quinta-feira, 29 de março de 2007

Mitos da criação (1): Enchei a Terra...

Sem Nome foi um dos Antigos e viveu há muitos, muitos anos, ainda a Terra era jovem. Era um mago poderoso, que invocava os elementos, e falava com os animais, as plantas e as pedras.
Um dia, Sem Nome invocou um demónio. Colocou-se dentro do círculo mágico que tinha desenhado no chão e dizendo as palavras de invocação, surgiu um relâmpago que quase o cegou, um estrondo ensurdecedor e na sua frente apareceu, como que nascido das entranhas da Terra, a mais horrorosa criatura que ele alguma vez havia visto. Totalmente negro, excepto os olhos, como dois buracos vermelhos, a pele parecia couro, duas asas que se diriam de um morcego gigante, batendo raivosamente uma na outra, na mão um tridente de aspecto sinistro. Sem Nome precisou de fazer apelo a toda a sua coragem para conseguir olhá-lo durante breves momentos. O cheiro a enxofre era medonho, e ele sentiu aquele ser como se fosse o mal em estado puro, o nada, a perdição total. Teve que lutar contra o pânico que o empurrava para fugir daquela criatura. Pronunciou rapidamente o feitiço de afastamento e o demónio desapareceu da sua vista.
Sem Nome descansou durante alguns dias, e depois de ter recuperado as forças, tornou a invocar um espírito, mas desta vez um espírito bom – um anjo.
Uma vez pronunciadas as palavras, foi como se o céu se abrisse, e junto dele surgiu um ser alado, de uma brancura deslumbrante, com uma beleza sem mácula, na mão uma espada flamejante. Desta vez Sem Nome sentiu-se invadido por uma sensação de paz total, como se aquela criatura radiasse o bem à sua volta, e teve que fazer um esforço para não correr na sua direcção. Respirou fundo, pronunciou as palavras de afastamento, e o anjo desapareceu.
Sem Nome meditou longamente sobre as duas criaturas que o seu poder mágico tinha conseguido chamar à sua presença. O bem e o mal absolutos. O tudo e o nada. A plenitude e o vazio.
E preparou-se para a etapa seguinte.
Durante três dias jejuou, alimentando-se apenas de água e frutos silvestres. Precisava de sentir as suas faculdades apuradas, os seus sentidos completamente despertos.
E voltando ao mesmo local, desenhou no solo um novo círculo mágico, cujo poder reforçou com palavras antigas e poderosas. Depois, tornou a invocar o demónio e logo a seguir o anjo.
Surgidas do céu e da terra, as duas criaturas olharam-se e voaram uma para a outra, a irresistível atracção dos contrários, infinitamente forte quando os seres que se atraem são eles próprios infinitos de sinal oposto. Foi como o choque de dois universos; poeiras branca e negra formando uma nuvem densa que ocultou a espada flamejante do anjo rasgando o peito do demónio e o tridente deste trespassando o coração do anjo. E quando a nuvem de poeira se dissipou, Sem Nome viu um homem, caído no chão, nu.
Verificando que os dois espíritos tinham desaparecido, saiu do círculo mágico e aproximou-se do homem, que dormia. Acordou-o e conduziu-o a casa, onde lhe deu roupa e comida. Chamou-lhe Filho, e teve que lhe ensinar tudo, como a uma criança, mas ele aprendia depressa. E ensinou-o a chamar-lhe Pai.
E quando o achou preparado, começou a ensinar-lhe magia.
Anos mais tarde, estavam ambos, sentados numa rocha, contemplando o nascer do Sol sobre o deserto, Sem Nome falou ao homem sobre a sua origem, descrevendo minuciosamente todas as acções que tinham conduzido ao seu aparecimento. E concluiu, dizendo:
– E assim, meu filho, não és nem anjo, nem demónio, embora possivelmente tenhas herdado algo de cada um deles. És um homem!
E disse-lhe depois:
– Desde o teu nascimento nunca mais invoquei espíritos, mas vou tornar a fazê-lo, e precisarei da tua ajuda. Foi para isso que te ensinei as artes da magia. Porque vou invocar uma legião de demónios e uma legião de anjos para que se guerreiem.
Fez uma pausa e concluiu:
– Porque a Terra precisa de ser povoada de homens...

terça-feira, 27 de março de 2007

segunda-feira, 26 de março de 2007

Todos diferentes, todos iguais...

Os quatro terrestres apreciavam a primeira saída da nave depois da longa viagem. Sergei Schmidt, germano-russo, o engenheiro de sistemas, filmava o mar em diversas gamas de frequência, pois estava intrigado com a fosforescência que por vezes aparecia na superficie líquida. Chegando ao topo da colina, avistaram a avenida que parecia ser um local de passeio muito apreciado pelos indígenas. Brigitta Eco, exo-bióloga, filha de pai sueco e mãe italiana, ajustou a viseira do capacete para o modo telescópico, observou uns momentos os arcturianos e exclamou:
— Vejam, que giras são as crias!
Joshua Makulela era o chefe da missão. O transmissor implantado no ouvido emitiu um estalido e ele passou a dar atenção às mensagens que o controlo da nave lhe começou a enviar, informações de rotina, confirmação da reunião no dia seguinte com o Conselho Octópode. Quando terminou a transmissão, começou a ouvir a conversa que Takuji Barbosa mantinha com Brigitta:
— (...) e antes de entrar para a universidade, os meus pais mandaram-me um ano para o Japão. Fiquei em casa do meu avô, que era pescador na ilha de Rishiri, próximo da ponta norte de Hokkaido, e fui com ele algumas vezes pescar lulas gigantes. Eram muito parecidas com estes polvos andantes, a pesca era trabalhosa, mas davam uns bifes muito gostosos. Será que estes...
O nipobrasileiro interrompeu a frase e soltou uma gargalhada, a olhar para a cara incomodada de Brigitta, que além do mais era vegetariana. O chefe sentiu-se na obrigação de intervir:
— Barbosa – o tratamento pelo apelido mostrava que não estava satisfeito – outro comentário politicamente incorrecto como esse e serei obrigado a registá-lo no diário de bordo!

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— Mamã, o que é aquilo? – perguntou o juvenil arcturiano, apontando com dois tentáculos de cor rosada, indicação clara do seu estádio ainda assexuado de evolução.
— Não se deve apontar – corrigiu a mãe, dirigindo uma das antenas de visão para a direcção indicada. Focando o olho multifacetado, observou o que tinha provocado o espanto do produto do seu ovo mais recente.
O filho mais velho, que se distraía saltitando sobre três tentáculos de cada vez, olhou e disse, exibindo os conhecimentos adquiridos numa aula de exobiologia:
— São bípedes. De onde virão, papá?
O pai arcturiano esclareceu a família.
— O “Notícias de Arcturus” falou deles. São de um planeta chamado Terra, que orbita uma estrela chamada Sol, na periferia da galáxia. Vieram em missão de contacto e não devem ser hostilizados.
— São bons para comer? – perguntou o filho, com o apêndice sugador a pulsar de antecipação.
— Não te ensinaram na escola que não se deve comer outras espécies inteligentes? – admoestou a mãe.
— Vamos continuar o nosso passeio – ordenou o pai, e a família prosseguiu a sua deslocação pela avenida marginal, cruzando-se com outros membros da sua espécie, que saudavam com um ritual função da hierarquia relativa, estabelecida pelo rigoroso (e muito complexo) protocolo arcturiano.
Os mais pequenos seguiam agora mais à frente, numa brincadeira em que o filho fingia que pretendia dar um nó em dois tentáculos do juvenil, que lhe escapava com guinchos de satisfação. E disse a mãe arcturiana:
— Não falei há pouco para não impressionar os miúdos, mas eles são tão... anormais, que até senti ondulações na epiderme. Imagina, apenas quatro tentáculos, e dois deles reservados para a locomoção!
Ao que o pai arcturiano retorquiu:
— Eu não sou xenófobo, mas acho mal que o Conselho Octópode autorize a entrada de alienígenas em zonas da cidade tradicionalmente reservadas ao lazer familiar!

sexta-feira, 23 de março de 2007

Em Delfos

Em Delfos vivia a pitonisa. Mas longe havia chegado a sua fama. Das profecias que fizera. Das soluções que dera a muitas questões importantes. De como salvara cidades da derrota.
Uma caverna era a sua morada. Mas pelo trilho de terra batida que a ela conduzia mais gente passava do que por muitas estradas que levavam a templos dedicados a Zeus.
Ofertas se amontoavam na entrada. Poderosos e humildes ali acorriam, buscando remédio para as suas inquietações. E a todos a resposta era dada, embora nem todos a entendessem.
Um dia, a Delfos chegou um estrangeiro. Algo de indefinido, de misterioso, despertou a curiosidade local. É um guerreiro, dizia um, induzido pelo seu porte erecto, seu caminhar firme e seguro, embora despido de arrogância. É um mágico, outro afirmava, pois que o ouvi murmurar estranhas palavras, como de encantamento.
Na praça pública parou o estrangeiro. No chão, à sombra do carvalho milenário, se assentou. Do saco que trazia ao ombro tirou pão escuro e queijo branco de ovelha, e comeu. Algum tempo ficou, a cabeça apoiada nos joelhos, ninguém sabe se dormindo ou meditando. Levantou-se, bebeu água fresca do poço, tomou o cajado e o bornal e afastou-se em direcção à caverna da pitonisa.
Dentro, a luz trémula de algumas lâmpadas de azeite ocultava, mais do que revelava, o rosto da pitonisa. Envolta num manto escuro de lã grosseira, estava sentada, num banco tosco de madeira, junto do buraco de água fervente cujas emanações, alguns diziam, ajudavam o seu espírito a deixar o corpo durante os transes divinatórios. A um canto, uma jovem vestida com uma túnica branca, tocava de quando em quando uma flauta. Acordes tristes como lamentos, que morriam em múltiplos ecos nas paredes de rocha nua.
O estrangeiro parou a alguns passos da pitonisa. Com o joelho direito no chão, conforme o costume, falou:
- Mulher, tu cujo espírito tem acesso aos deuses do Olimpo e, segundo dizem, consegue até entrar no reino dos mortos e regressar de novo; tu, de cujas visões todos falam; tu que lês no futuro como se ele estivesse escrito na tua frente, ouve:
Viajar tem sido a minha vida, e procurar tem sido o meu destino. O pó de muitos caminhos já sujou as minhas sandálias. Conheci e aprendi com sacerdotes do Egipto, e com poderosos magos em terras ainda mais a Oriente. Desci ao Sul, onde feiticeiros negros me ensinaram a sua arte. Fui para Ocidente, até onde começa o grande mar que não tem fim. Viajei para o Norte, onde a terra é todo o ano branca e gelada, e onde tribos bárbaras oferecem vidas humanas em sacrifício aos seus deuses. Falei com mercadores e pedintes, guerreiros e pastores, escravos e homens livres. E nunca ninguém me deu a resposta ao que te vou perguntar:
Vale mais encontrar e perder, ou nunca encontrar?
É maior a tristeza depois do fim, ou a amargura por nunca haver princípio?
É melhor desejar, aceitando a dor, ou não desejar, escolhendo a ausência?
Assim falou o estrangeiro. Longamente a pitonisa olhou o fumo que saía da água fervente. Mas a sua boca manteve-se fechada. Ao fim de muito tempo o estrangeiro ergueu-se, deu meia volta e dirigiu-se para a saída da caverna, caminhando lentamente, os ombros curvados como se suportassem um enorme peso.
E nunca a pitonisa de Delfos encontrou a resposta para as perguntas do estrangeiro.
Porque, mesmo para os deuses do Olimpo, é mistério o que se passa no coração dos homens.

Esta estória, escrita há muitos anos, foi agora recuperada da arca das velharias...

sexta-feira, 2 de março de 2007

Seguem-se duas Mínimas em jeito de homenagem ao cartunista José Bandeira, inventor da modalidade, cujo Bandeira ao Vento visito com frequência.

Revelação

Quando percebeu que "peripatético" se tinha tornado um insulto, passou a dar aulas sentado.

Idade

Eu ainda sou do tempo em que o adjectivo "ambicioso" era ofensivo.