sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Escrita "condicionada"

Escrever sujeito a condições restritivas constitui um exercício que pode produzir resultados interessantes. Os constrangimentos mais habituais são a extensão (número de palavras ou de caracteres) e/ou o tema.
Os visitantes deste blogue já aqui têm visto referências à revista Minguante, onde tenho colaborado desde o Número Zero (apenas falhei o Nº 3, devo ter-me distraído...).
Cada número da Minguante tem um tema, e cada contribuição não pode exceder 200 palavras. Neste primeiro post do ano, coloquei aqui alguns dos textos que lá tenho publicado. Antes de cada um está a indicação do tema e a ligação para a revista onde podem ler mais textos sobre o mesmo tema.
Para os que se possam sentir tentados, o próximo tema é SUPERSTIÇÃO e a data limite de envio 15 de Janeiro. Mais informações no site...

E Feliz Ano Novo!



Tema: O BANAL

Um conto banal

Era um conto banal. Uma linguagem nem rebuscada nem demasiado simples, um tema que não pecava pela originalidade, descrição do ambiente aceitável, desenho das personagens mediano, um desenrolar da acção – se se lhe podia chamar acção – sem surpresas. Banal era de facto uma classificação perfeitamente ajustada. Foi enviado para o concurso de contos porque o autor não tinha mais nada escrito e era o último dia do prazo.
Inesperadamente – ou talvez não – obteve o primeiro prémio. Numa transcrição parcial da acta da reunião do júri, constituído por três críticos literários muito cotados na praça, pode ler-se:
“(...) descrição pungente mas ao mesmo tempo com uma distanciação brechtiana da bidimensionalidade da vida nos subúrbios das grandes cidades (...) personagens vazias como vazio é o seu quotidiano (...) desde o fim do nouveau roman que não surgia uma obra literária que tão bem representasse a angústia sem objectivos de uma classe média em processo de atomização (...)”
O autor ficou entusiasmado com aquilo que o júri tinha conseguido ler no seu conto. Sentou-se logo ao computador e começou a escrever um segundo. Sim, porque ideias para contos daqueles tinha ele aos montes...



Tema: O AZUL

A guerra das cores

No país azul, tudo era azul (daí o nome) e todos viviam felizes. Do azul marinho ao azul celeste, uma vasta gama de azuis resplandecia nas pessoas e coisas. Consta que foi neste país que George Gershwin escreveu a famosa Rhapsody in Blue. Do outro lado da fronteira era o país amarelo, cujos habitantes não gostavam dos azuis, nem um bocadinho. E vai daí, uns amarelos infiltraram-se no país dos azuis e espalharam na água um pó amarelo que aos poucos começou a combinar-se com os azuis nativos e a dar verdes. Os cientistas azuis puseram-se ao trabalho e em pouco tempo inventaram um pó anti-amarelo, que neutralizava o efeito do ataque dos vizinhos. Os azuis eram pacíficos por natureza, mas tinham que dar uma lição aos amarelos. Inventaram um pó vermelho e um avião azul sobrevoou o país amarelo e libertou o pó no ar. Tudo o que era amarelo começou a ficar laranja. E enquanto a azulidade voltava lentamente ao país azul, os laranjas (antigos amarelos) coçavam-se todos, porque ainda por cima eram alérgicos aos citrinos.
Foi muito bem feito!



Tema: A MUDANÇA

Todo o mundo é composto de mudança

– Que escreveis, Luis Vaz?
– Um soneto, senhora.
– Deixai-me ler: Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades / Muda-se o ser, muda-se a confiança / Todo o mundo é composto de mudança (...)
– Perante isto, que é do amor eterno que ontem juráveis?
O poeta ficou calado. Ao fim de uns segundos, uma gargalhada cristalina quebrou o silêncio:
– Não vos amofineis, Luis Vaz. Às vezes me apraz zombar um pouco de vós. Eu também li Petrarca e os outros mestres. Sei bem que o “eterno” dos amantes só o é enquanto dura a paixão... E Caterina de Ataíde rematou sorrindo:
– Estarei à vossa espera onde sabeis, à hora que sabeis. E agora dou-vos a Deus, Luis Vaz.
O roçagar de rendas e sedas fica nos ouvidos de Camões enquanto Caterina se afasta correndo. Suspirando, o poeta dirige-se ao Malcozinhado, onde combinou com seus amigos jogar aos dados um canjirão de vinho. E na sua cabeça começa a surgir outro poema para ofertar a Caterina: Senhora partem tão tristes / Meus olhos por vós meu bem...
E descendo a calçada vai saudando os vadios e as rameiras com quem se cruza, que lhe retribuem as saudações com rasgados sorrisos.



Tema: A AUSÊNCIA

A ausência do professor

Quando na disciplina “Filosofia Tradicional Portuguesa” ia ser discutida a ausência, o professor ausentou-se. Isto passou-se há já uns anos, mas como era do quadro, é preciso que passem 20 anos sobre o seu desaparecimento para poder ser aberto concurso para a sua substituição.

A ausência do doente

“Esta ausência dói-me, senhor doutor!” “Deixe ver, senhor Francisco. Hum, isto está de facto com mau aspecto...” “É grave, senhor doutor?” “Grave, grave, não é, mas o tratamento que lhe vou fazer não é comparticipado...” “Oh senhor doutor, eu quero é ficar bom!” O médico abriu uma gaveta e retirou uma presença. Aplicou-a sobre a ausência. Não foi suficiente. Aplicou uma segunda presença. Agora sim, conseguiu neutralizar a ausência. “Era uma ausência bem grande, senhor Francisco.” “Sinto-me muito melhor, senhor doutor. Muito obrigado.” “Ora essa, senhor Francisco. Desejo as melhoras. Pode pagar na recepção.”



Tema: CELEBRAÇÃO

Concelebração

– É célebre?
– Celebérrimo! Uma verdadeira celebridade.
– Então temos que celebrá-lo.
– Mas se já é célebre, para quê a celebração?
– Porque só se celebra o que já foi celebrizado.
(Pausa)
– Tenho uma dúvida...
– Que não viessem as célebres dúvidas. De que se trata?
– Como é que alguém se torna célebre?
O meu amigo ia responder-me quando apareceu o celebrante. Ia começar a celebração, mas chegou um segundo e depois um terceiro. Estes celebrantes quando lhes cheira a celebração, são como moscas ao mel!
Pareceu que iria haver uma discussão que ficaria célebre, mas rapidamente se puseram de acordo e fizeram uma concelebração.
E todas as celebridades presentes celebrizaram efusivamente.
E como o meu amigo não me chegou a responder, continuo com a minha dúvida...



Tema: ESPELHOS

Só nos encontramos nestas ocasiões

Eram uma família unida. Veio o primo do ramo das confecções (trabalhava num provador da Zara), o tio académico (meteu uns dias de licença no Hubble), a prima jet-set (ninguém a via fora da carteira Prada), todos no velório do espelho retrovisor, brutalmente esmigalhado naquele infausto acidente rodoviário.



Tema: A LEVEZA

Um planeta leve

Era tudo ao contrário naquele planeta (bem, nem tudo...). Os vendedores nos mercados faziam batota com as balanças para indicar mais leveza no artigo vendido, e os fiscais traziam pesos para compensar essas habilidades dos chico-espertos. As pessoas quando preocupadas sentiam o coração leve e no Brasil de lá (que ficava naturalmente no hemisfério norte) não se usava obviamente a expressão “barra pesada”.
Caía-se para cima, logicamente, o que tinha como desvantagem estar o espaço em volta do planeta juncado de detritos (eu disse que nem tudo era diferente...).
Ganhar peso tornou-se uma moda e os ginásios multiplicavam-se como cogumelos. Só que em vez de exercício físico serviam refeições pantagruélicas.

Início de balada

“Batem leve, levemente...”, pensou o gatuno, que era bastante surdo, quando lhe bateram à porta. Na realidade, eram dois agentes da polícia munidos de um mandado de busca.



Tema: DESEMPREGO

Empregado, desempregado, ou mal empregado...

Não se viam desde o 9º ano. Quando se encontraram, abraçaram-se efusivamente.
“Então que fazes?”
“Olha, tirei Psicologia, depois fiz o Mestrado, não arranjo emprego na minha área, trabalho como caixa no Continente. É a vida! E tu?”
“Estou desempregado.”
“Que chato, pá!”
“Não é nada chato! Depois do 9º ano fui para uma escola profissional aprender de electricista. Faço uns biscates, trabalho não falta, sem recibos, claro, e estou a receber do Fundo do Desemprego. Não é mau...”



Tema: VÍCIOS

3 estórias viciosas


1. A influência do ambiente

No jardim das virtudes, bem no meio delas, nasceu um dia um vício. Quando deu por isso, estava virtuoso...


2. Diagnóstico

Era um verdadeiro viciado em virtude... (Aqui entre nós, era um verdadeiro chato!)


3. Não tinha mau fundo...

Toda a gente afirmava que ele era um poço de virtudes; a roldana e a corda é que estavam viciadas. E o balde também...



Tema: O DESEJO

Os caminhos do Desejo

O Desejo chegou a uma bifurcação no seu caminho. Se fosse pela esquerda, que conduzia a Frustração, continuaria a existir; se seguisse pela direita, que levava a Satisfação, morreria, naturalmente.
Incapaz de decidir, angustiado pela escolha a fazer, o Desejo suicidou-se, indesejando-se.
Algum tempo depois, naquele mesmo sítio, um Desejo pequenino brotou de uma fenda entre duas pedras, e dia a dia foi crescendo, tornando-se cada vez mais forte...



Tema: FADO

Generation gap

– O que é isto que estás a ouvir?
– Fado.
– É estranho...
– Pois é, há quem goste, outros não...
– A música é assim tipo meio fixola, mas do que é que ela fala?
– Da tristeza, da ausência, da saudade...
– Que seca!
– Hás-de vir a gostar...
– Eu? Quando?
– Quando fores um cota como eu!
– Eu? Eu nunca vou ser um cota como tu!
– Santa ignorância...