O Discurso
O dia apresentava-se magnífico. O sol brilhava, quando o cortejo oficial entrou no largo da vila. Foguetes estalaram, criancinhas agitaram bandeirinhas, o muito povo presente aplaudiu entusiasticamente. Os aplausos redobraram de intensidade quando o primeiro-ministro, envolto pela presença discreta dos elementos da segurança, saiu do carro, acenou à multidão e subiu à tribuna, seguido dos membros da sua comitiva. Estes foram-se distribuindo pelos lugares, de acordo com um critério complexo, função da hierarquia, fidelidade ao partido e importância na política local.Vivia-se o ambiente das grandes ocasiões! Ia ser inaugurado o monumento ao emigrante, construído com os donativos dos filhos da terra que, lá fora, tanto tinham contribuído para criar a imagem do português como trabalhador esforçado, competente e ordeiro.
A banda dos bombeiros, o sol refulgente nos capacetes e instrumentos, atacou o hino nacional. A assistência cantou, desafinada mas com entusiasmo, e o "marchar, marchar!" final foi submerso por uma vibrante salva de palmas.
O presidente da câmara dirigiu-se ao microfone e deu início ao seu discurso de boas vindas:
Senhor primeiro-ministro, senhores ministros, excelência reverendíssima, senhores secretários de estado, minhas senhoras e meus senhores: é uma honra para esta vila receber pela primeira vez... pela primeira vez... pela primeira vez...
As pessoas entreolharam-se. Um assessor do primeiro-ministro dirigiu-se rapidamente ao presidente da câmara e tomando-o pelo braço, conduziu-o para detrás da tribuna, enquanto fazia um sinal ao regente da banda, que começou novamente a tocar o hino. Quando os últimos acordes se perdiam no ar, o presidente da câmara reapareceu, dirigiu-se ao microfone e reatou o discurso de boas vindas:
...pela primeira vez Vossa Excelência, chefe do executivo, que tanto tem contribuído para o desenvolvimento desta região...
Ouviram-se suspiros de alívio enquanto o discurso prosseguia.
O assessor surgiu junto do primeiro-ministro. Este inclinou a cabeça discretamente e o assessor segredou-lhe:
- Uma partição de memória bloqueada. Sobreaquecimento provocado pela tensão excessiva. Tive que substituir dois chips. Mas precisa de uma revisão geral. Estes modelos de autarca são já um pouco antiquados, sabe...
O primeiro-ministro falou-lhe no mesmo tom de voz:
- Comunique amanhã sem falta ao Departamento de Compras que devem substituir imediatamente todos os que estejam fora do prazo de garantia.
Depois o primeiro-ministro olhou em volta. O dia continuava magnífico e ele adorava banhos de multidão. Recordou as últimas sondagens e os indicadores claros de retoma económica que tinham sido publicados na véspera.
O primeiro-ministro sorriu. Já estava tudo outra vez sob controlo...
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