terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

Crime e Castigo na Era do Consumismo

Almerindo, o consumidor quase-ideal, circulava pelos corredores do hipermercado com o seu carrinho já quase cheio. Era uma actividade que lhe dava um enorme prazer (excepto no fim do mês, com toda a gente a queimar os ordenados e os inevitáveis encontrões) e perante uma prateleira cheia, fosse do que fosse, reagia como o cãozinho de Pavlov: exibia um comportamento compulsivo que o levava a pegar no(a) pacote ou lata ou caixa ou embalagem e juntá-lo(a) a tudo o que já transportava.
À entrada da secção “Faça Você Mesmo”, Almerindo viu um esplendoroso kit que incluía um berbequim, uma rebarbadora e uma lixadeira, três jogos de brocas, mais umas caixas com buchas e parafusos, tudo por 129,99 €. Oferta limitada!
Almerindo não era propriamente um engenhocas (na realidade era até um pouco desajeitado com as mãos) mas quando viu aquele kit na caixa colorida, com oferta da maleta de transporte, soube que sempre o tinha (inconscientemente) desejado e soube imediatamente que tinha de o levar.
Ao lado, fazendo figura de parente pobre, havia uma versão reduzida (só o berbequim e um jogo de brocas) por 49,99 €. Uma ideia brilhante surgiu no cérebro de Almerindo, e passá-la à prática foi uma questão de segundos: a etiqueta com o código de barras do preço mais baixo foi habilmente descolada e colada de novo sobre a de preço mais elevado!
No instante em que consumava tão nefando acto, Almerindo foi surpreendido por uma súbita aparição: precedido por dois anjos, surgiu perante os seus olhos o deus dos hipermercados!
Os anjos vinham na forma de duas meninas, de mini-saia e patins em linha, transportando uma faixa com letras fluorescentes que dizia: “Ponha o carro à frente dos bois / Compre agora e pague depois!”.
O deus dos hipermercados estava de fato e gravata, tinha em cada mão um telemóvel e ao pescoço um colar feito de cartões de crédito Gold. O rosto era estranhamente parecido com a cara do Eng. Belmiro. Quando falou, as suas palavras atraíram a atenção de Almerindo com o efeito magnético de um slogan publicitário:
- Almerindo, meu filho, tentar diminuir o lucro de uma grande superfície é um crime inominável, pelo qual vais ser punido. Ficas condenado a repetir até à eternidade o gesto sagrado de encher o carrinho das compras, porque quando te aproximares da caixa ele ficará subitamente vazio e terás que voltar ao princípio.
E numa de exibição de conhecimentos mitológicos, acrescentou:
- E mudarei o teu nome para Sísifo.
Abriu os braços, as meninas agitaram a faixa, os cartões Gold brilharam com uma luz fortíssima, que obrigou Almerindo a fechar os olhos. Quando os abriu, deus e anjos tinham desaparecido, deixando no ar o cheiro característico da secção “Perfumaria e Cosmética”.
E desde então Almerindo/Sísifo, errando pelo hipermercado, coloca no carrinho detergente, after shave, arroz, massa, cerveja e água tónica, salsichas e manteiga, queijo e pickles, vinho, água mineral, pão e croissants, e tudo o mais que pelo caminho vai encontrando e quando se aproxima da caixa o carrinho fica vazio e ele tem que voltar ao princípio. É estranho como nenhum dos outros clientes dá conta, mas as penas eternas se calhar são mesmo assim, só o condenado dá por elas, ou então os outros clientes também estão condenados, condenados ao consumo. Almerindo pensa que provavelmente é esta a verdade, e vai tecendo estes pensamentos enquanto continua a percorrer os corredores entre prateleiras e a encher o carrinho, continuamente, per sæcula sæculorum

3 comentários:

Carlos Estroia disse...

Belmiro- Deus dos hipermercados, não está mal visto.
Só agora conheci este blog.
Parabéns!
E obrigado pelas leituras.
;)

luis ene disse...

João, rindo aqui. A aparição dos anjos é já por si um pico. E até ao final ainda há mais.

João Ventura disse...

Carlos e Luís
Obrigado a ambos. Voltem sempre!

João