domingo, 6 de novembro de 2022

O AFINADOR TEMPORAL


Já o seu pai, e o pai do seu pai, e os outros antepassados que não tinha conhecido se dedicavam à afinação temporal. Não se sabe quem descobriu que o motor do tempo eram os relógios, que para que o tempo fluísse era necessário um tique-taque ritmado. Na ausência de relógios tudo ficava estático, exactamente igual ao que fora no minuto anterior. Nas casas, em cada compartimento havia sempre um relógio, empurrando o tempo segundo a segundo.
Quando a comunidade queria honrar a memória de algum ilustre cidadão falecido, retirava todos os relógios da casa onde ele tinha vivido, e o interior da habitação ficava assim paralisado no tempo. Essas casas tornavam-se locais de veneração, e os visitantes tinham de deixar os relógios à entrada, para que o interior da casa se mantivesse inalterável pelos séculos vindouros. O afinador sentia o vazio destes locais com o tempo suspenso, como se fossem buracos numa trama bem tecida.
Anos atrás, um dos habitantes da cidade resolveu ir-se embora. Durante muito tempo ninguém teve notícias dele, até que um dia regressou. E contava histórias extraordinárias de locais onde o tempo fluía sem necessidade de relógios para o empurrar. Onde a entropia aumentava em todo o lado, e não apenas onde houvesse um relógio a provocar o seu crescimento.
De um modo geral,  a população reagiu com incredulidade ao que ele dizia. Sobretudo os mais velhos, que não se inibiam de exprimir a sua descrença e rejeição perante ideias tão absurdas quanto ofensivas. Estava programada uma reunião ordinária do Conselho da Cidade, e começou a circular, boca ao ouvido, que seria apresentada uma proposta para que aquele homem, fonte de ideias subversivas, fosse banido da cidade. Alguém lhe disse, e antes que isso acontecesse, ele pegou na sua reduzida bagagem e numa madrugada ainda escura, afastou-se pela estrada por onde tinha chegado.
A cidade regressou à sua calma habitual. Mesmo o desaparecimento, nos meses seguintes, de dois ou três jovens, apenas provocou alguns comentários em voz baixa. A versão mais comum dos acontecimentos era que teriam dado crédito àquelas notícias estapafúrdias e teriam ido à procura do local onde o tempo fluía livremente.
O afinador, indo de casa em casa na sua contínua tarefa de manutenção dos relógios, foi-se apercebendo de pequenas alterações no comportamento dos seus concidadãos.  Minúsculos detalhes que passariam despercebidos a alguém menos observador.
Era a dona de casa que parava, absorta, olhando em frente sem ver, até que o cheiro da sopa queimada a fazia despertar do seu torpor. Ou o moleiro que se esquecia de deitar o grão na tremonha e ficava, pensativo, a ver a mó rodar em vazio.
No dia da sua visita mensal ao relógio da torre, o afinador resolveu ir verificar com os seus próprios olhos as descrições que tinha ouvido. Nessa noite, com a cidade adormecida, fez uma mochila com alguma roupa, alimentos e a sua caixa de ferramentas, fechou a porta à chave e afastou-se pela estrada que saía da cidade.
Enquanto caminhava, ia pensando em como o tempo avançava nos campos cultivados. Talvez o ritmo dia/noite fosse suficiente para o empurrar, ou o barulho do vento nas folhas tivesse uma componente regular imersa no ruído aparentemente caótico.
Três dias levou a chegar à cidade mais próxima, bastante maior do que aquela de onde vinha. Percorreu as suas ruas com vagar, procurando indícios de mecanismos para empurrar o tempo, sem os encontrar. Havia relógios, por certo, mas parecia terem uma função passiva. Visitou um museu, local que percebeu ser destinado à preservação do passado, mas dentro do edifício o tempo fluía como em todo o lado.
Passou numa oficina de relojoeiro que tinha à porta um cartaz com os dizeres “Precisa-se aprendiz”. Entrou, conversou com o dono, e ajustou um salário (pequeno) e as restantes condições.
Alugou um quarto nas proximidades e no dia seguinte apresentou-se ao trabalho. O patrão logo se apercebeu que não tinha contratado um mero aprendiz, pelo que, a breve trecho, lhe aumentou o salário. A forma quase intuitiva como detectava avarias e as reparava rapidamente conquistaram a simpatia dos clientes.
Alguns anos passaram e o patrão, idoso e sem filhos, propôs-lhe sociedade. Tempos depois, com a morte deste, o afinador tornou-se ele próprio o proprietário do negócio. E pelas suas mãos continuaram a passar os relógios dos habitantes da cidade, para afinar ou reparar. Deixou de pensar nos relógios como máquinas de empurrar o tempo, e passou a vê-los simplesmente como objectos que mediam a passagem do tempo.
— xxx — 

Pensa por vezes na cidade onde nasceu e viveu uma parte da sua vida. Imagina que, pouco a pouco, à medida que os relógios forem parando por falta de manutenção, a cidade irá ficando cada vez mais parada no tempo. Imagina que dentro de alguns anos será descoberta por arqueólogos e o seu achamento dará grandes parangonas nos jornais, “Uma cidade onde o tempo não corre!”, o que atrairá os físicos e os filósofos, sempre interessados em discutir a natureza do tempo.
Mas isso serão problemas para a Academia, pensa o afinador. Ele só tem de se preocupar em limpar os mecanismos, lubrificar as rodas dentadas, eventualmente substituir uma peça já gasta nos relógios que lhe são confiados. E é isso que continuará a fazer enquanto o rio do tempo o continuar a transportar.