sexta-feira, 29 de setembro de 2017

As vírgulas perdidas de Saramago

O meio literário foi recentemente agitado por uma descoberta só equiparável à da famosa arca de Fernando Pessoa.

As vírgulas (e restantes sinais de pontuação) que Saramago não colocou nos seus romances, e que se conjecturava pudessem ter sido destruídas pelo famoso escritor, foram encontradas há cerca de um mês numa cave da sua casa em Lanzarote.

A equipa responsável pelo achado, pertencente ao Departamento de Arqueologia Literária da Universidade de Peniche e Berlengas, é a mesma que encontrou os maços de cigarros vazios amachucados de António Lobo Antunes e as esferográficas roídas na ponta com as quais Rodrigues dos Santos escreveu os primeiros drafts das suas obras primas.

“São gavetas e gavetas cheias de vírgulas”, disse o investigador chefe da equipa, “mas tudo muito arrumadinho, uma gaveta para cada romance”.

O ministro da Cultura, de visita a uma exposição das penas de pato utilizadas por Camilo Castelo Branco na escrita de ‘Amor de Perdição’, fez uma breve declaração, congratulando a equipa pela descoberta das vírgulas perdidas de Saramago.

“Um acontecimento notável no meio literário português”, declarou o ministro.

domingo, 23 de julho de 2017

A Mina das Palavras

Às oito é a mudança de turno. Os trabalhadores que saem passam pelas cabines de inspecção onde são submetidos ao Teste de Chomsky-Jakobson, que essencialmente consiste na recitação de frases padrão para detecção de palavras escondidas. Alguém que seja apanhado a contrabandear palavras é submetido à inibição. Ficar 3 meses sem conseguir falar e a comunicar apenas por gestos é um castigo bem duro, mas o pior é a marginalização, não raro violenta, que a sociedade pratica contra os traficantes de palavras. Quem for apanhado segunda vez… não se sabe qual a pena, porque ninguém foi apanhado segunda vez.

Desde há muito se conhece o poder das palavras. O homem lembra-se de ouvir o seu avô - que foi mineiro toda a vida e que o criou após a morte prematura dos seus pais - dizer mais que uma vez, quem controla as palavras, controla tudo. Toda a fileira das palavras é um monopólio do Estado. A mineração, as operações de processamento intermédio, a embalagem, a distribuição, a venda final.

Qualquer cidadão, quando inquirido, tem de demonstrar que está autorizado a usar o vocabulário que possui. A PdP - Polícia das Palavras - é a entidade com poderes para deter, interrogar, castigar ou eliminar alguém que tenha um comportamento desviante em relação às palavras.

O homem, cuja identificação é M2067, uma cara inexpressiva no meio de muitas outras - passar despercebido é uma arte que se aprende - desce no elevador que leva os mineiros desde a entrada até ao nível -6, o mais profundo em exploração. O homem tem um segredo, é ventríloquo, o que lhe permite pronunciar palavras enquanto tem outras alojadas nas cordas vocais. Nunca deixes que ninguém descubra este teu dom, nem digas a ninguém que o tens, era o aviso diário do avô. Se esta sua característica, que o torna num perfeito contrabandista de palavras, fosse conhecida das autoridades, M2067 (apenas 67 para os companheiros de turno) seria sumariamente anulado e o seu corpo enviado para as câmaras de reciclagem. Por isso ele é em extremo cauteloso e procura sempre apagar-se no meio dos seus camaradas mineiros.

Em certos sectores da mina, à mistura com palavras triviais tendem a aparecer em grande quantidade palavras relacionadas com um tema comum. M2067 esteve há algumas semanas a trabalhar na galeria 129, com um filão de teor muito elevado em palavras como “empreendedor”, “mercados”, “ajustamento”, “ambição”, “empréstimo”, “austeridade” e outras do mesmo tipo. Soube por um dos funcionários administrativos da mina que há países grandes compradores desta classe de palavras.

Enquanto caminha, 67 vai repassando o mapa da mina na sua cabeça. Embora nunca o dê a entender, ele conhece a mina melhor que os engenheiros que dirigem a exploração. As horas passadas com o avô a memorizar localizações de poços e galerias foram extremamente valiosas; o velhote tinha trabalhado na mina uma vida inteira e seria capaz, se fosse necessário, de percorrê-la de olhos fechados. Tens de encontrar a galeria dourada, dizia-lhe muitas vezes, e a forma como o dizia levava o homem a pensar que aí estaria a solução para mudar, não sabe bem o quê, porque não tem palavras para o definir.

À equipa de que faz parte foi hoje atribuída uma galeria com palavras pouco valiosas: preposições, artigos, palavras com uma sílaba, duas sílabas, raras com três sílabas. Apesar do seu baixo valor, são estas palavras que que formam a base da conversa corrente, pelo que há que extraí-las constantemente. É abundante o veio destas palavras baratas, e os homens vão enchendo vagonetas de palavras que são empurradas até ao monta-cargas que as transporta para à superfície, onde são submetidas à lavagem e seguidamente à triagem, onde são separadas por categorias, embaladas e enviadas para a distribuição.

Enquanto vai fazendo o seu trabalho, 67 está sempre atento a palavras valiosas que por vezes aparecem incrustadas em aglomerados de palavras quase sem valor. Foi quase por acaso que há dois anos descobriu a palavra “irrevogável”. Conseguiu escondê-la, contrabandeá-la para fora da mina e vendê-la a uma rede especializada em “exportação”. Disse-lhe mais tarde o seu contacto na rede que tinha sido vendida a um político estrangeiro.

É a meia-hora para almoço e os homens espalham-se e sentam-se ou deitam-se para descansar um pouco, comendo qualquer coisa das lancheiras que trouxeram. M2067 desloca-se para uma zona menos iluminada e quando vê que ninguém está a olhar afasta-se rapidamente, em direcção a uma entrada de galeria bloqueada por onde passaram antes de chegar à face onde estão agora a trabalhar. Ele sabe que uma entrada bloqueada significa que do outro lado há palavras que a direcção da mina decidiu não extrair. Pode ser simplesmente um filão esgotado.

67 examina o cadeado que prende a corrente para ver se será fácil forçá-lo, quando na sua cabeça ressoa um dos conselhos do avô, procura nos sítios menos óbvios. Recua, passeia o feixe de luz da lâmpada a toda a volta e há uma zona na parede oposta da galeria que atrai a sua atenção, umas partículas de poeira que dançam no foco da lâmpada, aproxima-se e sente uma corrente de ar que sai de uma fenda debaixo de uma pedra saliente. O homem hesita um momento, tira o ferro que traz entalado no cinto e começa a picar por baixo da pedra. O material da parede é friável e com poucos minutos de escavação obtém uma abertura suficiente para rastejar através dela. Do outro lado é uma galeria, não tão larga como as que estão em exploração, onde tem que haver largura para os carris das vagonetas. Antes de prosseguir por essa galeria, o homem tapa a abertura por onde entrou, de modo a torná-la não detectável a quem passar do outro lado.

A galeria prolonga-se por algumas dezenas de metros, que o homem percorre, devagar, explorando com a luz da lâmpada à sua volta à medida que vai progredindo. De súbito a galeria desemboca numa câmara bastante mais vasta, e o mineiro fica extasiado com o que vê. Há veios riquíssimos que percorrem as paredes, e são palavras que o homem nunca encontrou, mas que sabe instintivamente que são palavras importantes, porque ao serem pronunciadas é como se abrissem janelas na sua mente: “liberdade”, “justiça”, “igualdade”, “solidariedade”, “democracia”, “fraternidade”. Esta só pode ser a Galeria Dourada de que o avô lhe falava, e estas palavras que estão ali à espera de serem extraídas e usadas ele terá que as passar a outros. E ganha subitamente a consciência que, a partir de agora, esse será o objectivo da sua vida.

quinta-feira, 29 de junho de 2017

A TERTÚLIA DOS QUE NÃO VIAJAM

Dedicado aos 100FUGAS


Não é um grupo grande. A admissão de novos membros é feita por convite, após discussão e concordância unânime de todos os tertulianos.

A ideia base do grupo é bem simples: para quê ir visitar a grande muralha da China imerso numa multidão de chineses, levando empurrões e pisadelas, quando se pode apreciar a arquitectura daquele famoso monumento na fotografia em papel couché de um guia de viagens ou numa imagem no ecrã de um computador? Que prazer se tira de visitar Veneza e observar um canal malcheiroso engarrafado de gôndolas transportando turistas tirando selfies, comparado com o que resulta da observação do mesmo canal numa foto cuidadosamente enquadrada, com uma única gôndola para dar a atmosfera local?

A tertúlia reúne regularmente nas noites de quinta-feira, na sala de jantar da leitaria Estrela da Manhã, por amável cedência do proprietário. Há nesse dia folga do pessoal e a leitaria não serve jantares.

As sessões seguem invariavelmente o mesmo formato. Sob a presidência do decano, que declara aberta a sessão, um dos membros, designado na semana anterior, inicia a palestra com a frase ritual: “Eu nunca estive em…” seguida do nome de uma cidade. E então descreve com detalhe os pontos de interesse da referida cidade, castelos, pontes, igrejas, estátuas… Quando há anos a tertúlia começou, os materiais de apoio eram basicamente folhetos das agências de viagens e publicações editadas pelos organismos locais de turismo, que eram passados de mão em mão para apreciação dos tertulianos. Mas com o desenvolvimento das novas tecnologias as apresentações foram-se tornando mais sofisticadas, incluindo informações e fotografias obtidas através do google ou da wikipédia, visualizadas usando um projector ligado a um computador portátil.

O decano da tertúlia é o Esteves da papelaria, alvo do respeito de todos os tertulianos por nunca ter viajado! Nado e criado no bairro, herdou a papelaria por morte do seu pai, e é ele o grande animador daquele grupo.

Naquela noite era a vez do Antunes, dono da oficina de bate-chapa, conhecido entre os amigos por “come e bebe”, devido à sua atracção pelos prazeres da mesa. A sua alcunha estava perfeitamente ajustada ao seu aspecto físico.

A um sinal de Esteves pronunciou a frase ritual: “Eu nunca estive em Segóvia”.

E iniciou a sua apresentação com uma descrição bem organizada da cidade património mundial, localização na comunidade de Castela e Leão, o Alcazar, com o Real Colégio de Artilharia, a Catedral - as palavras iam acompanhando bonitas imagens obtidas na Net - a Casa de los Picos - muito parecida à nossa Casa dos Bicos, comentaram alguns tertulianos - , o cemitério judaico, o Castelo, a Casa de la Moneda, onde ao longo de trezentos anos foi cunhada a moeda espanhola, o aqueduto romano, construído no primeiro século da era cristã e que transportava água para a cidade  desde o Rio Frio a cerca de 17 quilómetros…

“E à sombra do aqueduto há um restaurante onde se come o melhor pulpo asturiano que eu já alguma vez…”

O Antunes calou-se subitamente, ao tomar consciência de que se tinha deixado levar pelo entusiasmo… A cara começou a ficar vermelha, e a sua atrapalhação atingiu o pico quando viu o olhar de reprovação do Esteves.

Este apenas disse: “A forma como falaste leva-me a concluir que já estiveste em Segóvia, o que torna a frase com que iniciaste a tua apresentação – Eu nunca estive em Segóvia - obviamente falsa. Se tens alguma coisa a declarar em tua defesa, fá-lo agora. Se não, e em consequência da violação do artigo 2º dos Estatutos, deixas neste momento de pertencer à Tertúlia dos que não viajam, pelo que peço que te retires.”

De olhos baixos, o Antunes saiu da sala.

O Esteves consultou um livrinho de apontamentos e anunciou: “Na próxima sessão a apresentação ficará a cargo do Joaquim. Está encerrada esta sessão.”

Os membros da tertúlia foram saindo em pequenos grupos, comentando entre si, em voz baixa, o que se tinha passado. Esteves foi o último, arrumou o projector e o computador portátil, de que era fiel depositário, apagou a luz e ao passar pelo balcão despediu-se do dono da leitaria, agradecendo a cedência do espaço.

Uns minutos mais tarde, Esteves subia as escadas carcomidas do velho prédio onde vivia. Entrou no 2º Esquerdo e fechou a porta com duas voltas da chave. Pousou a maleta com o computador e o projector e foi direito a uma gaveta da cómoda antiga, que abriu e de onde extraiu um envelope amarelecido pelo tempo. Deste tirou uma fotografia e meia dúzia de papeis de rebuçado, cuidadosamente alisados. A foto mostrava um casal e uma criança, tendo como fundo um edifício com um letreiro que anunciava: Galerias Preciados.

Observou a foto durante algum tempo. Ainda recordava com saudade aquela viagem com os pais a Badajoz, no ano em que fizera o exame da 4ª classe. Mas a sua reputação como decano da tertúlia sobrepunha-se a tudo o resto.

Colocou a fotografia e os papeis dos Caramelos Viuda Solano num cinzeiro e chegou-lhes a chama de um isqueiro. Ficou a olhar as chamas que em menos de um minuto fizeram desaparecer foto e papeis em fumo e cinza.

Foi deitar-se aliviado. A sua posição como decano continuava sólida. As provas de que alguma vez tivesse viajado tinham sido totalmente destruídas.


terça-feira, 16 de maio de 2017

MÁSCARAS

 Ideias para o próximo Carnaval 
(Produção de 91... As sabáticas sempre foram períodos criativos 😛)