quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Odisseias Fantásticas

Bruno Jacinto arrancou a meio do mês com um agregador de blogues relacionados com o Fantástico nas suas diversas vertentes, que dá pelo nome de Odisseias Fantásticas.
Ainda está no início, mas já lá moram cerca de uma dúzia, entre os quais o "Das palavras..."
E há um convite expresso para candidatos a inquilinos...

sábado, 25 de outubro de 2008

Cobertura Televisiva Total

Naquele país longínquo(*), o primeiro ministro tinha uma das habituais reuniões com os seus assessores.
“Existem no país apenas 1400 casas sem televisão”, leu ele no memorando que lhe tinha sido entregue.
“Apenas 1400 casas...?” perguntou enfaticamente.
O assessor responsável pelo memorando acenou com a cabeça, concordante.
“Onde você escreveu apenas 1400 casas sabe o que eu leio? Eu leio ainda 1400 casas! Não está a ver o que isso significa? Isso significa que ainda há 1400 casas onde o Telejornal não chega, onde não se vê uma inauguração, onde não se assiste a uma conferência de imprensa dada por um ministro... Não percebe as implicações disto?”
O assessor, sentindo o gozo disfarçado dos colegas pela posição desconfortável em que se encontrava, ainda tentou resistir:
“Mas, senhor primeiro ministro, os restantes factos são muito positivos. Veja, somos o primeiro país da Europa em número de casas com dois aparelhos, a média de consumo diário de televisão é de 3 horas e 37 minutos...”
“Isso são prémios de consolação”, atalhou o primeiro ministro, imperativo. E continuou em tom dramático: “É preciso fazer alguma coisa para reduzir essas 1400 casas... a zero!”
“Vamos preparar um plano de distribuição de televisores a essas 1400 casas. Arranjar um fornecedor, obter os aparelhos, e anunciar, numa acção conjunta da Inserção Social com o País Tecnológico, um novo programa...”. Pensou uns segundos e completou: “TV para Todos!”. Se entregarmos 200 aparelhos por mês, o programa durará 7 meses, com a cobertura informativa adequada. E o nosso país será o primeiro no mundo, no mundo!, com cobertura televisiva total. E será um passo gigantesco, gigantesco, contra a info-exclusão!”
Olhou em volta, satisfeito com os sorrisos que viu nos assessores: “E agora, meus senhores, há trabalho a fazer! Go! Go! Go!”
O primeiro-ministro adorava usar estas interjeições no fim das reuniões. Dava-lhe uma sensação de dinamismo, e gostava de visualizar aquelas trinta e tal pessoas saindo dali a correr, como se cada uma transportasse consigo um grão do poder que emanava do chefe do executivo.

----- ooo -----

O programa TV para Todos! foi lançado com pompa e circunstância. E as reportagens sucederam-se sobre aqueles cidadãos, em geral habitantes do país profundo, beneficiados com aquela oferta de televisores.
Joaquim Lucas, jornalista, trabalha no jornal “Ecos da Semana”. O chefe de redacção encarregou-o de preparar uma peça sobre o TV para Todos! para ser publicada, em jeito de balanço, quando o programa terminar.
Joaquim sabe que o ângulo humano é o fundamental. Vê todas as reportagens que saem nos diversos canais generalistas sobre o programa, embora as ache um bocado monótonas: descrição do agregado familiar, político que chega, entrega o televisor, o casal e filhos sorridentes a agradecer, ligam o aparelho, fim da reportagem.
O dia de hoje não é excepção. Joaquim, acomodado no sofá frente ao televisor, bebe uma cerveja e come uma sanduiche que trouxe da loja de conveniência à esquina da rua, e vai vendo mais uma série de entregas, quando surge uma que desperta o jornalista de investigação que existe nele. Começa como as outras, mas o que lhe chama a atenção é o casal referido não aparecer, as imagens mostram apenas fotografias deles, uma no dia do casamento, outra já mais velhos, uma imagem rápida do aparelho oferecido, duas frases curtas pelo jornalista destacado para a reportagem e transição para a seguinte. Mas por que razão o sr. António Justino não apareceu na reportagem?
Joaquim fareja aqui alguma coisa, pode ser a salvação da peça que tem que preparar e em relação à qual ainda não descobriu uma estrutura adequada. Abre o portátil, liga-se à web, vai ao site www.tvparatodos.pt e percorre a lista das pessoas que receberam (ou receberão) televisores até encontrar António Justino.
Toma nota da morada, Vale da Ribeira, um pequeno lugar nos arredores de Lisboa. Mete-se no carro, introduz o nome do lugar no GPS e põe-se em marcha.
Cerca de quarenta minutos depois está em Vale da Ribeira. Entra na taberna “A estrela da manhã” onde lhe indicam a localização da casa do Ti Justino. É uma pequena moradia, já praticamente no exterior do lugar.
Joaquim dirige-se para lá, pára o carro, observa a casa térrea, já um tanto decrépita, e percorre a pé o carreiro que leva à entrada. Quando vai bater à porta, sente uma pressão nas costas e alguém atrás dele diz-lhe: “Quietinho, não faças asneiras e não te acontece nada.” E noutro tom de voz: “Abre, temos uma visita.”
A porta abre-se, e surge um homem vestido de preto, com óculos escuros, um auricular no ouvido esquerdo, que se desvia para deixar entrar Joaquim e o companheiro. Não dizem quem são, mas Joaquim não precisa disso. Já antes contactou com elementos do Serviço Secreto e aqueles não enganam. O que se mantém atrás de Joaquim revista-o rapidamente. “Está limpo”, anuncia.
O outro fala: “Identificação.” Joaquim puxa da carteira profissional e mostra-lha.
“O que vieste fazer aqui?”
O jornalista pensa que não ganha nada em estar a inventar, e conta a verdade, como se sentiu intrigado por ver a reportagem sem que aparecessem as pessoas que recebiam o televisor, e que pensou que isso podia dar uma história.
Os dois agentes parecem ficar convencidos. Um deles ainda comenta para o outro: “Eu bem disse ao tipo da televisão que podia haver quem estranhasse a reportagem, mas o gajo insistiu, que as entregas tinham que ser todas registadas, e mais isto e mais aquilo...”
O que estava dentro de casa conduz Joaquim à outra porta da sala, abre-a e deixa-o espreitar para outro compartimento, escassamente mobilado, mal iluminado por uma lâmpada suspensa do tecto, onde estão sentados num sofá um homem e uma mulher, amarrados e amordaçados. Torna a fechar a porta.
“António Justino e a mulher?”, pergunta Joaquim. Os agentes confirmam.
“E porquê isto?”
“Quando chegámos com o televisor o Justino começou aos berros, que não queria o televisor para nada, precisava era de dinheiro para comprar sementes e rações para o gado, mas isso o governo não lhe dava, e continuou com insultos aos ministros e aos políticos em geral. Não seria bom que isso aparecesse na televisão. Por outro lado, se não fizéssemos a entrega, o objectivo do Governo de reduzir a zero o número de casas sem televisão não seria cumprido. Não podíamos permitir que um agricultor ignorante e analfabeto afectasse desta forma os objectivos do Governo, pois não?”
Joaquim não consegue deixar de concordar.
“E foi o único caso de... resistência?”
“Houve mais um ou dois; em 1400 pessoas há sempre algumas ovelhas ranhosas! Mas aí tivemos mais tempo, e conseguimos arranjar um vídeo que encaixou perfeitamente na reportagem. Desta vez não foi possível...”
“E o que vão fazer com eles?”
“Nada, libertamo-los daqui a umas horas, quando a entrega deles já não for notícia.”
“E se eles falarem?”
“Ora, quem vai acreditar num casal de agricultores meio patarecos? Vão ter tanta credibilidade como essa malta que jura que foi raptada por extra-terrestres e que andou a passear num OVNI.”
“E eu, posso ir-me embora?”
“Podes, mas atenção: o que viste e ouviste aqui não é notícia...”
Joaquim sabe detectar uma ameaça quando a ouve.
“Claro, eu não vi nada, na realidade nem estive aqui.”
“Acreditamos que não, mas vamos estar a observar-te.”
Enquanto conduz de volta a casa, Joaquim Lucas vai pensando: “Que pena, uma história com tanto potencial, e logo calha ser tão sensível do ponto de vista político. Eu podia transformá-la numa peça de ficção... Nãã, alguém ia relacionar com os acontecimentos e eu ficava à pega com os Secretos... Vou ter que deixar cair a história... Lá vai ter que ser a peça do costume, a cobertura total do país, a nota patriótica quanto baste, meia dúzia de frases tiradas de outras tantas entrevistas com contemplados, a era da informação, blá, blá, blá... Que pena..."

(*) Aviso aos leitores: esta frase de abertura deve ser considerada equivalente ao mais habitual “Qualquer coincidência com factos ou pessoas reais é pura semelhança”.

Agradeço a Carlos Fiolhais que num post no De Rerum Natura apresentou a informação que inspirou este texto.

domingo, 12 de outubro de 2008

Sinais de pontuação

Agradeço ao Nuno Fonseca uma frase, que falava de vírgulas, e que despoletou a escrita deste texto.

Memorando

De: Joaquim Silva, fiel de armazém
Para: Dr. Armando Aguiar, chefe do Departamento de Compras
Assunto: Sinais de pontuação

Em cumprimento da O.S. 75/2008, tenho a reportar o seguinte sobre a existência em armazém de sinais de pontuação:

1. Pontos de interrogação: quantidade suficiente. O consumo não é muito elevado, porque hoje em dia são raras as pessoas que se interrogam, e interrogar outros é como se sabe uma operação de risco, que tem de ser realizada com as devidas cautelas.

2. Pontos de exclamação: já praticamente ninguém se admira ou se espanta (o que não é de admirar), pelo que o consumo tem sido também muito baixo. Quantidade suficiente.

3. Reticências: como se sabe, não é prudente colocar reticências, em particular a sugestões vindas de cima, pelo que este é um sinal muito pouco usado. Se, de forma imprevista, o seu consumo aumentasse, poderiam sempre fabricar-se com 3 pontos finais.

4. Dois pontos: De uso cada vez menos frequente, a quantidade existente, embora pequena, é suficiente. Numa emergência podem usar-se dois pontos finais alinhados na vertical.

5. Ponto e vírgula: Acusado de cortes no discurso, este sinal continua a ser olhado com suspeita. A quantidade em armazém é suficiente. Em caso de necessidade pode ser construido com um ponto final e uma vírgula alinhados na vertical (o ponto em cima, a vírgula em baixo).

6. Ponto final: A quantidade em armazém precisa ser reforçada, não tanto por razões de utilização actual – verifica-se que os discursos continuam a ser pouco assertivos e portanto pouco finalizadores – mas porque podem ser utilizados na construção de reticências, dois pontos e ponto e vírgula. Propôe-se a compra de uma embalagem de 50000 pontos, porque o custo por ponto é francamente mais baixo do que nas embalagens de 20000 pontos.

7. Vírgulas: Sinal de grande utilização. Uma vírgula seguida de uma frase que repete por outras palavras o que acabou de ser escrito é um recurso estilístico muito frequente. O nosso fornecedor Acentos & Sinais SARL tem durante este mês as vírgulas em promoção, pelo que se propõe a compra de 2 embalagens de 20000 vírgulas.

8. Propõe-se ainda a compra de 5000 acentos agudos e graves, pois com muita frequência são colocados erradamente, e sempre que isso acontece têm de ir para o lixo, porque não podem ser reciclados.

9. Sugere-se no entanto que antes de firmar as encomendas, seja feita uma consulta ao Departamento Jurídico, para tentar prever as implicações da entrada em vigor do Acordo Ortográfico sobre os padrões de consumo de sinais de pontuação na nossa organização.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

A vida está difícil para todos...

O chefe estava bravo, num daqueles dias em que o melhor é ouvir e calar!
“Uma vergonha!Vocês têm a lata de chegar aqui depois de uma noite de trabalho e entregar-me cento e cinquenta e três euros?”
“Oh chefe, não temos a culpa de no quiosque dos jornais a registadora estar quase vazia. E o restaurante que assaltámos a seguir também tinha pouco dinheiro; disse o dono que hoje a maior parte dos clientes paga com cartão...”
O Fusca bem podia ter ficado calado! A cara do chefe ficou mais encarnada e ele berrou:
“Não quero cá desculpas esfarrapadas. Eu estou a perder dinheiro com vocês e isto não pode continuar assim. Vou ter que cortar nas despesas!”
Olhámos uns para os outros, com receio do que iria sair dali.
“Primeiro, downsizing e outsourcing. Vamos passar a usar mão de obra temporária para a condução dos carros.”
O Mãozinhas, que é habitualmente o condutor, encolheu-se todo e perguntou a medo: “E eu, chefe?”
“Vais ter que te ir embora. O colégio onde andam os meus filhos precisa de um motorista para a carrinha de transporte dos miúdos. Vais lá inscrever-te, que eu dou um toque ao responsável dos recursos humanos do colégio.”
O Mãozinhas ficou com um ar muito infeliz, a imaginar-se a transportar criancinhas mimadas, e nós cheios de pena dele.
“Segundo, os assaltos vão passar a ser sempre de dia. Enquanto não aumentarem as receitas, eu não posso continuar a pagar horas extraordinárias.”
“Mas chefe, nós podemos trabalhar à noite sem horas extraordinárias”, avançou o Alicate, que estava a começar a ver o caso mal parado.
“Nem pensar! E depois ter o sindicato à perna, tribunal de trabalho e o diabo a quatro? Acaba o trabalho nocturno e pronto!”
“E mais: se me aparecem outra vez com uma caixa Multibanco com as notas todas pintadas, obrigo-vos a ir devolvê-la ao sítio de onde a tiraram!”
“Mas chefe, quando lá chegássemos com a caixa estava lá a bófia e íamos todos dentro”, disse o Neurónios, que não é propriamente um exemplo de esperteza.”
“Será a paga da vossa incompetência!”, respondeu o chefe, ainda mais irritado.
Fez uma pausa, tirou 2 comprimidos de uma caixinha, meteu-os à boca, e empurrou-os para baixo com meio copo de água. Aqueles eram os comprimidos para a tensão, mas ele só costumava tomar um de cada vez. A coisa estava preta!
“Vocês já apreciaram bem a cena? Cinco manguelas a quem eu pago salário, segurança social, subsídios de Natal e de férias, horas extraordinárias, aparecem-me aqui ao fim da noite, com o carro todo escalavrado, porque a fugir da bófia roçaram num muro – e ainda vou ter que pagar ao batechapas – e dizem-me que o resultado do trabalho foram cento e cinquenta e três euros? Cento e cinquenta e três euros? Estão a gozar comigo ou quê? Querem que eu vá à falência?”
Continuava tão bravo que nem tive tomates para lhe dizer que a carteira que gamei de esticão à velhinha à saída da missa só tinha dentro 78 cêntimos...

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Notícias do trânsito

Ifigénio Branco gostava muito da estrada – de facto, oficialmente, uma avenida – onde todos os dias passava no ir e vir entre casa e trabalho.
A Avenida das Acácias – Ifigénio gostaria de conhecer o responsável por esse nome, para lhe agradecer o rasgo de imaginação – era uma via que ligava a urbanização periférica onde residia com a auto-estrada que depositava o fluxo diário de tráfego nas entranhas da cidade.
Era, na opinião de Ifigénio, uma avenida bonita, que consistia essencialmente numa recta, uma curva e outra recta, sempre ladeada de prédios de habitação económica. A única relação com o nome era, de onde em onde, uma árvore raquítica, criando o necessário contraste com o betão. A paisagem era ainda complementada pelos múltiplos graffiti que ao longo dos anos se tinham multiplicado sobre as paredes.
Um único facto entristecia Ifigénio todas as manhãs: o facto de a Avenida das Acácias nunca ser mencionada no noticiário sobre o trânsito. Ele era a IC19 engarrafada, ele era a Via de Cintura Interna com problemas, a A23 com um ocasional despiste, a A1 com trânsito lento no sentido Norte-Sul, o tráfego na A2 a arrastar-se a partir da segunda ponte do Feijó, a segunda circular, tudo aparecia na rádio excepto a Avenida das Acácias.
Um dia Ifigénio decidiu que tinha de fazer alguma coisa para corigir a situação. Depois da curva, os carros normalmente aceleravam para tentar chegar mais cedo à entrada na auto-estrada, onde iriam depois passar o resto do percurso a passo de caracol.
Nessa manhã Ifigénio preparou-se psicologicamente, fez a curva, acelerou como todos fizeram e subitamente travou a fundo. O carro detrás bateu nele, o detrás bateu nesse, e em poucos segundos, a Avenida das Acácias era um pandemónio.
Ifigénio pegou no telemóvel e, civicamente, ligou ao 112 para relatar a ocorrência e despoletar o envio de socorros. A seguir, ligou para a TSF e para a Antena 3 – as duas estações que habitualmente ouvia de manhã – e reportou o acidente.
Com o rádio do carro ligado, foi com prazer que minutos depois ouviu a notícia “Na Avenida das Acácias, o trânsito encontra-se parado devido a um choque em cadeia envolvendo pelo menos 10 viaturas. Os bombeiros e o INEM dirigem-se para o local do acidente.” E a confirmar, ouvia, cada vez mais fortes, as sirenes dos veículos de socorro.