domingo, 28 de outubro de 2018

Para além da Internet das Coisas

Um obrigado à Eugénia, que me deu a ideia.
 
Quando a Internet das Coisas chegou em força encontrou em Flávio Ramos um dos seus mais ardentes apoiantes. Começou imediatamente um activo programa de substituição dos objectos que tinha em casa por dispositivos inteligentes, muitas vezes contra a opinião da mulher, Adozinda de sua graça, que não ia muito à bola com as modernices do marido. Flávio chamava-lhe com frequência infoexcluída e, semana sim semana não, lá entrava mais um objecto inteligente na casa dos Ramos. Foi o ar condicionado que se podia ligar e desligar pela internet e que fixava a temperatura e humidade tendo em conta as condições exteriores, o roupeiro com ligação directa ao site do IPMA e que cada manhã lhe apresentava o vestuário apropriado para aquele dia, uns sapatos que o avisavam quando precisavam de ser engraxados, o frigorífico que perguntava muito educadamente: “O leite está a acabar. Posso encomendar ou traz quando vier do trabalho?”

A tendência para a generalização da Internet das Coisas foi-se acentuando, até porque o grosso dos oponentes eram as pessoas mais velhas que, pela ordem natural das coisas e apesar do aumento contínuo da esperança de vida, iam, lenta mas definitivamente, saindo do mercado…

Mas quando a situação parecia ter atingido uma certa estabilidade, surgiu uma inovação que a curto prazo faria fechar a maior parte das escolas de formação profissional.

A empresa responsável por essa alteração radical foi a Wireless Skills, uma spin-off de um consórcio formado pelos departamentos de neurologia das cinco mais importantes universidades americanas, que realizaram um projecto cujo resultado foi, ao fim de cinco anos de intensa pesquisa, um modelo operacional do modo de funcionamento do cérebro humano.

Com base nesse modelo, a Wireless Skills desenvolveu um aparelho que permite implantar no cérebro de uma pessoa as capacidades e aptidões de um profissional. O processo através do qual fazem isso é super secreto, mas consta que gravam os padrões cerebrais dos melhores profissionais de cada ofício que são depois descarregados pelos seus clientes. As aptidões a descarregar podem ser escolhidas de um catálogo que dia a dia vai sendo ampliado.

Quando Flávio soube da existência desta invenção num fórum geek que subscrevia, logo encomendou uma unidade, e dez dias depois recebia por Express Mail um pacote da Amazon com o seu aparelho. Foi com um sentimento de feliz antecipação que rubricou o nome no tablet do transportador.

Abriu a embalagem e retirou cuidadosamente todo o conteúdo, pondo de lado a caixa para o caso de alguma coisa não estar em condições e ser necessário devolver. Conferiu com a lista que acompanhava a encomenda: um capacete (provido na superfície interior de vários eléctrodos), uma unidade de processamento e cabos de ligação. Flávio leu atentamente o manual de instruções - era uma pessoa muito meticulosa em tudo o que se referia a tecnologia - e fez as ligações de forma cuidadosa: do capacete à unidade de processamento e desta ao computador através da porta USB.

Como tinha planeado convidar o seu chefe e a mulher para um jantar, que teria lugar no fim de semana, resolveu testar o aparelho recém-adquirido fazendo download das aptidões de um chefe de cozinha e preparando uma refeição requintada. Encomendou pela net os ingredientes necessários - percorrer os corredores do supermercado a catar produtos das prateleiras era, segundo Flávio, um claro identificador dos infoexcluídos, pelo que nunca o apanhariam a fazer isso - e três horas depois um funcionário da grande superfície da qual era cliente estava a tocar-lhe à porta com a encomenda.

Flávio montou a câmara de vídeo num tripé, para ficar com um registo do seu desempenho, colocou o capacete, e usando a password que vinha com o equipamento, acedeu ao site da Wireless Skills e após 2 ou 3 cliques, a lista das aptidões disponíveis começou a correr no écran. Carregou na linha que dizia Chefs e o écran encheu-se de cores em movimento, num caleidoscópio que obrigava os olhos a fixarem-se de uma forma hipnótica, enquanto sentia um formigueiro na cabeça, nos pontos onde os eléctrodos tocavam no crânio. Passaram alguns minutos até desaparecerem as cores e aparecer uma mensagem que dizia “Download completed”. Nessa altura também o formigueiro na cabeça parou. Flávio tirou o capacete e pensou: “Não sinto nada diferente, será que foi mesmo feito o download?”

Resolveu então começar a preparar a refeição em que tinha pensado. Tirou os linguados da embalagem térmica e iniciou a separação dos lombos da espinha. Parecia que as mãos actuavam independentemente do cérebro, como se sempre tivessem sabido executar aquelas operações. Deitou azeite na frigideira, levou-o à temperatura ideal, fritou os lombos de linguado. Preparou uma maionese, que bateu vigorosamente até ficar no ponto. Estava a preparar o vinho para o repasto quando a mulher entrou na cozinha.

“O que estás a fazer?”

“A treinar a fazer uma refeição usando o Wireless Skills…”

“Isso já percebi, mas por que estás a mexer a garrafa dessa maneira?”

Foi aí que Flávio reparou que agitava vigorosamente a garrafa de Alvarinho Palácio da Brejoeira que tinha seleccionado para acompanhar a refeição. Achou aquilo estranho…

Parou o que estava a fazer, ligou a câmara de vídeo ao computador, descarregou o ficheiro que tinha gravado e começou a visualizar a gravação.

Logo desde o princípio lhe pareceu que os gestos não eram muito apropriados para as operações que estava a executar. A forma como tinha separado os lombos do linguado da espinha, a maneira como tinha mexido a maionese, tudo lhe parecia desajustado…

Com o pressentimento de que alguma coisa teria corrido mal, Flávio acedeu novamente ao site, abriu a lista de skills e fê-la deslizar até à linha Chefs. Reparou então que a linha imediatamente abaixo - as skills estavam listadas por ordem alfabética - era DIY. Do It Yourself!

Sentiu um arrepio e percebeu subitamente o que tinha acontecido. Por engano, tinha descarregado - e o seu cérebro tinha absorvido - os skills de um adepto de bricolage.

“E agora tudo se torna claro!”, explicou Flávio a Adozinda. A maneira como tinha tirado os lombos dos linguados era muito mais próxima do movimento de uma espátula a raspar papel de parede do que do movimento subtil com uma faca afiada que várias vezes tinha visto no Master Chef. Quando se viu a mexer a maionese, pareceu-lhe que estava a homogeneizar uma lata de tinta amarela acabada de abrir, e o agitar da garrafa de vinho que Adozinda tinha presenciado era tal qual o sacudir de uma lata de spray antes de aplicar a tinta!

Flávio tinha agora um problema complicado a resolver: só poderia descarregar os skills de cozinha depois de ter passado o efeito das capacidades que tinha absorvido, e segundo o manual de instruções o efeito do download no cérebro durava sete a dez dias. Mas o jantar estava marcado para dali a cinco dias. Adozinda, que era uma mulher pragmática, descobriu a solução.

“Não te preocupes que eu faço o jantar para o teu chefe. Mas entretanto, enquanto não desaparecem essas habilidades que absorveste, temos aqui em casa uma série de coisas que precisam de arranjo: o estore do quarto; o estendal da roupa; as portas do roupeiro que estão descaídas; a torneira da cozinha que está sempre a pingar; e ainda hei-de descobrir mais alguma coisa.”

E assim foi feito, porque Flávio já há muito tinha concluído que a lógica da mulher era em geral imbatível. E no dia do jantar, Adozinda preparou cabrito assado no forno, que ela fazia maravilhosamente e que foi muito elogiado pelo chefe e pela esposa do chefe, que até lhe pediu a receita. E daí em diante, Flávio passou a ser mais cauteloso em relação às novidades tecnológicas.

Tudo está bem quando acaba bem!

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

ELEUTÉRIO E O ESCRITOR FAMOSO

Para a Regina, que me deu a ideia…


Eleutério descobriu quase por acaso que o escritor famoso ia jantar habitualmente à Estrela da Junqueira – Refeições e Petiscos.
Eleutério era um grande admirador do escritor famoso. A prateleira de cima da estante comprada no IKEA vergava com o peso das obras primas produzidas pelo escritor famoso, e colado na parede por cima da televisão estava uma foto do escritor famoso em pose contemplativa, publicada há alguns anos no suplemento literário de um jornal diário.

Sempre que possível, Eleutério escolhia uma mesa ao lado, olhava disfarçadamente o que ele estava a comer e escolhia o mesmo, trocavam um aceno de cabeça e um sorriso à chegada ou à partida, até que a oportunidade se proporcionou num dia de jogo europeu. A Estrela da Junqueira estava cheia de adeptos para ver o jogo no plasma que o senhor Joaquim – dono e gerente do restaurante – tinha comprado recentemente, e o único lugar vago era na mesa ocupada por Eleutério. Este fez um gesto convidativo e uns segundos depois concretizou-se a sua aspiração de muitos anos: jantar em frente do escritor famoso.

Eleutério foi habilidoso: conversa de circunstância, alguns comentários sobre o jogo que se desenrolava e que ambos iam observando de forma distraída, um “Boa noite” mais caloroso à despedida. Eleutério ficou a saber o clube da simpatia do escritor famoso, e isso levou-o a passar a comprar jornais desportivos, onde se ia informando sobre o que ia acontecendo ao referido clube, o que poderia vir a revelar-se útil numa futura conversa.

Eleutério tinha da sua vida uma perspectiva altamente fantasiada. Considerava a maior parte do que lhe tinha acontecido, mesmo os acontecimentos mais triviais, como merecedores de divulgação. Quando começou o programa de televisão “A minha vida dava um filme” ainda pensou em candidatar-se, mas teve receio de que o formato televisivo não fizesse justiça ao seu percurso de vida.

Nunca pensou em relatar ele próprio esses acontecimentos pessoais porque se considerava manifestamente incapaz nas artes da escrita – e por uma vez tinha uma opinião correcta acerca de si próprio. Mas começou a acalentar um sonho: o de ver os acontecimentos marcantes da sua vida postos em letra de forma pelo escritor famoso.

E na consolidação da sua estratégia de aproximação, uma nova janela de oportunidade surgiu com a transmissão de outro jogo europeu e a (previsível) sobrelotação da Estrela da Junqueira, levando à partilha de mesa entre Eleutério e o escritor famoso. Aproveitando uma pausa na degustação dos carapauzinhos fritos com arroz de tomate – uma das especialidades da Dona Genoveva, mulher do senhor Joaquim e responsável pela cozinha – prato que ambos tinham pedido, e que Eleutério tinha passado a comer à mão seguindo o exemplo do escritor famoso, Eleutério disse, sem colocar grande ênfase na afirmação: “Sabe, senhor doutor” – era sempre assim, respeitosamente, que se dirigia ao escritor famoso – “a minha vida dava um livro”.

Este, cuja mão esquerda transportava um carapau, habilmente seguro pelo rabo, a caminho da boca, suspendeu o movimento, olhou para ele por cima dos óculos e disse: “Ai é, senhor Eleutério? Conte-me mais.”

E Eleutério embalou, e contou como quase se tinha afogado a primeira vez que tinha ido à praia, o bullying que sofrera na primária e no liceu porque era desajeitado nas aulas de ginástica, duas ou três histórias da tropa, cenas heroicas da empresa de contabilidade onde trabalhava, como daquela vez que tinha resolvido um problema no Excel que estava a bloquear a saída do balanço mensal de um cliente importante, a última reunião do condomínio onde a sua intervenção tinha decidido a votação de um assunto urgente, tudo isto e muito mais ele contou no decurso da segunda parte do jogo, enquanto o escritor famoso continuava a olhá-lo por cima dos óculos e acenava de tempos a tempos com a cabeça, encorajando-o a prosseguir.

Nessa noite, Eleutério mal conseguiu dormir de eufórico que estava. “Será que o escritor famoso vai transformar a minha vida num romance? Numa novela? Num conto? Numa crónica de jornal, no mínimo?”, estes eram os pensamentos que o faziam dar voltas na cama, sem conseguir pregar olho.
Nos dias que se seguiram houve muitos lugares vagos ao jantar na Estrela da Junqueira, pelo que Eleutério não teve oportunidade nem pretexto para contactar de perto com o escritor famoso.
Duas semanas mais tarde, num sábado de sol, comprou o jornal como fazia habitualmente no quiosque à esquina da sua rua e abriu-o imediatamente na página onde o escritor famoso tinha uma crónica semanal. E ficou paralisado!

A crónica do escritor famoso intitulava-se “A vida de Eleutério”. Nem sequer tinha alterado o nome! E em vez de ser um texto sério, onde os episódios marcantes da sua vida fossem descritos e comentados com elevação, o escritor famoso tinha transformado a sua trajectória pessoal numa história risível, destinada a provocar a gargalhada fácil nos leitores. O seu quase afogamento na infância era uma pilhéria, os acontecimentos do serviço militar eram um resumo do valente soldado Chveik em versão tuga, até se dava ao desplante de fazer rimas idiotas com o seu nome, como deletério, despautério, impropério, cemitério!

Debaixo de um sol radioso, os pensamentos de Eleutério eram negros! Regressou a casa, acendeu a lareira – o que só fazia uma vez por ano, quando trazia os seus pais já idosos para jantar no Natal – trouxe todos os volumes do escritor famoso que possuía e um a um, foi rasgando raivosamente as folhas que atirava de seguida às chamas.

Quando os livros se acabaram foi arrancar da parede a fotografia do escritor famoso, e ficou a vê-la enrolar com o calor, até que as chamas a consumiram e dela não restou mais do que cinza. E enquanto isto, Eleutério remoía pensamentos nada pacíficos sobre escritores em geral e sobre o escritor famoso em particular.


E nunca mais foi jantar à Estrela da Junqueira!

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

domingo, 22 de julho de 2018

Uma noite na Quinta da Regaleira

Deixei o carro à saída de Sintra e fiz o resto do percurso a pé. Fui andando cuidadosamente pela berma da estrada até encontrar o muro da quinta. Continuei mais um pouco e do escuro surgiu o André, tão de súbito que me assustou.

“Calma, sou só eu. Vamos lá!”

Colocou às costas a mochila que tinha no chão e eu segui atrás dele durante umas dezenas de metros até que ele parou e disse:

“É aqui.”

O muro tinha naquele ponto umas pedras salientes que o tornavam muito fácil de escalar. Rapidamente estávamos dentro da quinta. A lua já tinha nascido, e fomos seguindo sempre pela berma dos caminhos, utilizando a sombra das árvores, na direcção do Poço Iniciático. Chegados à entrada do Poço, dei comigo a pensar como raio tinha vindo parar a esta aventura…

………………
Desde muito novo sempre gostei de cenas ligadas ao oculto: histórias de fantasmas, filmes de terror, coisas assim. Isto fez-me conhecer muita gente com os mesmos interesses, em encontros literários, festivais de cinema, na Net…

Já não me lembro em qual delas conheci o André, e ao longo dos anos fomo-nos tornando amigos.

Tendo eu próprio como hobby a escrita, o ocultismo interessava-me como tema de ficção, como um faz de conta, como uma área com potencial para produzir narrativas interessantes. Foi com alguma surpresa que tomei consciência de que algumas pessoas realmente acreditavam em algumas daquelas histórias.

Uma dessas pessoas era o André.

Falava-me de vez em quando de um seu tio-avô, grande estudioso das ciências do oculto, que se correspondia com ocultistas de todo o mundo e organizava sessões de espiritismo. Esse seu antepassado vivia num solar na Beira, onde ele ia com alguma frequência pesquisar a biblioteca que lá tinha ficado. No regresso de uma dessas visitas encontrei-o entusiasmado.

“Já te disse que a biblioteca do meu tio-avô é um manancial de literatura ocultista. Imagina o que lá descobri desta vez!”

Com o que me pareceu verdadeira reverência, tirou da pasta que trazia um livro que me passou para as mãos. Encadernação a couro, tinha na capa escrito em letras douradas, ‘O Verdadeiro Método de Invocar os Mortos e Outros Espíritos que Habitam o Mundo do Além, escrito por O Guardião do Portal, impresso em França no ano MDCCLXXX’. Folheei-o rapidamente, e pareceu-me um repositório de receitas do tipo Livro de São Cipriano, mas obviamente mais antigo. Claro que não disse isto ao André; elogiei o livro e acrescentei qualquer coisa do género “A biblioteca do teu tio deve estar cheia de preciosidades” e ficámos por aí.

Estive algum tempo sem ver o André. Quando me apareceu subitamente no café onde costumo parar, vinha eufórico.

“Pá, tenho andado a estudar o livro que te mostrei da última vez. Muito detalhado, com descrições precisas dos procedimentos. Já preparei uma invocação e preciso da tua ajuda.”

“Preparaste o quê? E quem te disse que eu estava disposto a alinhar nisso, o que quer que seja?”

“Tens de vir, é o teu autor favorito, Edgar Allan Poe!”

“O quê, tu vais invocar o espírito de Poe?”

“Oh, yeah…”

“Para lhe perguntar o quê?”

“Bom, ainda não pensei muito bem… Oh pá, mas um tipo que morre aos quarenta anos tendo escrito o que ele escreveu, deve ter muita coisa a dizer…”

“Isso vai dar merda…”

“Não vai nada, pá! E descobri o sítio ideal para a invocação: o fundo do Poço Iniciático, na Quinta da Regaleira. Estive a fazer uns cálculos, e depois de amanhã uma altura óptima, porque a lua cheia vai passar praticamente na vertical do Poço por volta da meia-noite.”

Nem sei bem como, mas o tipo conseguiu espicaçar-me a curiosidade até obter o meu acordo em o acompanhar nesta aventura idiota.

E aqui estávamos nós a entrar no Poço Iniciático.

………………

André descia à frente com uma lanterna. Comecei a contar os degraus, mas quando cheguei a cem escorreguei, porque o piso ia ficando mais húmido, e com o esforço para me equilibrar distraí-me na contagem. Mais um pouco e chegámos ao fundo do Poço.

Pousou a lanterna no chão e da mochila tirou 5 velas, que dispôs em círculo, usando como referência pontos da rosa dos ventos embutida no chão. Quando lhe disse que as velas não estavam a igual  distância, respondeu-me que no livro dizia que isso não era importante, e eu calei-me.
Tirou da mochila um livro que colocou no centro da rosa dos ventos, e explicou-me que era o volume de contos de Poe recentemente editado. Enquanto realizava estas operações olhava para cima, para a abertura do Poço, com alguma ansiedade. Até que vimos a lua começar a surgir no buraco negro da abertura.

Nessa altura despejou sobre o livro gasolina de um frasco que trazia no bolso e pegou-lhe fogo. As chamas rapidamente ganharam altura.

Aí começou a entoar uma ladainha numa língua para mim desconhecida, presumo que fosse a invocação que tinha aprendido no livro da biblioteca do tio-avô. Pelo meio só reconhecia de onde em onde as palavras Edgar Allan Poe.

De súbito levantou-se um vento no fundo do poço, que apagou as velas e o fogo que consumia o livro e perante nós apareceu Edgar Allan Poe, ou a sua imagem, e era óbvio que não estava satisfeito.

Estúpidos viventes, por que viestes perturbar o meu repouso? Não fazeis a mínima ideia do tipo de energias com que estais a interferir! A fronteira que separa os nossos mundos é muito fina e pode facilmente romper-se com as vossas acções irreflectidas. De facto, neste preciso momento aproxima-se Lovecraft acompanhado das criaturas medonhas fruto da sua imaginação. Não sei se conseguirei segurá-lo enquanto a fronteira se reconstitui. Fugi daqui, imbecis inconscientes, fugi enquanto é tempo!

Corremos para o início dos degraus e continuámos a correr escada acima tão depressa quanto podíamos. Entretanto o Poço era varrido por um vórtice, o ruído que fazia parecia o reactor de um avião a meia dúzia de metros. Só quando chegámos ao nível superior o movimento do ar amorteceu.

Fizemos rapidamente o caminho de regresso até ao ponto onde tínhamos saltado o muro. Chegámos aos carros e cada um foi para casa.

………………

Não tornei a falar com o André nem tenho grande vontade de o fazer. Naquela noite, por culpa dele, apanhei o maior susto da minha vida!

Também nunca mais voltei à Quinta da Regaleira…