terça-feira, 14 de julho de 2020

A PERSISTÊNCIA DAS GRALHAS

Para o Rogério Ribeiro, que sabe a razão deste conto 


A revisão do capítulo 3 tinha levado mais tempo do que o esperado (’como tudo na vida’, pensou Alfredo. ‘Bem, nem tudo’, respondeu mentalmente a si próprio, num diálogo interior em que frequentemente se comprazia. ‘Só as coisas chatas, as agradáveis até levam menos tempo’...)

Antes de passar ao capítulo seguinte, resolveu dar uma última leitura ao que tinha terminado. E na terceira página, o seu olhar treinado detectou uma que tinha a certeza de ter corrigido: a palavra “inçerteza” (sim, há escritores que cometem erros “de palmatória”). Como diabo a gralha tinha tornado a aparecer?

Corrigiu e continuou a leitura. Até ao fim do capítulo descobriu mais duas gralhas, que corrigiu, e que novamente estava seguro de ter corrigido na revisão.

Imprimiu o capítulo e guardou as folhas impressas numa gaveta. E abriu o ficheiro com o capítulo 4, para continuar a trabalhar. Cerca de duas horas mais tarde tinha terminado o trabalho. Mas antes de ir dar uma volta para espairecer, obedecendo a uma leve sensação de desconforto, abriu de novo o ficheiro do capítulo 3, tirou as folhas impressas da gaveta e começou a comparar o que tinha no écran e no papel, página a página, palavra a palavra. E quando chegou à terceira página a sua respiração ficou suspensa: a palavra “inçerteza” estava de novo no ficheiro. Tal como as outras duas gralhas mais à frente! Fechou o computador e pegou no telemóvel.

Deixou tocar durante algum tempo e desligou. ‘Deve ter o telemóvel sem som, é o costume’. Ele e o Zé Luís tinham sido colegas no secundário. O amigo sempre tinha sido um entusiasta dos computadores, tinha optado por Ciências e Tecnologias e seguido para Engenharia Informática. Alfredo, mais interessado nas letras, escolhera Línguas e Humanidades e terminara com um mestrado em Tradução e Serviços Linguísticos. Ainda se encontravam com alguma frequência, em particular quando havia algum evento sobre ficção especulativa, de que ambos eram ávidos consumidores.

‘Preciso falar contigo! Podemos almoçar hoje?’

Mensagem curta e concisa, premiu Send e ligou a televisão para ver mais um episódio de Devs. Ainda não tinha acabado o genérico, chegou a resposta.

‘Almoçar não dá, já tenho uma reunião marcada. Uma bejeca ao fim da tarde?’

‘OK’

E Alfredo voltou ao visionamento da série.



--- xxx ---


Pouco passava das seis e a cervejaria enchia lentamente. Alfredo entrou, pediu uma imperial ao balcão e sentou-se numa mesa com vista para a porta. Minutos depois chegou Zé Luís.

“Viva! Deixa-me ir buscar combustível e já falamos”. E desandou em direcção ao balcão. Voltou daí a pouco com uma cerveja na mão.

“OK, então o que é que se passa?”

Alfredo explicou-lhe detalhadamente o que se tinha passado com a revisão do texto. Quando terminou, o amigo ficou calado alguns segundos.

“Tenho de olhar para as entranhas do teu computador, mas só posso ir a tua casa depois de amanhã. Mas, entretanto, podemos ir fazendo alguma coisa.” E enquanto dizia isto, foi tirando o portátil da maleta onde o trazia, abriu-o e ligou-o, de uma bolsa no interior da maleta tirou uma pen, e copiou para lá qualquer coisa. Entregou a pen ao amigo, desligou o portátil e arrumou tudo.

“Quando chegares a casa, instalas o programa que vai aqui na pen. Este programa vai monitorizar tudo o que entra e sai do teu computador. Podes continuar a trabalhar, porque se os gajos te quisessem lixar todo o trabalho já o tinham feito. Quando acabares um bloco de trabalho guarda uma cópia numa pen ou num disco externo, mas desligas esse suporte assim que acabares de copiar. Depois de amanhã à noite passo na tua casa e aí já devemos ter alguma coisa mais objectiva para trabalhar.”

E ditas estas palavras acabou de beber a imperial, apertou a mão a Alfredo e zarpou.

No dia seguinte, Alfredo enviou uma mensagem a Zé Luís.

‘A que horas estás a pensar chegar amanhã? Vou encomendar pizza.’

A resposta foi sucinta: ‘8’.


--- xxx ---


À hora combinada, Zé Luís estava a tocar à campainha. Alfredo fê-lo entrar para a cozinha e abriu as caixas de pizza que o estafeta da Glovo tinha trazido dez minutos antes. Tirou duas cervejas do frigorífico e sentaram-se a comer. Quando terminaram, Alfredo disse:

“Deixa isso, que eu depois arrumo. Vamos para a sala e enquanto começas, vou fazer dois cafés.”

Ligou a máquina, pegou em duas cápsulas, e minutos depois levava os cafés para a sala, onde Zé Luís já estava a trabalhar.

Ainda tentou acompanhar o que ele estava a fazer, mas só via linhas de código a deslizar pelo écran, enquanto os dedos de Zé Luís saltavam no teclado. Não lhe disse nada, porque sabia que os informáticos quando engrenam num trabalho não gostam de ser interrompidos. Pegou no último livro que tinha começado e sentou-se no sofá a ler. Passada quase uma hora, Zé Luís levantou-se da cadeira e espreguiçou-se.

“OK, já tapei os ‘buracos’ por onde eles entraram. A partir de agora já não vais ter mais brincadeiras com as tuas revisões. Agora queria ver se percebo quem estes tipos são. Mas para isso vou ter de usar o meu computador, que está artilhado com umas ferramentas que o teu não tem.”

Desligou o computador de Alfredo e abriu o seu. Novamente durante largo tempo o único som na sala era o martelar do teclado. Ao fim de algum tempo Zé Luís levantou-se e soltou um “Uauuu!”

“Não vais acreditar donde isto veio!”

Perante o olhar interrogativo de Alfredo, continuou:

“Já ouviste falar em Deep web ou Dark web? Não são a mesma coisa, mas muita gente pensa que sim. Não interessa agora os pormenores, mas é uma parte da web que não é acessível através dos motores de busca. Uma espécie de catacumbas numa cidade onde a generalidade das pessoas anda por ruas e estradas. Encontra-se lá de tudo! E com um bocado de sorte e de pensamento lateral, e com as pegadas que eles deixaram no teu computador, consegui chegar ao grupo responsável pelo que te aconteceu. E ouve o nome: ‘Exército Divino contra a Perfeição Humana’.

Alfredo fez uma cara de incredulidade que levou o amigo a soltar uma gargalhada. Este continuou:

“O racional é muito simples. Primeiro: Só Deus é perfeito. Segundo: Tentar fazer algo perfeito é pretender ser igual a Deus, o que é, sem mais considerações, uma atitude blasfema. Terceiro: Os membros do Exército Divino têm como missão introduzir imperfeição nas criações humanas.”

“Nota que não se propõem destruir o que fizeste. Apenas introduzir o grãozinho de imperfeição que faz com que a tua criação nunca possa aspirar à perfeição divina.”

“E o que vais fazer?”

“A eles? Nada, deixá-los em paz. Estes ainda são dos tipos mais inofensivos que podes encontrar na Dark net. O teu problema está resolvido. A partir de agora, gralhas num texto revisto por ti só as que tu próprio deixares passar.”

Deu outra gargalhada e acrescentou: “Vamos dar uma volta para desmoer a pizza!”