FU’BOL
(
Uma modesta contribuição para a futebolite, que se espalha rapidamente pelo país, e para a qual o Ministério da Saúde não dispõe de qualquer tipo de vacina.)
Ao som das pancadas na porta do quarto, olhei à volta rápido, não fosse tar à vista algum dos trecos que fazem o velho ficar com arrepios. Mas não: o spray de amoníaco, a corrente e a soqueira, já tava tudo arrumado no blusão; a faquinha no lugar dela, dentro do cano da bota direita. Tudo nos conformes!
- Entra, vô!
Ele entrou a arrastar os pés, que é a maneira como ficou a andar depois do enfarte. Os velhos são todos uns chatos – quando falamos dos velhos entre a malta cuspimos sempre para o lado com ar de nojo – mas o meu avô até é um cota assim-assim. Às vezes até conta umas tretas com piada, como aquela dá bué d'anos levar o meu pai ao estádio ver o fu'bol. E eu perguntei-lhe:
- Mas não podiam ver em casa, não havia caixotes?
E sabem o que me respondeu?
- Havia, mas muita gente gostava de ir ver ao estádio.
Isto são de certeza desvaneios do velho; às vezes também se põe a dizer que quando era novo um meco podia sair de casa à noite sozinho e desarmado; eu dou-lhe o desconto, e como ele não mexe com a minha vida, vamo-nos dando bem.
Sobre a morte do meu pai é que nunca consegui arrancar-lhe nada de jeito: diz que ele pertencia às milícias populares de auto-defesa (já perguntei ao Jaime, qué o caixa d’óculos lá do grupo, qu’até vai à mediateca ler livros, se sabia o quisso era, mas ele népias), qu'entraram numa luta com traficantes de droga e que o meu pai levou umas naifadas e chegou já morto ao hospital. Não percebo porque é que havia traficantes de uma coisa que se compra no hiper e fico cada vez mais convencido que o velho se está a passar.
O velho olhou à volta, devagar, como faz sempre, observando com mais vagar o poster a anunciar o mega concerto dos Morte em stock, o cartaz dos Furacões Verdes no lugar de honra, por cima da cama, e a minha última aquisição, a caveira em PVC fluorescente que me serve de luz de cabeceira, abafada da última vez que a malta foi arejar ao shoping.
- Então vais ao jogo?
- Tá claro, vô; temos umas contas a ajustar com os encarnadinhos (isto é o que a malta chama aos Vermelhos Vivos e que os gajos passam-se completamente!)…
- Tem calma, rapaz e não te metas em sarilhos...
Deu-me uma pancadinha no ombro e saiu do quarto; ouvi-lhe os passos arrastados e ainda o clic do caixote, acendendo automaticamente quando ele entrou na sala.
Vesti o colete e corri o fecho; pouca gente diria que por baixo do tecido preto, havia uma malha de aço capaz de parar uma bala ou uma faca. As “cuecas blindadas”, como a malta dizia na galhofa, já estavam vestidas debaixo das calças de couro.
Peguei no capacete e no blusão, atirei um té logo, vô ao passar pela porta da sala, onde ele tava já alapado frente ao caixote e desci a escada para a garagem. Sabia que ele ia ficar a ver a transmissão do jogo mas já não sei se ele topa mesmo como as coisas se passam no estádio... Bem, ele sabe que o árbitro é uma espécie de realizador de TV, a olhar para os monitores que lhe mostram as imagens enviadas pelas robocâmaras que andam pelo campo e ajudado por um banco de filtros neuronais capaz de identificar, em tempo real, a legalidade de qualquer jogada. E que um jogador que apanha um vermelho leva uma injecção que o deixa a rastejar durante 2 meses. Mas não sei se ele topa que o campo propriamente dito está totalmente dentro de uma bolha bué grande de Restran, a mesma cena de que são feitas as janelas dos carros dos gajos importantes…
E isso é o que o caixote leva a casa de cada um, são os bonecos deste jogo totalmente isolado. Mas pa nós, o que interessa é o que se passa nas bancadas! Na última vez entre nós e os encarnadinhos ganharam eles por 5 a 3 (sem contar com os feridos); hoje vamos ter que tirar a desforra!
Há outra transmissão que é feita do estádio, mas dessa o velho não sabe e não sou eu que lhe vou dizer; é a da batalha nas bancadas, e para se receber é preciso montar um descodificador acoplado à antena (ainda no mês passado estivemos a instalar uma treta dessas em casa do antigo chefe do nosso grupo, que ficou paraplégico no último jogo contra os Demónios da Foz). E a massa nas apostas em relação à porrada é muito mais do que a das apostas sobre o resultado do jogo!
Claro que eu também topo que isto do fu'bol é uma treta e é um ganda negócio e que são as multinacionais que estão por trás de tudo, da compra e venda de jogadores, das apostas, dos direitos de transmissão dos jogos, da venda das bandeiras, dos lenços, dos bonés… Ainda na semana passada, no bar onde a malta costuma parar, um gajo começou com esta conversa, e a malta foi ouvindo, uns curtindo, outros menos, mas o gajo já tava a ficar nublado e quando começou a dizer que azuis, encarnados, verdes era tudo a mesma trampa caímos-lhe em cima, levou uma carga de porrada e quando os seguranças do bar chegaram à festa já ele tinha alguns ossos partidos e já a malta se tinha pirado!
Na garagem, visto o blusão, ponho o capacete (especialmente desenhado para “choques não rodoviários”, dizia a publicidade), testo as pilhas do emissor-receptor, e cavalgo a minha Honda-Kawa. Rodo a chave, puxo um bocado pelo faz-barulho e aos 90 dB o sensor abre o portão. Deslizo pela rampa, checando pelo espelho o portão a fechar-se atrás de mim. Entro no acesso à CREL-2 e oriento-me para o local da cerimónia preparatória, respirando o ar quente do fim da tarde. Para mim, aquelas fantochadas com fogueiras, archotes e cruzes suásticas não dizem nada, mas a malta grama à brava e fica tudo na maior... E hoje vamos precisar da força toda, porque parece que os encarnadinhos também decretaram mobilização geral, e eu vou berrar tão alto como os outros…
Tiro duas pastilhas do bolso do blusão e meto-as na boca, onde se dissolvem lentamente. Uma espécie de formigueiro começa a passar-me nas veias, abro o gás, e enquanto o asfalto desliza cada vez mais depressa debaixo das rodas, começo a cantar na força máxima o hino dos Furacões Verdes...