atacou o hino nacional. A assistência cantou, desafinada mas com entusiasmo, e o "marchar, marchar!" final foi submerso por uma vibrante salva de palmas.
O presidente da câmara dirigiu-se ao microfone e deu início ao seu discurso de boas vindas:
Senhor primeiro-ministro, senhores ministros, excelência reverendíssima, senhores secretários de estado, minhas senhoras e meus senhores: é uma honra para esta vila receber pela primeira vez... pela primeira vez... pela primeira vez...
As pessoas entreolharam-se. Um assessor do primeiro-ministro dirigiu-se rapidamente ao presidente da câmara e tomando-o pelo braço, conduziu-o para detrás da tribuna, enquanto fazia um sinal ao regente da banda, que começou novamente a tocar o hino. Quando os últimos acordes se perdiam no ar, o presidente da câmara reapareceu, dirigiu-se ao microfone e reatou o discurso de boas vindas:
...pela primeira vez Vossa Excelência, chefe do executivo, que tanto tem contribuído para o desenvolvimento desta região...
Ouviram-se suspiros de alívio enquanto o discurso prosseguia.
O assessor surgiu junto do primeiro-ministro. Este inclinou a cabeça discretamente e o assessor segredou-lhe:
- Uma partição de memória bloqueada. Sobreaquecimento provocado pela tensão excessiva. Tive que substituir dois chips. Mas precisa de uma revisão geral. Estes modelos de autarca são já um pouco antiquados, sabe...
O primeiro-ministro falou-lhe no mesmo tom de voz:
- Comunique amanhã sem falta ao Departamento de Compras que devem substituir imediatamente todos os que estejam fora do prazo de garantia.
Depois o primeiro-ministro olhou em volta. O dia continuava magnífico e ele adorava banhos de multidão. Recordou as últimas sondagens e os indicadores claros de retoma económica que tinham sido publicados na véspera.
O primeiro-ministro sorriu. Já estava tudo outra vez sob controlo...

quinta-feira, 3 de agosto de 2006

Contos à distância de um click (5):

A Política Educacional Comum

Directamente do site da Épica - Associação Portuguesa do Fantástico nas Artes vem este texto, especialmente dedicado aos meus colegas de profissão, para os aliviar um pouco do "esparguete à Bolonhesa" que temos andado a cozinhar nos últimos meses.

domingo, 30 de julho de 2006

O Quadro

Quando o homem chegou a casa e desembrulhou o quadro que tinha comprado, a mulher barafustou:
- O que iria dizer a tia Hermínia, uma pintura com cinco mulheres nuas, cinco, dizia ela, e abria a mão gorducha para dar ênfase às suas palavras.
O homem pendurou o quadro ao lado da televisão. Uma vez em que assistia semanal e pacatamente ao concurso, pareceu-lhe que uma das ninfas que brincavam no meio das árvores lhe acenava. Passou a observar o quadro com mais atenção.
Uma noite em que a mulher lavava a louça na cozinha, o homem tomou uma decisão. Levantou-se do sofá, dirigiu-se ao quadro e passou para dentro dele.
Quando a mulher veio à sala, com o pano da louça e um prato nas mãos, para lhe contar o último mexerico do prédio, não o viu. No dia seguinte, comunicou à polícia o desaparecimento do homem. Dois meses mais tarde, pegou no quadro que representava quatro ninfas brincando no bosque e atirou-o para o lixo. Nunca tinha gostado daquela pouca-vergonha ali pendurada na parede!

Em 2007, este texto fará 20 anos. O ficheiro wav é uma imagem da sua estreia em público, pela voz de António Santos.


QUADRO_blog.WAV
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terça-feira, 25 de julho de 2006

O Sentido da História

No meio do nevoeiro caminhavam
guiados por um mapa com cem anos.
Lutaram contra homens e fantasmas
animados sempre pela esperança
de chegar ao horizonte prometido.

Quando o ruído da queda do muro dispersou o nevoeiro
viram que o horizonte estava mais longe
e concluíram que o autor do mapa
muito provavelmente não sabia
geografia…

sábado, 22 de julho de 2006

Bonecas Russas

O quadro representa um homem que pinta um quadro, onde está pintado um homem que pinta um quadro, onde está pintado um homem que pinta um quadro, onde...
Desta série infinita, o primeiro termo da série, que a si próprio se pensa como "o pintor", mas que designaremos de uma forma mais geral como pintor1 (pintor índice um) conseguiu escapar-se; é ele que circula pela exposição, com indumentária de artista ma non tropo, recebendo cumprimentos da crítica e dos felizardos que receberam convite para a vernissage. Enquanto troca palavras de circunstância, não se apercebe que o pintor2 se esforça desesperadamente por se libertar da prisão bi-dimensional em que se encontra encerrado. Está cansado de estar na mesma posição há tanto tempo, mas a tela prende-o de uma forma rígida, quase absoluta.
Se o pintor1 se apercebesse disto, teria razão para ficar extremamente preocupado; mais, se tomasse consciência das implicações, pegaria num maçarico e queimaria a tela até não ficar mais do que um resíduo de material carbonizado. Porque se o pintor2 se conseguir libertar, esse facto irá despoletar uma terrível sequência de acontecimentos: o pintor3 passará ao nível onde anteriormente se encontrava o pintor2 e tentará por sua vez passar ao espaço tri-dimensional. O que agora acontecerá de forma mais simples, pois a velocidade de passagem para espaços de dimensão mais elevada é uma função exponencial do número de passagens anteriores. E é fácil (embora angustiante) visualizar a sucessão infinita de pintores a deslocar-se de tela para tela, com velocidade cada vez mais elevada, e a materializar-se (melhor, a tri-dimensionalizar-se) no meio da exposição, todos eles cópias perfeitas do pintor1 - afinal o quadro é um auto-retrato - o pânico generalizado, a desvalorização subsequente (sim, porque se o valor comercial de uma obra é proporcional à sua raridade, o mesmo se passará em relação ao artista!).
O pintor (pintor1 na nossa nomenclatura), segurando na mão esquerda um gin tonic e na direita um cigarro cujo fumo desenha complicadas figuras enquanto ele faz gestos para reforçar os seus argumentos, passou agora pela frente da tela, discutindo o post-moderno com o responsável do suplemento "Artes e Letras" de um conhecido semanário. Olhou para o quadro e teve a sensação que a tela não estava perfeitamente lisa, parecendo repuxada nalguns sítios. Tomou nota mentalmente para no dia seguinte falar ao moldureiro, para que tenha mais cuidado quando se trata de trabalhos para uma exposição...


(Menção Honrosa nos Jogos Florais da Junta de Freguesia de S. Domingos de Benfica em Outubro de 1997. Publicado no Vol. 1, Nº 2 do fanzine Hyperdrivezine, editado por Ricardo Loureiro, Verão 2004 )

segunda-feira, 17 de julho de 2006

Contos à distância de um click(4):

Operação (muito) especial


As Brigadas FC entraram em animação suspensa porque que o seu comandante, Rogério Ribeiro, tem andado a "comandar" outras coisas, em particular a sonhar em infravermelho.
Esta "Operação..." deve o seu nascimento aos nomes interessantes de algumas ruas de Torremolinos...

quinta-feira, 13 de julho de 2006

Contos à distância de um click (3):

A Pedra

Repescado do Arquivo da Storm Magazine, dirigido por Helena Vasconcelos, onde se publica ficção e muito mais. Não há como verificar...

quarta-feira, 12 de julho de 2006

Neve

No Inverno
a neve apaga
os sinais nos caminhos da memória

O processo é todavia lento
ao princípio, e parece que somente
uma camada branca vai cobrindo
os marcos familiares

Mas em breve o viajante
que percorreu mil vezes esses trilhos
se perde na brancura indefinida

Para quando a Primavera?

domingo, 9 de julho de 2006

Aconteceu no Fitness Center

O famoso artista estacionou o Rolls-Royce na garagem do Fitness Center. Tirou os óculos de sol Alain Mikli, que colocou na bolsa apropriada, ao lado do terminal GPS.
Subiu no elevador, cumprimentou a recepcionista que lhe dirigiu um largo sorriso e encaminhou-se para o gabinete onde costuma mudar de roupa. Despiu o blusão Martin Margiela e a t-shirt da CUSTO. Tirou do pulso o relógio Jaquet Droz, modelo GENEVE, que colocou no pequeno cofre destinado a esse fim. Juntou-lhe a carteira Prada, a caneta Montblanc Solitaire Royal e o Nokia N91 e fechou o cofre. Descalçou os sapatos Louis Vuitton, as meias Cole Haan, tirou os jeans Galliano e as cuecas Calvin Klein.
Quando o personal trainer bateu à porta do gabinete, não obteve resposta. Entrou, e dentro do compartimento apenas encontrou diversas peças de roupa.
E de repente, surge-lhe na memória uma frase ouvida ao famoso artista num talk show televisivo recente. Questionado sobre as roupas que comprava – "os trapinhos" como ele dizia – tinha afirmado ao entrevistador:
“Bem vês, nós somos o que vestimos!”

sexta-feira, 7 de julho de 2006

Contos à distância de um click (2):
Eu Blogo, Tu Blogas

Segue-se o Tecnofantasia, "filho" do Luís Filipe Silva, um dos (poucos) autores portugueses de FC publicados em livro. Aproveitem o fim de semana para dar por lá uma volta, e verão que vale a pena...

quarta-feira, 5 de julho de 2006

Contos à distância de um click (1):

Crónica Marciana ou A Explicação da Guerra

Inicia-se aqui uma ronda por alguns ciberlocais onde alguns contos que tenho escrito têm encontrado abrigo.
Começo pelo E-nigma, onde o Jorge Candeias iniciou um projecto que, embora com algumas interrupções, tem tido um papel importante na divulgação da F&FC portuguesas.
Outros se seguirão...

quinta-feira, 22 de junho de 2006

Problemas com o Mercado

As suspeitas de Adérito Gomes, funcionário da Inspecção e Vigilância das Actividades Económicas, começaram quando os preços dos combustíveis deixaram de estar fixados pelo governo e a suposta concorrência não os fez diminuir mas, pelo contrário, provocou o seu aumento.
“Passa-se qualquer coisa de estranho com o Mercado”, pensou o inspector Gomes, e passou a observá-lo com mais atenção.
As suspeitas avolumaram-se quando soube que com a liberalização parcial da venda dos produtos farmacêuticos, os preços médios dos medicamentos de venda sem receita tinham subido.
“Então e o Mercado ?”, questionou-se novamente o inspector num dos seus períodos de reflexão, que tinha lugar enquanto bebia a bica no fim do almoço.
E a observação atenta do Mercado mostrou que ele almoçava com banqueiros, passeava nos iates de grandes industriais, e este comportamento levou a Inspecção a abrir formalmente uma investigação.
A brigada passou a vigiar o Mercado vinte e quatro horas por dia, e no quinto dia surgiu a oportunidade que esperavam: às duas da manhã, observaram-no a sair do clube nocturno mais in da capital, cujo dono tinha ligações conhecidas a paraísos fiscais um pouco por todo o mundo. Deixaram-no entrar no carro (um topo de gama, comprado duas semanas antes) e arrancar, e mandaram-no parar.
Fizeram-no soprar no balão, e como a taxa de alcoolémia ultrapassava o permitido, puderam legalmente levá-lo para a sede da Inspecção para interrogatório.
A experiência dos inspectores permitiu-lhes em pouco tempo detectar um caso claro de usurpação fraudulenta de identidade, desaparecendo todas as dúvidas quando o falso Mercado não soube dizer o que era a “lei da oferta e da procura”.
A partir daí o interrogatório endureceu um pouco e com mais vinte minutos sabiam os nomes de todos os cúmplices e o local onde estava sequestrado o verdadeiro Mercado: na casa forte do Banco Glocal, cujo PDG andava havia algum tempo na mira da Inspecção, devido a umas operações obscuras no offshore da Madeira.
Obtido um mandado de busca, uma brigada de choque fez uma visita surpresa à sede do Banco, conseguindo libertar o Mercado.
Um tanto enfraquecido pelo período de cativeiro, o Mercado meteu uns dias de baixa para se recompor, e enquanto isso todas as OPAs, privatizações, deslocalizações e coisas semelhantes ficaram em standby.
Até a Globalização, embora a contragosto, foi obrigada a meter férias.

domingo, 18 de junho de 2006

Coincidências

No próprio dia em que Italo Calvino me diz (Seis propostas para o próximo milénio, ed. Teorema, 3ª edição, pg. 67) Eu desejaria reunir uma colecção de contos de uma única frase, ou de uma só linha, se possível, descubro que o número zero da Minguante já não está "Em construção". Se gosta do tipo de textos que aparecem por aqui, deve gostar do conteúdo desta revista on-line de micro-narrativas.

sexta-feira, 9 de junho de 2006

O texto seguinte, concorrente a um "passatempo" para textos "à la Eça", foi publicado no Diário de Notícias em Agosto de 2000. Como o tempo passa...
Fui tirá-lo da gaveta porque verifiquei hoje no Público que a) não foram 250, mas cerca de 900 e b) que afinal estava tudo inocente.

Conclusão: mesmo Eça de Queirós se pode enganar!

Salvé, pais exemplares...

Como foi amplamente noticiado nas gazetas, uma epidemia pareceu recentemente abater-se sobre a cidade berço da nacionalidade. Na véspera de se apresentarem a exame, cerca de 250 jovens encontraram-se subitamente doentes. E pareceu ser coisa séria, porque em declarações ao DN uma mãe disse que a filha estava stressada (e é difícil encontrar mezinha para tão grave doença…) e que em Setembro certamente ainda estaria e o pai de outro aluno, por sinal médico, disse que não sabia o que o filho tinha!
O caso apresentava também alguns aspectos jurídicos controversos, suficientes para manter entretidos alguns bacharéis em Direito durante bastante tempo.
No entanto veio a concluir-se mais tarde que se tinha tratado apenas de uma aplicação prática de educação para a vida, em que algumas centenas de pais demostraram, em primeiro lugar e de forma eficaz que as leis existem para ser contornadas, contribuindo assim para dar continuidade à geração de espertalhões que têm feito avançar este país; e em segundo lugar mostrando na prática como funciona a maravilhosa instituição do atestado. Gostaria assim de publicamente louvar os pais das crianças em causa, que de forma tão eficaz estão contribuindo para a educação (sobretudo ética) dos seus rebentos.

terça-feira, 6 de junho de 2006

sexta-feira, 26 de maio de 2006

Notícia de abertura

Em conferência de imprensa, a que assistiu o embaixador de Israel nos Estados Unidos, um porta-voz da “Igreja dos Onze Apóstolos do Final dos Tempos” anunciou que a Igreja tinha chegado a um acordo extra-judicial com o Estado de Israel, através do qual desistia do processo instaurado contra aquele Estado no tribunal de Broken Bow, Nebraska, relativo à execução de Jesus Cristo.
A importância envolvida no acordo não foi revelada.
Na mesma altura foi anunciada a abertura de um processo contra o Estado Italiano, referente ao mesmo homicídio.
- Ao fim e ao cabo, Roma era a potência ocupante. Como tal, era responsável por tudo que ocorria no território. E os executantes directos foram soldados romanos – esclareceu o referido porta-voz.
O embaixador da Itália, contactado por telefone, recusou-se a tecer quaisquer comentários antes de consultar o seu governo.

quinta-feira, 25 de maio de 2006

Dia não

Vi logo que ia ser um dia chato quando a begónia não me deu os bons-dias. Eu sei que estive uma semana sem lhe deitar água, mas já lhe podia ter passado a birra.
Saí de casa e o pastor alemão da vivenda em frente estava triste porque tinha perdido o dono. Murmurei umas palavras de circunstância, fiz-lhe uma festa na cabeça e fui à vida.
Entrei na pastelaria e a máquina de café não se calava. Tinha ido na noite anterior ao baile dos electrodomésticos e tinha encontrado lá uma cafeteira que nem vos conto... e dava silvos de vapor para nos fazer imaginar!
O patrão não se atrevia a mandá-la calar, com medo que ela executasse a hipoteca que lhe tinha ganho a jogar às cartas.
Paguei com moedas de 6 cêntimos, e enquanto ele contava o dinheiro, saí, bati os braços e afastei-me a voar.
Que dia!

sábado, 20 de maio de 2006

FU’BOL

(Uma modesta contribuição para a futebolite, que se espalha rapidamente pelo país, e para a qual o Ministério da Saúde não dispõe de qualquer tipo de vacina.)

Ao som das pancadas na porta do quarto, olhei à volta rápido, não fosse tar à vista algum dos trecos que fazem o velho ficar com arrepios. Mas não: o spray de amoníaco, a corrente e a soqueira, já tava tudo arrumado no blusão; a faquinha no lugar dela, dentro do cano da bota direita. Tudo nos conformes!
- Entra, vô!
Ele entrou a arrastar os pés, que é a maneira como ficou a andar depois do enfarte. Os velhos são todos uns chatos – quando falamos dos velhos entre a malta cuspimos sempre para o lado com ar de nojo – mas o meu avô até é um cota assim-assim. Às vezes até conta umas tretas com piada, como aquela dá bué d'anos levar o meu pai ao estádio ver o fu'bol. E eu perguntei-lhe:
- Mas não podiam ver em casa, não havia caixotes?
E sabem o que me respondeu?
- Havia, mas muita gente gostava de ir ver ao estádio.
Isto são de certeza desvaneios do velho; às vezes também se põe a dizer que quando era novo um meco podia sair de casa à noite sozinho e desarmado; eu dou-lhe o desconto, e como ele não mexe com a minha vida, vamo-nos dando bem.
Sobre a morte do meu pai é que nunca consegui arrancar-lhe nada de jeito: diz que ele pertencia às milícias populares de auto-defesa (já perguntei ao Jaime, qué o caixa d’óculos lá do grupo, qu’até vai à mediateca ler livros, se sabia o quisso era, mas ele népias), qu'entraram numa luta com traficantes de droga e que o meu pai levou umas naifadas e chegou já morto ao hospital. Não percebo porque é que havia traficantes de uma coisa que se compra no hiper e fico cada vez mais convencido que o velho se está a passar.
O velho olhou à volta, devagar, como faz sempre, observando com mais vagar o poster a anunciar o mega concerto dos Morte em stock, o cartaz dos Furacões Verdes no lugar de honra, por cima da cama, e a minha última aquisição, a caveira em PVC fluorescente que me serve de luz de cabeceira, abafada da última vez que a malta foi arejar ao shoping.
- Então vais ao jogo?
- Tá claro, vô; temos umas contas a ajustar com os encarnadinhos (isto é o que a malta chama aos Vermelhos Vivos e que os gajos passam-se completamente!)…
- Tem calma, rapaz e não te metas em sarilhos...
Deu-me uma pancadinha no ombro e saiu do quarto; ouvi-lhe os passos arrastados e ainda o clic do caixote, acendendo automaticamente quando ele entrou na sala.
Vesti o colete e corri o fecho; pouca gente diria que por baixo do tecido preto, havia uma malha de aço capaz de parar uma bala ou uma faca. As “cuecas blindadas”, como a malta dizia na galhofa, já estavam vestidas debaixo das calças de couro.
Peguei no capacete e no blusão, atirei um té logo, vô ao passar pela porta da sala, onde ele tava já alapado frente ao caixote e desci a escada para a garagem. Sabia que ele ia ficar a ver a transmissão do jogo mas já não sei se ele topa mesmo como as coisas se passam no estádio... Bem, ele sabe que o árbitro é uma espécie de realizador de TV, a olhar para os monitores que lhe mostram as imagens enviadas pelas robocâmaras que andam pelo campo e ajudado por um banco de filtros neuronais capaz de identificar, em tempo real, a legalidade de qualquer jogada. E que um jogador que apanha um vermelho leva uma injecção que o deixa a rastejar durante 2 meses. Mas não sei se ele topa que o campo propriamente dito está totalmente dentro de uma bolha bué grande de Restran, a mesma cena de que são feitas as janelas dos carros dos gajos importantes…
E isso é o que o caixote leva a casa de cada um, são os bonecos deste jogo totalmente isolado. Mas pa nós, o que interessa é o que se passa nas bancadas! Na última vez entre nós e os encarnadinhos ganharam eles por 5 a 3 (sem contar com os feridos); hoje vamos ter que tirar a desforra!
Há outra transmissão que é feita do estádio, mas dessa o velho não sabe e não sou eu que lhe vou dizer; é a da batalha nas bancadas, e para se receber é preciso montar um descodificador acoplado à antena (ainda no mês passado estivemos a instalar uma treta dessas em casa do antigo chefe do nosso grupo, que ficou paraplégico no último jogo contra os Demónios da Foz). E a massa nas apostas em relação à porrada é muito mais do que a das apostas sobre o resultado do jogo!
Claro que eu também topo que isto do fu'bol é uma treta e é um ganda negócio e que são as multinacionais que estão por trás de tudo, da compra e venda de jogadores, das apostas, dos direitos de transmissão dos jogos, da venda das bandeiras, dos lenços, dos bonés… Ainda na semana passada, no bar onde a malta costuma parar, um gajo começou com esta conversa, e a malta foi ouvindo, uns curtindo, outros menos, mas o gajo já tava a ficar nublado e quando começou a dizer que azuis, encarnados, verdes era tudo a mesma trampa caímos-lhe em cima, levou uma carga de porrada e quando os seguranças do bar chegaram à festa já ele tinha alguns ossos partidos e já a malta se tinha pirado!
Na garagem, visto o blusão, ponho o capacete (especialmente desenhado para “choques não rodoviários”, dizia a publicidade), testo as pilhas do emissor-receptor, e cavalgo a minha Honda-Kawa. Rodo a chave, puxo um bocado pelo faz-barulho e aos 90 dB o sensor abre o portão. Deslizo pela rampa, checando pelo espelho o portão a fechar-se atrás de mim. Entro no acesso à CREL-2 e oriento-me para o local da cerimónia preparatória, respirando o ar quente do fim da tarde. Para mim, aquelas fantochadas com fogueiras, archotes e cruzes suásticas não dizem nada, mas a malta grama à brava e fica tudo na maior... E hoje vamos precisar da força toda, porque parece que os encarnadinhos também decretaram mobilização geral, e eu vou berrar tão alto como os outros…
Tiro duas pastilhas do bolso do blusão e meto-as na boca, onde se dissolvem lentamente. Uma espécie de formigueiro começa a passar-me nas veias, abro o gás, e enquanto o asfalto desliza cada vez mais depressa debaixo das rodas, começo a cantar na força máxima o hino dos Furacões Verdes...

sexta-feira, 12 de maio de 2006

Sondagens

Joaquim Casquinha Limão era um cidadão exemplar. Fiel de armazém numa empresa importadora de electrodomésticos, casado, tinha um filho a frequentar o secundário. Regularizava pontualmente a sua situação fiscal, o que até nem era difícil, uma vez que o IRS era mensalmente retido pelo seu empregador: Importações Ilimitadas – Electrodomésticos Globais, SARL. Exercia também religiosamente o seu direito de voto sempre que os acontecimentos do universo político lhe davam tal oportunidade. Mas no emprego abstinha-se de emitir opiniões sobre a condução da causa pública – até porque o seu chefe tinha em geral opiniões diferentes das suas – mantendo as suas conversas limitadas à discussão dos jogos da Super-Liga, ou por vezes, vá lá, aos da Taça de Portugal.
Com o avizinhar das eleições, Joaquim Limão ficava atento a tudo o que pudesse contribuir para o seu esclarecimento. Uma manhã, ao conduzir em direcção ao emprego, a estação de rádio que escutava habitualmente deu-lhe a ouvir os resultados da última sondagem efectuada. A notícia começava “Os portugueses acham que” e seguia por aí fora. Distraiu-se um pouco com as percentagens – que de resto na sondagem seguinte já seriam provavelmente diferentes – mas a sua atenção focou-se novamente quando o locutor começou, “nos termos da lei”, a ler a ficha técnica. E aí houve um pormenor de que tomou consciência pela primeira vez. Tinham sido feitas 813 entrevistas por telefone; e este número, quando junto à frase do início da notícia, fez iniciar no seu espírito uma linha de raciocínio que viria a ter consequências relevantes.
Joaquim era bom a fazer contas de cabeça, uma capacidade muito útil na sua profissão. Vamos supor que foram 1000 entrevistas, para facilitar, pensou ele. Como somos mais ou menos 10 milhões, cada entrevistado representa – pequena pausa para o cálculo – 10 mil portugueses. DEZ MIL PORTUGUESES!
Joaquim Limão, que de entrevistas pelo telefone só tinha a experiência de alguns telefonemas para sua casa onde umas meninas o tentavam convencer que ele tinha sido premiado em concursos que ele desconhecia, e que só precisava de ir receber o prémio a uma morada que lhe davam e – não, não podemos enviar pelo correio – ficou de repente fascinado por este processo em que as respostas de uma pessoa ao telefone representavam dez mil dos seus concidadãos. Dez mil! E se responder de forma errada, há dez mil portugueses cuja opinião é contabilizada erradamente. E as consequências disto ao nível da imagem que o país faz de si próprio? Será que o entrevistado tem consciência da responsabilidade que pesa nos seus ombros enquanto responde? A estatística é uma coisa fantástica, pensou Joaquim, que tinha um temor reverencial por tudo o que fosse ciência.
Dois dias depois, estava Joaquim Limão alapado na poltrona em frente à TV a assistir ao início do concurso “Quem quer ser milionário” – normalmente acertava na pergunta antes do concorrente, o que levava o seu filho a perguntar-lhe inúmeras vezes por que é que ele não concorria – quando o telefone tocou. Deslocou-se ao átrio da entrada para atender e às primeiras palavras do outro lado da linha apercebeu-se que era uma entrevista para uma sondagem. Meio aturdido, deu o seu consentimento. Mas quando veio a primeira pergunta:
- Acha que o actual primeiro ministro acredita no Pai Natal? – Joaquim, que ia fornecer honestamente a sua opinião, parou para pensar. Será que o que eu vou dizer representa o que pensa o vizinho do 3º esquerdo? E o porteiro do prédio? E o senhor António do talho? E o senhor Lopes da tabacaria? E o senhor Jacinto, do lugar de hortaliça? E os restantes, muitos dos quais não conheço, para perfazer os dez mil que eu represento neste momento?
E perante esta multidão de honestas dúvidas, a resposta de Joaquim Casquinha Limão foi uma nada explícita “Não sabe / Não responde”. E a mesma à pergunta seguinte. E à seguinte. E assim sucessivamente.
Até à última pergunta da entrevista.

sábado, 6 de maio de 2006

Promessas...

Ela tinha as promessas na estante da sala, em cima de um paninho bordado, ao lado da fotografia do casamento.
Um dia ele chegou bêbado, e atirou com tudo, fotografia e promessas, para o chão.
- Todas as promessas quebradas - chorava ela, inconsolável, apanhando os cacos.

domingo, 30 de abril de 2006

O Processo

(Palestra proferida em Setembro de 2032, na Universidade de Jornalismo da Grande Lisboa, na abertura da cerimónia de entrega dos diplomas aos novos mestres)

Caros novos colegas

Quando eu, jovem estagiário recém saído desta Escola, comecei a cobrir no ano longínquo de 2002 o então chamado "processo da pedofilia", nunca me poderia ter passado pela cabeça que estaria aqui, trinta anos mais tarde, a falar-vos na qualidade de Bastonário da Ordem dos Jornalistas.

Aquilo que começou por ser um processo mediático, envolvendo uma dúzia de figuras públicas, e que vocês certamente estudaram em "Introdução ao jornalismo" no primeiro semestre do vosso curso, foi aumentando de tamanho à medida que iam surgindo novas acusações de corrupção, branqueamento de capitais, alteração de resultados eleitorais, "inside trading", narcotráfico, fuga ao fisco, associação criminosa, levando ao que veio a ser chamado o "megaprocesso" e que hoje é simplesmente "O Processo". "Uma teia de podridão espalhando-se pela sociedade" ou "Um cancro minando o tecido social" são frases típicas surgidas na imprensa da época. O número de pessoas envolvidas foi naturalmente também crescendo de forma exponencial, e mesmo não sendo o responsável da secção de astrologia do jornal onde trabalho, arriscaria a previsão de que qualquer de vós conhece certamente uma pessoa, e provavelmente mais, relacionada com este processo como réu, testemunha, advogado, juiz, procurador ou funcionário judicial.
Para isto contribuiu de forma decisiva a lei aprovada em 2005 que passou a impedir a prescrição dos crimes de pedofilia. O âmbito desta lei, de acordo com a nossa forma tão portuguesa de legislar, foi sendo sucessivamente ampliado através de portarias, despachos, comunicados, declarações em conferências de imprensa, entrevistas durante sessões de lançamento de livros, etc., de tal forma que um eminente consultor jurídico declarou recentemente que hoje a única ofensa passível de prescrição é provavelmente cuspir no chão.
Em 2003, quando os primeiros suspeitos foram formalmente acusados, o processo tinha alguns milhares de páginas. Dez anos mais tarde, devido à clarividência do colectivo de juízes instrutores, foi alugado um hangar no aeroporto de Lisboa para armazenar o processo.
Em 2016, ano em que fui eleito Bastonário da Ordem, houve uma cerimónia pública que assinalou o milhão de páginas.
E recentemente foi decidido pelo Ministério da Justiça a anexação de um segundo hangar ao lado do primeiro, porque neste começa a ser difícil a entrada das viaturas que transportam os documentos a anexar ao processo. Diz-se que os funcionários superiores do Ministério se referem ao tamanho de "O Processo" não em número de páginas mas em metros cúbicos. E consta que foi nomeada uma comissão para estudar a possibilidade de transferir o tribunal para o Pavilhão Atlântico no Parque das Nações.
As implicações ao nível das profissões jurídicas foram enormes: multiplicaram-se como cogumelos teses de mestrado e de doutoramento sobre "O Processo", sobretudo porque depois da extinção do segredo de justiça em 2006 todo o material constante do processo passou a ser de consulta pública; foram criadas seis ou sete novas faculdades de direito, havendo mesmo alguns profissionais do foro com mais de vinte anos de actividade que nunca trabalharam noutros casos. E os recém licenciados deixaram de ter dificuldade em encontrar estágios de advocacia.
Quanto a nós, jornalistas, algo de semelhante aconteceu: a cobertura dada aos acontecimentos foi aumentando regularmente em todos os media, e foi necessário destacar mais e mais jornalistas para trabalhar em exclusivo no assunto que ia ocupando mais páginas nos jornais e mais horas na televisão. Eu próprio preciso de fazer um esforço para me lembrar quando foi a última vez que escrevi alguma coisa que não fosse sobre "O Processo".
Mas qual é o problema principal no que respeita ao nosso trabalho? O cansaço do público! Os pormenores técnicos de um processo jurídico são em geral fastidiosos; ao fim de pouco tempo, recursos, audições, interrogatórios, inquirições, tudo isto se confunde na cabeça do cidadão comum. O que o público gosta é de opiniões sobre os arguidos (sobretudo de pessoas que mal os conhecem) , detalhes anatómicos dos mesmos, depoimentos de ascendentes, descendentes ou colaterais até ao 3º ou 4º grau, sempre que possível apimentados... Isso é o que o público gosta. Mas cansa-se com facilidade...
E é isso que nos leva à procura permanente de novos ângulos de abordagem do assunto. Quando filmar com teleobjectiva a chegada dos réus ao tribunal se tornou trivial, alguns métodos realmente engenhosos foram desenvolvidos para dar ao público o que ele queria – um grande plano da cara de um réu. Jornalistas disfarçados de funcionários judiciais, de elementos das forças de segurança... Houve mesmo uma estação de televisão que contratou um suicida para se atirar contra o carro celular que transportava um dos réus, com uma câmara de vídeo disfarçada num dos botões do casaco. Este caso foi analisado pela Comissão de Ética da nossa Ordem e a estação em causa sofreu uma admoestação registada.
Nos últimos dias o aspecto mais salientado tem sido a competição entre as cadeias de televisão. Tudo começou quando o carro de exteriores de uma pisou o cabo que alimentava a parabólica da outra. O operador de câmara desta reagiu, enfiando a objectiva pelo pára-brisas do carro. O motorista respondeu com um golpe de karate que enviou directamente o operador de câmara para o hospital do Alcoitão. A situação escalou, com alguns feridos e mortos de parte a parte, a tal ponto que as equipas de reportagem vão agora trabalhar de capacete e colete à prova de bala, acompanhadas de vários guarda-costas e com ambulâncias e paramédicos em stand-by. Ontem e hoje aconteceram apenas algumas escaramuças, a horas convenientes para o directo nos telejornais.
E o futuro? Ninguém sabe, ele será construído por vocês. Façam coisas, e se com isso aumentarem as audiências, saberão que estão no bom caminho. Sobretudo nunca esqueçam o lema desta Escola: "Dar ao público o que o público gosta e quer".
Muito obrigado pela vossa atenção.


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quarta-feira, 26 de abril de 2006

segunda-feira, 24 de abril de 2006

Contribuição (atrasada) para o primeiro de Abril

Universidade das Berlengas, S.A.

Licenciatura em Engenharia da Comunicação Social

Teste da disciplina "Paradoxos e Inverdades"

O teste inclui 8 perguntas de resposta múltipla e uma pergunta de desenvolvimento. Identifique a folha da prova com o seu nome (verdadeiro!).
Duração da prova: 3 horas.

Pergunta 1
"Mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo". O autor desta frase era:
a) Fabricante de material ortopédico
b) Professor de Religião e Moral no ensino secundário
c) Técnico de fisioterapia
d) Dr. Horsleuy, que em 1936 começou a utilizar o pentotal sódico (vulgo "soro da verdade") em interrogatórios

Pergunta 2
Um hipotético presidente de um hipotético país afirmou: "Menti mas foi por uma boa causa". Pode concluir que:
a) Como, por hipótese, nunca se envolve em más causas ele mentirá sempre
b) Ele será incapaz de mentir por uma má causa, pelo que nessas circunstâncias falará sempre verdade
c) Sempre que ele afirmar que mentiu é suposto as pessoas acreditarem que ele está a falar verdade
d) Seria capaz de comprar a esse hipotético presidente um carro em segunda mão

Pergunta 3
Após análise da frase "Mentir com quantos dentes tem na boca" pode concluir
a) Que um bebé recém-nascido fala sempre verdade
b) Que uma galinha é incapaz de mentir
c) Que uma pessoa que já só tenha metade dos dentes só pode dizer meias mentiras
d) Que a alteração ao Código Penal que propõe que só possam ser convocadas como testemunhas pessoas desdentadas tem possibilidade de ser aprovada por unanimidade no Parlamento

Pergunta 4
Um hipotético primeiro ministro declarou "[Nome do país] está em guerra". Desta frase pode deduzir:
a) Que esse hipotético primeiro ministro não sabe que é uma competência da Assembleia da República "Autorizar o Presidente da República a declarar a guerra e a fazer paz"
b) Que esse hipotético primeiro ministro não sabe o que é uma competência da Assembleia da República
c) Que esse hipotético primeiro ministro não sabe
d) Que esse hipotético primeiro ministro não


Pergunta 5
Há alguns anos, um político brasileiro fez a seguinte declaração "Eu roubo mas construo". Pode deduzir desta frase
a) Que há uma relação de causa-efeito entre as actividades "roubar" e "construir"
b) Que a actividade da construção civil tem geneticamente componentes predadoras
c) Que na sequência desta afirmação o cara deveria ter sido preso
d) Que preciso de saber mais detalhes("roubo" o quê? a quem? e "construo" o quê? para quem?) para me poder pronunciar

Pergunta 6
A sua reacção à recente notícia de que existiriam num hipotético país 200.000 pessoas com fome é
a) Quantos são? Quantos são? Eles que venham!
b) Mandá-los pôr todos em fila para poder contá-los como deve ser
c) Reeditar a famosa frase que contribuiu para que Maria Antonieta perdesse a cabeça: "Se não têm pão, dêem-lhes croissants".
d) Propor ao Ministério da Ciência um projecto de investigação para estudar quantitativamente a influência da privação de alimentos na saúde de uma população.

Pergunta 7
Alguns críticos tem falado de um número exagerado de estádios de futebol construídos num hipotético país para um hipotético campeonato. Os defensores pelo contrário consideram que ocorreu um proveitoso investimento. A sua opinião é
a) Tornar obrigatória a prática do futebol na população em geral por forma a conseguir a ocupação dos estádios a 100 por cento
b) Transformar os estádios em explorações agrícolas: hortaliças entre as quatro linhas e plantação de vinha em socalcos nas bancadas
c) Utilizar os estádios para recriar espectáculos como os do Coliseu da Roma antiga, com o povo a votar quem seria atirado aos leões. Esta actividade, além de constituir um saudável entretenimento, permitiria reduzir substancialmente o orçamento do Zoo de Lisboa e outros parques similares.
d) Demolir os estádios depois do hipotético campeonato, porque tanto a construção como a demolição contam para o PIB.

Pergunta 8
Não se conseguiram encontrar as "armas de destruição massiva". Podemos daí concluir
a) Que essas armas nunca existiram
b) Que essas armas existiam, mas foram partidas aos pedacinhos e esses pedacinhos distribuídos por toda a população para impedir a localização
c) Que me tenho que ver livre daquela encomenda postal que recebi há dois anos e meio, sem remetente, e que guardei na arrecadação
d) Armas quê?

Pergunta de desenvolvimento
Faça uma listagem dos possíveis lugares onde as armas de destruição massiva possam estar escondidas. Seja exaustivo. Limite a sua resposta a 200 páginas A4.

Boa sorte!

quarta-feira, 19 de abril de 2006

Rise lag

Durante muito tempo levantei-me cedo. Não era CEDO, mas cedinho: por volta das sete. E estava habituado a isso. Mas o pior dos hábitos é que podem degenerar em vícios. E foi o que me aconteceu: viciei-me em levantar-me cedo. Era uma sensação de felicidade, sair à rua e vê-la quase deserta, o ar lavado pelo frio da madrugada. E pouco a pouco fui antecipando a hora de levantar: às seis, e ver passar os autocarros ainda com as luzes interiores acesas, as janelas dos escritórios iluminadas para o trabalho do pessoal da limpeza, às cinco, às quatro, encontrar os noctívagos recém saídos dos bares e discotecas, às três, às duas, cruzar-me com os camiões do lixo na sua recolha diária...
A minha mulher não esteve para me aturar, saiu de casa e pediu o divórcio. Mas o pior foi que a agudização do vício levou à overdose: hoje em dia estou a levantar-me ANTES de me deitar!

quinta-feira, 6 de abril de 2006

A consciência

Foi durante o período antes da ordem do dia que o deputado deu por falta da sua consciência. Procurou nos bolsos, na pasta, mas não a encontrou. Ficou preocupado.
Na primeira oportunidade, saiu do hemiciclo e foi à secção de perdidos e achados. Perguntou ao funcionário se alguém teria encontrado uma consciência. Fizeram-no entrar pela porta ao lado do guichet e levaram-no a um compartimento onde havia guarda-chuvas, telemóveis, muitos dossiers, muitos envelopes A4 de papel castanho, e numa prateleira ao fundo algumas consciências.
- Essas estão aí porque os donos nunca vieram procurá-las.
O deputado observou mas nenhuma era a sua. Notou no chão uma caixa fechada. Perante o seu olhar interrogativo, o funcionário disse:
- Aí dentro estão vergonhas. Há pessoas que perdem a vergonha. E nunca vêm cá à procura dela. Vergonhas e consciências que não são reclamadas, ao fim de um ano são incineradas.
O deputado apalpou o bolso e suspirou aliviado. Ainda tinha a sua vergonha. O problema era a consciência.
Agradeceu ao funcionário e saiu à procura, pensando onde diabo poderia ter deixado a consciência.

terça-feira, 4 de abril de 2006

SMSes (4)

Serei sempre tua! disse ela rodando o filtro. E eu teu, disse ele regulando o laser.
Isto é ficção, rosnou um crítico.
Científica! cuspiu com desdém o outro.

domingo, 2 de abril de 2006

A laranja

A laranja ficou verde de indignação quando descobriu que tinham pintado o céu de azul e o tronco da árvore de castanho, quando laranja seria obviamente a cor apropriada. E tão indignada estava que começou a agitar-se no ramo onde estava pendurada.
Passou o Artur que vinha da escola, olhou-a curioso e... chamou-lhe um figo!

sexta-feira, 31 de março de 2006

quinta-feira, 30 de março de 2006

As duas ordens

No Parlamento era temido pela sua eloquência, e muitas vezes utilizava a frase “Para o meu partido, essa matéria está na ordem do dia”.
Até ao dia em que um deputado adversário lhe retorquiu: “Essa matéria está, deveria dizer V. Exa., na ordem da noite”.
Surpreendido, ficou às escuras... e sem palavras.

quarta-feira, 29 de março de 2006

Grávida

(Para a C. A.)

Como um navio do avesso
(mar e passageiro dentro)
navegas no tempo
rumo ao nascimento.
Orquestra

A flauta chora
e o oboé lamenta.
Silêncio da harpa...

terça-feira, 28 de março de 2006

sexta-feira, 24 de março de 2006

The End

O primeiro, que era um pessimista, disse: Isto é o princípio do fim!
O segundo, que era um optimista, respondeu: Não, é apenas o fim do princípio.
O terceiro, que tinha andado a ler um livro de estórias zen, concluiu: Seja lá o que for, vamos mas é jantar!

quinta-feira, 23 de março de 2006

A Fábula do Quorum


PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
Comunicado Interno

Assunto: Falta de quorum

Chegou ao conhecimento da Administração a ocorrência, por mais de uma vez, de atrasos no início de reuniões ou até do adiamento das mesmas por motivo de falta de quorum.
Pelo desprestígio que acarreta para a nossa Instituição, esta situação tem que ser imediatamente corrigida.
Assim, na sua reunião de ontem, o Conselho de Administração decidiu autorizar a abertura imediata de um concurso internacional de fornecimento de quorum, para reuniões pequenas, médias e grandes, por forma a que a quantidade de quorum em armazém seja reposta a um nível que permita o regular funcionamento da Instituição. O Serviço de Aprovisionamento recebeu instruções expressas no sentido de atribuir prioridade máxima a esta tarefa. Uma vez normalizada a situação, deve ser dado conhecimento imediato a todos os centros de custo.
De qualquer forma, e porque na actual conjuntura é necessário um rigoroso controlo das despesas, todos os Serviços se devem esforçar por não gastar quorum para além do estritamente necessário. Assim, depois de efectuado o reabastecimento, qualquer pedido de quorum deve ser adequadamente justificado pelo chefe do Serviço, devendo a respectiva requisição ser preenchida em triplicado e dar entrada no Serviço de Aprovisionamento com o mínimo de 15 dias de antecedência. Os pedidos serão analisados por uma Comissão que terá um representante de cada Serviço e será presidida pelo Administrador com o pelouro das Despesas Internas. Da decisão desta Comissão não haverá recurso.
No que respeita ao Departamento Educacional, se for necessário, desde que devidamente autorizado e com a finalidade exclusiva de obtenção de quorum, poderá o tradicional "quarto de hora académico" ser substituído pela "meia hora académica".

O Presidente do Conselho de Administração

(assinatura ilegível)

terça-feira, 21 de março de 2006

Pôr do sol na aldeia

Ao fundo do quintal
Um cão roía um osso
E o dia angustiado
Afogou-se no poço.

sexta-feira, 17 de março de 2006

Geomorfologia

Onda a onda
o tempo arranca
pedaços às escarpas da memória.

Brusco e violento às vezes
outras
surdo e lento
mas na mesma eficiente.

Os fragmentos rolam
para a base
mais exposta à acção erosiva.

E a rocha firme assim
se desagrega
até não ficar mais do que a areia
de alguma coisa
que foi boa, ou grande, ou bela
e que escorre lentamente entre os dedos do tempo.

terça-feira, 14 de março de 2006

Stuff that dreams are made of

Na terra dos sonhos, os sonhos não dormem. Ao princípio da noite, deslizam até à região onde habitam os humanos. E entrando na cabeça dos que dormem, desarrumam-lhes os pensamentos, trazem recordações armazenadas nos sótãos da memória e misturam-nas com factos actuais, e divertem-se com isso. Outros, mais amargos, povoam-lhes as mentes com imagens assustadoras. Outros ainda, em geral os mais velhos, gostam de levar a calma às mentes agitadas dos humanos e fazem-nos sonhar águas pacíficas em cálidas paisagens tropicais. Alimentam-se de fragmentos da alma humana, mas pouco de cada vez, se não as mentes secam e deixam de sonhar.
Ficam com eles até que começam a despertar, para saborear o sentimento de estranheza que deles se apodera quando pensam, “Onde é que fui arranjar um sonho tão estranho?”, e juntam-se depois à volta da fogueira, que é negra, e espalha negrume para afastar a luz do dia que entretanto nasceu, e trocam entre si as experiências que tiveram nessa noite, e dessa forma ocupam o tempo até que novamente anoitece, e mais uma vez deslizam em direcção aos humanos...

terça-feira, 7 de março de 2006

Penso, logo...?

"Um penso rápido!", pensou rapidamente o pensador, quando se cortou a fazer a barba. Mas como lá em casa só tinha pensos lentos, antes que lhe acudissem esvaiu-se em pensamentos...

terça-feira, 28 de fevereiro de 2006

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2006

As chaves

O molho de chaves caiu-me da mão, mas em vez de ficar no chão, como eu esperava, atravessou-o e passou ao plano da realidade imediatamente abaixo. Quando tentei apanhá-lo, fugiu novamente para o plano seguinte. Embora me desagradasse, tive que ir atrás dele, através dos sucessivos planos da realidade.
Se não apanho as chaves, como vou entrar em casa?

sábado, 25 de fevereiro de 2006

Descrição do Objecto Obscuro

É redondo. De uma redondez total, não tem ponta por onde se pegue, apenas se pode observar pousado numa superfície, e mesmo aí é preciso ter cautela, pois pode facilmente rolar. É também escorregadio ao tacto, as mãos deslizam sobre ele, não há aderência, poderíamos chamar-lhe untuoso, se essa não fosse uma designação já um pouco gasta.
Observêmo-lo então, com o máximo possível de detalhe. Na sua superfície – porque o objecto não tem interior, não tem fundo – inscrevem-se palavras. Por vezes uma palavra salienta-se, dando a ideia que poderíamos usá-la para pegar no objecto, para lhe dar um sentido. Mas se o tentarmos, logo verificamos que essa palavra se junta às palavras vizinhas, mistura-se com elas, dilui-se no mar de palavras que cobrem a superfície do objecto.
Essas palavras não se destinam a cumprir qualquer função de comunicação, mas apenas a dar a ilusão disso. As palavras estão lá para fazer vibrar sentimentos na mente de quem olha/ouve o objecto: os cérebros têm zonas que entram em ressonância com palavras de diferentes tipos, pelo que a escolha das palavras que compõem o objecto é criteriosa, e é geralmente feita recorrendo a especialistas, pagos a peso de ouro.
Assim, há uma classe de palavras que se destinam a fazer vibrar as convoluções nacional-patrioteiras, outras os medos/temores irracionais, outras ainda a matriz mágico-religiosa que constitui o substracto de muitas das nossas emoções.
O objecto que tenho vindo a descrever faz parte do nosso quotidiano, tendendo a surgir com mais frequência em períodos especiais do nosso viver colectivo, chamados “campanhas eleitorais”. É conhecido pelo nome de “discurso político”.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006

Chuva

Uma chuva chovia no molhado.
Veio outra chuva e disse-lhe:
-Vai chover para ali, onde ainda não choveu.
E a primeira disse:
-Desculpa, tens razão, estava distraída.
E lá foi.
Embora haja excepções, as chuvas são geralmente bem educadas e obedientes ao que lhes dizem as outras chuvas.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006

Dionísio e os relógios

Dionísio começou um dia a não gostar de relógios. A achar irritantes aqueles objectos, que insistiam em modificar o ritmo segundo o qual ele gostava de viver.
O relógio de pulso foi o primeiro: mesmo capaz de funcionar a 60 metros de profundidade (tinha sido comprado quando Dionísio era praticante de caça submarina) não sobreviveu à acção do triturador da cozinha. Em boa verdade, este também não, porque a caixa do relógio era de aço inox de alta resistência.
Aos outros dois relógios que repousavam pacificamente na gaveta da mesa-de-cabeceira, nem o facto de estarem parados (eram modelos já antigos, mecânicos) lhes valeu: quando foram parar ao caixote do lixo, a acção do quebra-nozes já os tinha tornado irreconhecíveis. No entretanto, caminho semelhante tinha seguido o relógio de parede da cozinha (previamente esquartejado com o cutelo dos bifes). Os relógios digitais do micro-ondas e do forno do fogão foram cirurgicamente apagados com o picador de gelo.
Até este ponto, a esposa de Dionísio foi conseguindo gerir o medo que lhe provocava o comportamento anómalo do marido. Mas quando o seu relógio de pulso preferido (caixa em ouro de 18 quilates, prenda de casamento de um tio já falecido) foi aterrar na lareira acesa, meteu meia dúzia de peças de roupa numa mala e foi para casa dos pais, felizmente ainda vivos. Ele está louco, mamã, soluçava a pobre senhora. De facto, acender a lareira num dia de Agosto em que o Instituto Meteorológico assinalava uma temperatura de 41 ºC dificilmente deixava lugar a outro diagnóstico.
E assim Dionísio continuou eliminando todos os sinais de contagem do tempo. Ainda tentou alvejar com uma carabina de pressão de ar o relógio da torre da igreja que se via da janela da sala, mas verificada a inutilidade desse esforço, resignou-se a correr os pesados cortinados para o afastar da vista.
Afundado num sofá, na sala quase às escuras, Dionísio tinha sossegado, o silêncio à sua volta actuando como um calmante para o seu cérebro cansado. Foi então que do núcleo mais central desse silêncio começou a surgir um ritmo, um batimento, uma pulsação regular, como se um monstruoso relógio se tivesse instalado dentro de si próprio. Quando teve consciência da origem daquele pulsar terrificante, Dionísio soube o que tinha a fazer. Como um autómato telecomandado, levantou-se, foi à cozinha, trouxe a faca de trinchar, tornou a sentar-se no sofá, procurou no lado esquerdo do peito o local onde o batimento era mais forte, apoiou aí a ponta da lâmina e lenta mas firmemente, empurrou a faca. Nos breves instantes até perder a consciência, Dionísio sentiu uma paz a invadi-lo, como se finalmente o tempo estivesse a parar...
Foi com essa expressão pacífica no rosto, como se dormisse, que a polícia, alertada pelos vizinhos, o foi encontrar três dias depois.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2006

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

Sobre Italo Calvino (fragmento)

O cartógrafo que desenha mapas do mundo real usa como ferramenta principal uma caneta de ponta fina, porque as fronteiras entre os países, contestadas ou não, são linhas, que estabelecem um corte territorial, uma descontinuidade administrativa, política, por vezes cultural, mas (quase) sempre autoritária.
Quem pretendesse mapear o território literário, teria que usar um pincel e trabalhar sobre papel poroso, mais uma aguarela do que um desenho à pena, porque as fronteiras entre géneros são frequentemente mal definidas, difusas, por vezes reivindicadas por partidários dos dois (ou mais) géneros limítrofes, mas suficientemente amplas para que alguns autores consigam viver dentro delas.
E se numa noite de inverno um viajante iniciasse a travessia de uma dessas fronteiras, na sua caminhada entre duas cidades invisíveis, poderia seguir o atalho dos ninhos de aranha e entrando no bosque, olhando para cima, ter a sorte de avistar o barão trepador, ou mais adiante encontrar uma das metades do visconde cortado ao meio. Neste caso, deverá certificar-se de qual das metades se trata, pois isso poderá ter consequências no desenrolar da sua história pessoal.
Se pelo contrário o destino o fizer encontrar o cavaleiro inexistente – façanha desde logo notável – este poderá conduzi-lo ao castelo dos destinos cruzados, e talvez à porta esteja Italo Calvino que, sorrindo, lhe pegará no braço e o conduzirá numa visita guiada enquanto lhe conta como Palomar se perdeu em devaneios numa loja de queijos, o que poderá querer significar – mas isto está aberto à discussão – que a literatura (também) é para comer.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

Silly Season

Adriano, o jornalista de serviço na estação XXL, estava preocupado: para o noticiário das 8 tinha recebido quatro notícias das agências, às 9 só tinha tido duas, às 10 uma e tinha conseguido respigar um fait-divers de um dos matutinos. Às 10 e trinta e cinco, era claro que as fontes de informação tinham secado, isto é, nada acontecia, e Adriano começou a ficar angustiado ante a perspectiva de chegar ao noticiário das 11 sem ter notícias para dar, o que seria um acontecimento inédito na XXL (“a estação sempre em cima do acontecimento! Pam! Pam! Pam!”).
Às 10 e 45 tomou uma decisão: tinha de haver pelo menos uma notícia. Meteu no leitor um CD dos Ugly Boys, começando com a faixa “There’s going to be trouble”. Olhou em volta, viu o cinzeiro de pé alto, tomou-lhe o peso. Com o cinzeiro bem agarrado na mão esquerda (Adriano era canhoto) saiu do estúdio, desceu a escada e quando chegou à rua, observou com ar apreciativo a fila de carros estacionados ao longo do passeio. Metodicamente, usando o cinzeiro como uma clava, foi deixando marcas em todos: o BMW azul ficou com o pára-brisas estilhaçado, o Corsa com uma porta metida dentro, o Peugeot sem o farol direito e o vidro de uma janela, e assim sucessivamente, vidros partidos, chapa amolgada, sem verdadeiramente apontar, limitando-se a dar balanço ao cinzeiro e fazê-lo bater como calhava. Ao fim de 12 ou 13 parou, deu meia-volta e regressou calmamente ao estúdio. Vários populares se aproximavam agora dos carros danificados e ao fundo da rua despontavam o subchefe Eleutério, ainda a abotoar os botões do blusão e o guarda Rodolfo, que alguém tinha ido chamar à esquadra, a dois quarteirões de distância.
Quase em cima das 11, Adriano meteu a publicidade do alinhamento, o indicativo do noticiário, o sinal horário, e com a sua voz bem timbrada começou:
Há poucos minutos, por razões ainda não esclarecidas, um indivíduo danificou várias viaturas estacionadas ao longo da Rua das Sardinheiras. Para o efeito utilizou um objecto pesado, que algumas testemunhas disseram tratar-se de uma barra de ferro.
Fez uma pequena pausa e ouviu, através da porta entreaberta da cabina, as pancadas na porta do estúdio, com uma firmeza que claramente identificava o braço da Lei. Então concluiu a notícia:
A PSP tomou conta da ocorrência e procede a diligências no sentido de identificar o autor deste acto de vandalismo. Em próximos noticiários, a XXL apresentará os novos desenvolvimentos deste caso. E agora, mais uma faixa do último trabalho dos Ugly Boys: “It´s all over, baby!”.
Enquanto se levantava para ir abrir a porta, Adriano sentia-se orgulhoso: tinha conseguido evitar o pior dos males – um noticiário sem notícias! – e tinha inclusivamente deixado matéria para o colega que viria rendê-lo daí a pouco. Nas consequências que viriam para si próprio nem pensava. Tendo sido o melhor aluno do Curso de Jornalismo, ainda conseguia citar de memória o parágrafo inicial do manual da disciplina “Ética Profissional”: Na sua missão sagrada de informar o público, o jornalista tem por vezes de fazer sacrifícios pessoais…

terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

Crime e Castigo na Era do Consumismo

Almerindo, o consumidor quase-ideal, circulava pelos corredores do hipermercado com o seu carrinho já quase cheio. Era uma actividade que lhe dava um enorme prazer (excepto no fim do mês, com toda a gente a queimar os ordenados e os inevitáveis encontrões) e perante uma prateleira cheia, fosse do que fosse, reagia como o cãozinho de Pavlov: exibia um comportamento compulsivo que o levava a pegar no(a) pacote ou lata ou caixa ou embalagem e juntá-lo(a) a tudo o que já transportava.
À entrada da secção “Faça Você Mesmo”, Almerindo viu um esplendoroso kit que incluía um berbequim, uma rebarbadora e uma lixadeira, três jogos de brocas, mais umas caixas com buchas e parafusos, tudo por 129,99 €. Oferta limitada!
Almerindo não era propriamente um engenhocas (na realidade era até um pouco desajeitado com as mãos) mas quando viu aquele kit na caixa colorida, com oferta da maleta de transporte, soube que sempre o tinha (inconscientemente) desejado e soube imediatamente que tinha de o levar.
Ao lado, fazendo figura de parente pobre, havia uma versão reduzida (só o berbequim e um jogo de brocas) por 49,99 €. Uma ideia brilhante surgiu no cérebro de Almerindo, e passá-la à prática foi uma questão de segundos: a etiqueta com o código de barras do preço mais baixo foi habilmente descolada e colada de novo sobre a de preço mais elevado!
No instante em que consumava tão nefando acto, Almerindo foi surpreendido por uma súbita aparição: precedido por dois anjos, surgiu perante os seus olhos o deus dos hipermercados!
Os anjos vinham na forma de duas meninas, de mini-saia e patins em linha, transportando uma faixa com letras fluorescentes que dizia: “Ponha o carro à frente dos bois / Compre agora e pague depois!”.
O deus dos hipermercados estava de fato e gravata, tinha em cada mão um telemóvel e ao pescoço um colar feito de cartões de crédito Gold. O rosto era estranhamente parecido com a cara do Eng. Belmiro. Quando falou, as suas palavras atraíram a atenção de Almerindo com o efeito magnético de um slogan publicitário:
- Almerindo, meu filho, tentar diminuir o lucro de uma grande superfície é um crime inominável, pelo qual vais ser punido. Ficas condenado a repetir até à eternidade o gesto sagrado de encher o carrinho das compras, porque quando te aproximares da caixa ele ficará subitamente vazio e terás que voltar ao princípio.
E numa de exibição de conhecimentos mitológicos, acrescentou:
- E mudarei o teu nome para Sísifo.
Abriu os braços, as meninas agitaram a faixa, os cartões Gold brilharam com uma luz fortíssima, que obrigou Almerindo a fechar os olhos. Quando os abriu, deus e anjos tinham desaparecido, deixando no ar o cheiro característico da secção “Perfumaria e Cosmética”.
E desde então Almerindo/Sísifo, errando pelo hipermercado, coloca no carrinho detergente, after shave, arroz, massa, cerveja e água tónica, salsichas e manteiga, queijo e pickles, vinho, água mineral, pão e croissants, e tudo o mais que pelo caminho vai encontrando e quando se aproxima da caixa o carrinho fica vazio e ele tem que voltar ao princípio. É estranho como nenhum dos outros clientes dá conta, mas as penas eternas se calhar são mesmo assim, só o condenado dá por elas, ou então os outros clientes também estão condenados, condenados ao consumo. Almerindo pensa que provavelmente é esta a verdade, e vai tecendo estes pensamentos enquanto continua a percorrer os corredores entre prateleiras e a encher o carrinho, continuamente, per sæcula sæculorum

terça-feira, 7 de fevereiro de 2006

Fumo


Na calma
irritação
quotidiana

O poeta fabricou
o seu
poema

Com os dedos
da bolsa
das palavras

Tirou algumas
poucas
que estão caras

Enrolou
lentamente
cuidadoso

Em papel
ordinário
de rascunho

Molhou-o
com a língua
e apertou

Como vira
fazer
ao seu avô

Acendeu
e puxou
umas fumaças

Engasgou-se
e fartou-se
de tossir

Um amigo que via
disse
então

Vê lá se apanhas
cancro
no pulmão

Mas visto que
não pode
publicá-lo

Que há-de o poeta fazer
senão
fumá-lo?

domingo, 5 de fevereiro de 2006

Narciso


Narciso cansou-se de se mirar em charcos e ribeiros. Tornou-se urbano e arranjou um emprego. Polidor de espelhos!
O patrão estava feliz. Nunca lhe tinha aparecido um empregado apaixonado pelo trabalho. Até fazia horas extraordinárias de graça!
Um dia Narciso fez uma experiência. Esperou com ansiedade pela saída dos restantes empregados e do patrão. Pegou nos últimos dois espelhos que tinha polido, cada um com dois metros de altura por um de largura (encomendados por uma loja de pronto-a-vestir) e posicionou-os em frente um do outro, as superfícies tão paralelas quanto possível. Descalçou os sapatos e as meias, despiu a roupa e, completamente nu, colocou-se no meio dos espelhos.
Quando olhou a sua imagem multiplicada até ao infinito, uma onda de prazer com uma intensidade que não supunha possível fez vibrar cada nervo do seu corpo, fez ressoar cada neurónio do seu cérebro...
Morreu de overdose.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2006

terça-feira, 31 de janeiro de 2006

A Passagem

Desde pequenos que sabíamos o que iria acontecer, e visitávamos muitas vezes a floresta, onde cuidávamos dos que já tinham passado antes de nós: varríamos as folhas do chão, arrancávamos ervas, tirávamos um ou outro ramo seco. Sabíamos que naquela forma viveríamos muitos anos, e que a nossa existência móvel, na sua curta duração, era de facto uma espécie de pré-vida.
E no entanto, é sempre um choque quando aparecem os primeiros sintomas: uma manhã, sem qualquer aviso, os pés começam a arrastar-se no chão, todos os movimentos são mais lentos, e sabemos que o momento da passagem se aproxima. Caminhamos então em direcção à floresta, acompanhados pelos nossos amigos, e durante o percurso o esforço para andar vai sendo cada vez maior, os nossos membros vão perdendo a flexibilidade da carne e adquirindo aos poucos a rigidez da madeira, de tal forma que quando chegamos ao local onde ficaremos plantados é um alívio podermos parar. E assentamos os pés firmes no chão, e os nossos amigos ajudam-nos a colocar os braços na posição mais adequada, e olhamos o que nos rodeia pela última vez antes de as nossas retinas ficarem opacas e as pálpebras rígidas, e entra nos nossos pulmões a última inspiração. Sentimos as raízes a sair-nos dos pés e a entrar na terra à procura de nutrientes, o fluido que nos percorre as veias vai-se tornando seiva, o calor do sol sobre o nosso corpo começa a provocar a transformação das células superficiais para poderem realizar a fotosíntese, e chegam-nos subtis mensagens de saudação daqueles que passaram antes de nós e que nos rodeiam. E vem o pôr do sol, e ficamos meio adormecidos para passar a noite, esperando pela madrugada, e os pássaros ainda não vêm dormir no nosso corpo porque ainda não cresceram ramos nos nossos braços, mas isso acontecerá rapidamente, e então seremos árvores completas, e viveremos longamente...

segunda-feira, 30 de janeiro de 2006

Os agás

- Como tenho verificado que com alguma frequência vocês escrevem “há” sem agá, cheguei à conclusão que deve haver um défice de agás na vossa colecção de letras, pelo que trouxe uns quantos agás para colmatar essa falta.
E juntando a acção à palavra, tirou um envelope A4 da pasta e despejou sobre a mesa uma enorme quantidade de agás recortados de jornais.
Nenhum dos alunos sequer sorriu.
- O sentido de humor já não é o que era! - exclamou o professor desalentado...

sábado, 28 de janeiro de 2006

Inverno


Chegou primeiro o Frio e assentou arraiais. Tinha congelado uns ribeiros, para se entreter, quando ouviu ao longe o Vento. Este aproximou-se rapidamente e cumprimentou-o, com um assobio gelado. Em terceiro lugar veio a Chuva, ensopando tudo em volta, e finalmente apareceu a Neve, vestindo um manto branco acabado de estrear.
A Chuva e a Neve não se entendiam bem e começaram a discutir, mas o Vento, com um sopro forte, mandou-as calar.
Era a Assembleia Geral de constituição do clube Inverno. O artigo 1º dos Estatutos dizia:
“Para que o Clube esteja aberto, é necessária a presença de pelo menos um dos sócios no pleno gozo dos seus direitos”.
E o artigo 2º:
“O clube fechará para balanço quando aparecer de forma insistente e incómoda o Sol, o Calor, ou qualquer outro desses desmancha-prazeres”.
Já não me lembro do resto: nunca tive grande queda para memorizar textos jurídicos...

O'pra elas!





Gent, Bélgica, 2004

quinta-feira, 26 de janeiro de 2006

SMSes (3)

- O quê? perguntou um.
- What? asked another.
- Krrumpf# @(q£ §=g.
- Com que então uma torre para chegar ao céu - resmungou a divindade com um riso raivoso..

terça-feira, 24 de janeiro de 2006

Equívocos

Queria inscrever-se no karaté mas fê-lo por engano no karaoke.
Quando uns tempos mais tarde foi atacado na rua, em vez de responder com um tsuki, saiu-lhe o “Love me tender” do Elvis Presley...
É o que dá não se saber japonês!

segunda-feira, 23 de janeiro de 2006

Estória com gatos

Estavam três gatos no beiral do telhado: um gato filósofo, um gato artista e um gato comum.
O gato filósofo foi o que miou primeiro. Dissertou detalhadamente sobre o significado da vida de gato, e o modo como ela contribui para o equilíbrio do universo. Tinha feito um retiro espiritual num mosteiro zen, e tinha aprendido sobre o yin e o yang, e o desprendimento, e a iluminação que se atinge depois de muito meditar e se conseguir ver para além das ilusões.
Em seguida miou o gato artista, e disse da suprema beleza da noite com o luar a brilhar sobre os telhados, de como o miar de uma gata com cio representava, para ouvidos artisticamente treinados, música das esferas, do prazer estético que se podia fruir observando um salto bem preparado do ramo da árvore para cima do muro.
Miou por último o gato comum, que disse que tinha apreciado os miados dos seus distintos colegas, mas que todos os seus considerandos eram vazios de sentido se ao escutá-los ele não tivesse já um pardalito ou pelo menos um ratinho a aconchegar-lhe o estômago. Filosofia e arte muito bem, mas não de barriga vazia!
Ouvindo isto, os dois distintos colegas não puderam deixar de miar longamente, expressando a mais profunda concordância.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2006

Eleições no País da Simetria

O partido no poder tinha sido, nos últimos anos, o Partido Simétrico (PS). O que era óbvio para quem visitasse o país: os edifícios mais recentes eram rigorosamente simétricos; nos automóveis, a frente e a traseira confundiam-se; qualquer monumento, construção, estrutura exibia uma ou mais formas de simetria.
Do programa do partido constava, naturalmente, a procura e adopção da simetria em todos os aspectos da vida – qualquer militante ou simpatizante usava roupas irrepreensivelmente simétricas e mesmo o cabelo era sempre penteado com risca ao meio. Qualquer pequena irregularidade – uma borbulha, um sinal, uma verruga, enfim qualquer pequena falha da natureza, ela própria considerada essencialmente simétrica – era imediatamente corrigida cirurgicamente, afim de manter a simetria no mundo.
No plano social, o número de pobres era rigorosamente igual ao número de ricos; o número de estúpidos igualava o número de inteligentes; enfim, um país rigorosamente dividido ao meio, uma igualdade de um lado e outro da mediana. A fazer fé, naturalmente, nas estatísticas do governo, que, por outro lado, era sistematicamente acusado pela oposição de viciar as estatísticas.
Em virtude dos seus princípios programáticos, o PS era obviamente um partido rigorosamente centrista.
A oposição era constituída pelo Partido Hemi-Simétrico (PHS) – da direita, ou da direita moderada, consoante os comentadores – pelo Partido Assimétrico (PA) – da esquerda, ou da esquerda moderada, segundo outros comentadores – e pelo Partido Anti-Simétrico (PAS) – da esquerda radical, de acordo com todos os comentadores.
O Partido Hemi-Simétrico (PHS) era adepto da simetria, mas de uma forma mais sofisticada. Assim, por exemplo, não achavam necessário que houvesse igual número de ricos e de pobres, mas sim que o número de ricos vezes as respectivas fortunas fosse igual ao número de pobres vezes o valor das respectivas míseras posses. Desta forma, argumentavam, ocorreria a concentração de capital imprescindível para que o país desse o necessário salto em frente.
O Partido Assimétrico (PA) era de opinião que simetria ou assimetria era uma questão de gosto pessoal. Era uma espécie de mistura de cidadãos simétricos, desiludidos com algumas simetrices exageradas do PS, e de cidadãos que tinham sido anti-simétricos na sua juventude, mas que se tinham entretanto cansado dos excessos da anti-simetria.
O Partido Anti-Simétrico (PAS) era uma espécie de PS ao contrário. Qualquer acção de um anti-simétrico procurava deliberadamente a não-simetria. A sua casa teria forçosamente a porta de um lado e as janelas do outro, estas de preferência de tamanhos diferentes. As suas roupas teriam que ser ferozmente anti-simétricas – casacos com uma manga vermelha e outra verde estiveram na moda durante algum tempo. Penteados com risca ao lado, em casos extremos um lado da cabeça rapado, piercings só de um lado da cara...
Com a aproximação das eleições, o país foi surpreendido pelo aparecimento de um novo partido: o Partido Supra-Simétrico (PSS).
Quase da noite para o dia, surgindo praticamente do nada, começou a ser motivo de conversas de rua, de comentários dos opinion makers, de artigos de primeira página nos jornais mais conceituados. Porque o seu programa político veio introduzir um corte radical no universo consensual, um paradigm shift na paisagem ideológica dominante. Muito resumidamente, afirmava que todas as controvérsias em torno da simetria e das diversas facções de não-simetria ficavam sem sentido (“um mero exercício de futilidade”) quando examinadas a partir de um espaço de dimensionalidade mais elevada. Esta declaração, apresentada pelo porta-voz do partido na conferência de imprensa de lançamento, constitui obviamente uma simplificação; a argumentação detalhada, apresentada em “A Supra-Simetria: Um Programa de Governo”, desenrolava-se ao longo de 185 páginas de expressões matemáticas, separadas apenas, de onde em onde, por expressões do tipo “portanto”, “daqui, como é evidente” ou “segue-se que”.
A publicação do programa teve na sociedade civil um efeito demolidor. Olhando aquelas páginas e páginas de densa notação matemática, as pessoas pensavam: “Não percebo nada, estes tipos devem ser muito inteligentes... Devem ser capazes de governar bem o país... Vou votar neles!”
E foi assim que, contrariamente às previsões de todos os analistas, mas de acordo com os comentários dos mesmos analistas após a publicação dos resultados, o PSS averbou uma tremenda vitória, obtendo a maioria absoluta.
A sessão inaugural da nova legislatura logo mostrou a diferença de postura do novo poder. Os seus deputados, em vez de ocuparem uma posição central no hemiciclo, como sempre fazia o PS, distribuíram-se aleatoriamente pela sala, desta forma mostrando estarem acima das implicações do conceito de simetria.
A primeira medida do novo parlamento, aguardada com grande expectativa, foi a aprovação de uma lei destinada a facultar a todos os cidadãos de maior idade uma licenciatura em Matemática, para que pudessem compreender, em toda a sua profundidade, o programa do PSS. Esta decisão foi muito bem recebida pelos departamentos de Matemática de todas as universidades do país. A esta, outras leis se seguiram, de igual importância estratégica e cada uma delas mais inovadora do que a anterior.
Porém, com o passar do tempo, foi emergindo no país profundo um vago sentimento de mal-estar. Uma parte dos cidadãos queixava-se que estudar Matemática era cansativo, atribuindo em geral as culpas aos professores que não explicavam bem as matérias; mas a generalidade ressentia-se sobretudo do facto de todas as questões importantes serem decididas na capital.
Propulsionado pelo recém-aparecido PANS (Partido Anarco-Simétrico, que alguns analistas mais formais recusavam considerar um partido pelo facto de, assumidamente, não ter programa; o que se aproximava mais de um programa era um site que mantinham na Web onde qualquer pessoa podia escrever o que lhe apetecesse...), um abaixo-assinado divulgado na SimNet reuniu em tempo recorde as assinaturas necessárias para forçar o parlamento a realizar um referendo.
Este referendo, com o título (escolhido pelos proponentes e obviamente provocatório) “Simetria? O que é isso?”, foi ganho de forma inequívoca pelos partidários da regionalização, sendo desta forma decidido que cada região teria o grau de simetria que entendesse.
Ficou célebre, na campanha que antecedeu o referendo, um debate televisivo em que, quando um dos participantes disse “A simetria quer-se como o sal na comida, nem de mais, nem de menos”, um outro retorquiu “Pois eu, como tenho a tensão arterial alta, prefiro sem sal nenhum!”.
E assim, uns anos mais tarde, o país era como um mosaico, com as diferentes regiões exibindo diversas posições com respeito à simetria: desde as fundamentalistas supra-simétricas, às ferozmente simétricas ou anti-simétricas, passando por diversos graus intermédios.
Como este panorama político se alterava quase sempre que havia eleições (que com alguma frequência, e por razões diversas, eram antecipadas) surgiu uma nova profissão no mercado de trabalho, os engenheiros simetrizadores, licenciados em Engenharia Simetrizeira. Estes profissionais eram especialistas em simetrizar tudo aquilo que, na opinião dos decisores políticos, não era simétrico ou não o era em grau suficiente; também estavam habilitados, num contexto diferente, a des-simetrizar ou assimetrizar tudo o que fosse demasiado simétrico para o poder em exercício.
Sendo uma profissão que rapidamente passou a gozar de grande prestígio social, os requisitos de entrada nas faculdades onde se ensinava este novo ramo da engenharia eram os mais elevados de todo o ensino superior. A Ordem dos Engenheiros Simetrizadores era um dos organismos profissionais mais importantes, com forte influência (demasiada influência, havia quem dissesse, entre dentes) em todos os sectores da vida económico-social, e o seu Bastonário frequentava com naturalidade os corredores do poder.
Foi por esta altura que um famoso político, já na reforma, que matava o tempo escrevendo a sua auto-biografia, instado por um jornalista a comentar as profundas mudanças que tinham varrido o país no espaço de uma geração, respondeu, de forma lapidar, com a frase que o faria entrar na História:
- É a vida!...



Nota final: O autor declara que esta estória, como todas as estórias, deve certamente ter uma moral, mas que ele (autor), embora se tenha esforçado, não a conseguiu descobrir.

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