sábado, 25 de fevereiro de 2006

Descrição do Objecto Obscuro

É redondo. De uma redondez total, não tem ponta por onde se pegue, apenas se pode observar pousado numa superfície, e mesmo aí é preciso ter cautela, pois pode facilmente rolar. É também escorregadio ao tacto, as mãos deslizam sobre ele, não há aderência, poderíamos chamar-lhe untuoso, se essa não fosse uma designação já um pouco gasta.
Observêmo-lo então, com o máximo possível de detalhe. Na sua superfície – porque o objecto não tem interior, não tem fundo – inscrevem-se palavras. Por vezes uma palavra salienta-se, dando a ideia que poderíamos usá-la para pegar no objecto, para lhe dar um sentido. Mas se o tentarmos, logo verificamos que essa palavra se junta às palavras vizinhas, mistura-se com elas, dilui-se no mar de palavras que cobrem a superfície do objecto.
Essas palavras não se destinam a cumprir qualquer função de comunicação, mas apenas a dar a ilusão disso. As palavras estão lá para fazer vibrar sentimentos na mente de quem olha/ouve o objecto: os cérebros têm zonas que entram em ressonância com palavras de diferentes tipos, pelo que a escolha das palavras que compõem o objecto é criteriosa, e é geralmente feita recorrendo a especialistas, pagos a peso de ouro.
Assim, há uma classe de palavras que se destinam a fazer vibrar as convoluções nacional-patrioteiras, outras os medos/temores irracionais, outras ainda a matriz mágico-religiosa que constitui o substracto de muitas das nossas emoções.
O objecto que tenho vindo a descrever faz parte do nosso quotidiano, tendendo a surgir com mais frequência em períodos especiais do nosso viver colectivo, chamados “campanhas eleitorais”. É conhecido pelo nome de “discurso político”.

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