sábado, 22 de julho de 2006

Bonecas Russas

O quadro representa um homem que pinta um quadro, onde está pintado um homem que pinta um quadro, onde está pintado um homem que pinta um quadro, onde...
Desta série infinita, o primeiro termo da série, que a si próprio se pensa como "o pintor", mas que designaremos de uma forma mais geral como pintor1 (pintor índice um) conseguiu escapar-se; é ele que circula pela exposição, com indumentária de artista ma non tropo, recebendo cumprimentos da crítica e dos felizardos que receberam convite para a vernissage. Enquanto troca palavras de circunstância, não se apercebe que o pintor2 se esforça desesperadamente por se libertar da prisão bi-dimensional em que se encontra encerrado. Está cansado de estar na mesma posição há tanto tempo, mas a tela prende-o de uma forma rígida, quase absoluta.
Se o pintor1 se apercebesse disto, teria razão para ficar extremamente preocupado; mais, se tomasse consciência das implicações, pegaria num maçarico e queimaria a tela até não ficar mais do que um resíduo de material carbonizado. Porque se o pintor2 se conseguir libertar, esse facto irá despoletar uma terrível sequência de acontecimentos: o pintor3 passará ao nível onde anteriormente se encontrava o pintor2 e tentará por sua vez passar ao espaço tri-dimensional. O que agora acontecerá de forma mais simples, pois a velocidade de passagem para espaços de dimensão mais elevada é uma função exponencial do número de passagens anteriores. E é fácil (embora angustiante) visualizar a sucessão infinita de pintores a deslocar-se de tela para tela, com velocidade cada vez mais elevada, e a materializar-se (melhor, a tri-dimensionalizar-se) no meio da exposição, todos eles cópias perfeitas do pintor1 - afinal o quadro é um auto-retrato - o pânico generalizado, a desvalorização subsequente (sim, porque se o valor comercial de uma obra é proporcional à sua raridade, o mesmo se passará em relação ao artista!).
O pintor (pintor1 na nossa nomenclatura), segurando na mão esquerda um gin tonic e na direita um cigarro cujo fumo desenha complicadas figuras enquanto ele faz gestos para reforçar os seus argumentos, passou agora pela frente da tela, discutindo o post-moderno com o responsável do suplemento "Artes e Letras" de um conhecido semanário. Olhou para o quadro e teve a sensação que a tela não estava perfeitamente lisa, parecendo repuxada nalguns sítios. Tomou nota mentalmente para no dia seguinte falar ao moldureiro, para que tenha mais cuidado quando se trata de trabalhos para uma exposição...


(Menção Honrosa nos Jogos Florais da Junta de Freguesia de S. Domingos de Benfica em Outubro de 1997. Publicado no Vol. 1, Nº 2 do fanzine Hyperdrivezine, editado por Ricardo Loureiro, Verão 2004 )

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