Sondagens
Joaquim Casquinha Limão era um cidadão exemplar. Fiel de armazém numa empresa importadora de electrodomésticos, casado, tinha um filho a frequentar o secundário. Regularizava pontualmente a sua situação fiscal, o que até nem era difícil, uma vez que o IRS era mensalmente retido pelo seu empregador: Importações Ilimitadas – Electrodomésticos Globais, SARL. Exercia também religiosamente o seu direito de voto sempre que os acontecimentos do universo político lhe davam tal oportunidade. Mas no emprego abstinha-se de emitir opiniões sobre a condução da causa pública – até porque o seu chefe tinha em geral opiniões diferentes das suas – mantendo as suas conversas limitadas à discussão dos jogos da Super-Liga, ou por vezes, vá lá, aos da Taça de Portugal.Com o avizinhar das eleições, Joaquim Limão ficava atento a tudo o que pudesse contribuir para o seu esclarecimento. Uma manhã, ao conduzir em direcção ao emprego, a estação de rádio que escutava habitualmente deu-lhe a ouvir os resultados da última sondagem efectuada. A notícia começava “Os portugueses acham que” e seguia por aí fora. Distraiu-se um pouco com as percentagens – que de resto na sondagem seguinte já seriam provavelmente diferentes – mas a sua atenção focou-se novamente quando o locutor começou, “nos termos da lei”, a ler a ficha técnica. E aí houve um pormenor de que tomou consciência pela primeira vez. Tinham sido feitas 813 entrevistas por telefone; e este número, quando junto à frase do início da notícia, fez iniciar no seu espírito uma linha de raciocínio que viria a ter consequências relevantes.
Joaquim era bom a fazer contas de cabeça, uma capacidade muito útil na sua profissão. Vamos supor que foram 1000 entrevistas, para facilitar, pensou ele. Como somos mais ou menos 10 milhões, cada entrevistado representa – pequena pausa para o cálculo – 10 mil portugueses. DEZ MIL PORTUGUESES!
Joaquim Limão, que de entrevistas pelo telefone só tinha a experiência de alguns telefonemas para sua casa onde umas meninas o tentavam convencer que ele tinha sido premiado em concursos que ele desconhecia, e que só precisava de ir receber o prémio a uma morada que lhe davam e – não, não podemos enviar pelo correio – ficou de repente fascinado por este processo em que as respostas de uma pessoa ao telefone representavam dez mil dos seus concidadãos. Dez mil! E se responder de forma errada, há dez mil portugueses cuja opinião é contabilizada erradamente. E as consequências disto ao nível da imagem que o país faz de si próprio? Será que o entrevistado tem consciência da responsabilidade que pesa nos seus ombros enquanto responde? A estatística é uma coisa fantástica, pensou Joaquim, que tinha um temor reverencial por tudo o que fosse ciência.
Dois dias depois, estava Joaquim Limão alapado na poltrona em frente à TV a assistir ao início do concurso “Quem quer ser milionário” – normalmente acertava na pergunta antes do concorrente, o que levava o seu filho a perguntar-lhe inúmeras vezes por que é que ele não concorria – quando o telefone tocou. Deslocou-se ao átrio da entrada para atender e às primeiras palavras do outro lado da linha apercebeu-se que era uma entrevista para uma sondagem. Meio aturdido, deu o seu consentimento. Mas quando veio a primeira pergunta:
- Acha que o actual primeiro ministro acredita no Pai Natal? – Joaquim, que ia fornecer honestamente a sua opinião, parou para pensar. Será que o que eu vou dizer representa o que pensa o vizinho do 3º esquerdo? E o porteiro do prédio? E o senhor António do talho? E o senhor Lopes da tabacaria? E o senhor Jacinto, do lugar de hortaliça? E os restantes, muitos dos quais não conheço, para perfazer os dez mil que eu represento neste momento?
E perante esta multidão de honestas dúvidas, a resposta de Joaquim Casquinha Limão foi uma nada explícita “Não sabe / Não responde”. E a mesma à pergunta seguinte. E à seguinte. E assim sucessivamente.
Até à última pergunta da entrevista.
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