terça-feira, 28 de fevereiro de 2006

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2006

As chaves

O molho de chaves caiu-me da mão, mas em vez de ficar no chão, como eu esperava, atravessou-o e passou ao plano da realidade imediatamente abaixo. Quando tentei apanhá-lo, fugiu novamente para o plano seguinte. Embora me desagradasse, tive que ir atrás dele, através dos sucessivos planos da realidade.
Se não apanho as chaves, como vou entrar em casa?

sábado, 25 de fevereiro de 2006

Descrição do Objecto Obscuro

É redondo. De uma redondez total, não tem ponta por onde se pegue, apenas se pode observar pousado numa superfície, e mesmo aí é preciso ter cautela, pois pode facilmente rolar. É também escorregadio ao tacto, as mãos deslizam sobre ele, não há aderência, poderíamos chamar-lhe untuoso, se essa não fosse uma designação já um pouco gasta.
Observêmo-lo então, com o máximo possível de detalhe. Na sua superfície – porque o objecto não tem interior, não tem fundo – inscrevem-se palavras. Por vezes uma palavra salienta-se, dando a ideia que poderíamos usá-la para pegar no objecto, para lhe dar um sentido. Mas se o tentarmos, logo verificamos que essa palavra se junta às palavras vizinhas, mistura-se com elas, dilui-se no mar de palavras que cobrem a superfície do objecto.
Essas palavras não se destinam a cumprir qualquer função de comunicação, mas apenas a dar a ilusão disso. As palavras estão lá para fazer vibrar sentimentos na mente de quem olha/ouve o objecto: os cérebros têm zonas que entram em ressonância com palavras de diferentes tipos, pelo que a escolha das palavras que compõem o objecto é criteriosa, e é geralmente feita recorrendo a especialistas, pagos a peso de ouro.
Assim, há uma classe de palavras que se destinam a fazer vibrar as convoluções nacional-patrioteiras, outras os medos/temores irracionais, outras ainda a matriz mágico-religiosa que constitui o substracto de muitas das nossas emoções.
O objecto que tenho vindo a descrever faz parte do nosso quotidiano, tendendo a surgir com mais frequência em períodos especiais do nosso viver colectivo, chamados “campanhas eleitorais”. É conhecido pelo nome de “discurso político”.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006

Chuva

Uma chuva chovia no molhado.
Veio outra chuva e disse-lhe:
-Vai chover para ali, onde ainda não choveu.
E a primeira disse:
-Desculpa, tens razão, estava distraída.
E lá foi.
Embora haja excepções, as chuvas são geralmente bem educadas e obedientes ao que lhes dizem as outras chuvas.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006

Dionísio e os relógios

Dionísio começou um dia a não gostar de relógios. A achar irritantes aqueles objectos, que insistiam em modificar o ritmo segundo o qual ele gostava de viver.
O relógio de pulso foi o primeiro: mesmo capaz de funcionar a 60 metros de profundidade (tinha sido comprado quando Dionísio era praticante de caça submarina) não sobreviveu à acção do triturador da cozinha. Em boa verdade, este também não, porque a caixa do relógio era de aço inox de alta resistência.
Aos outros dois relógios que repousavam pacificamente na gaveta da mesa-de-cabeceira, nem o facto de estarem parados (eram modelos já antigos, mecânicos) lhes valeu: quando foram parar ao caixote do lixo, a acção do quebra-nozes já os tinha tornado irreconhecíveis. No entretanto, caminho semelhante tinha seguido o relógio de parede da cozinha (previamente esquartejado com o cutelo dos bifes). Os relógios digitais do micro-ondas e do forno do fogão foram cirurgicamente apagados com o picador de gelo.
Até este ponto, a esposa de Dionísio foi conseguindo gerir o medo que lhe provocava o comportamento anómalo do marido. Mas quando o seu relógio de pulso preferido (caixa em ouro de 18 quilates, prenda de casamento de um tio já falecido) foi aterrar na lareira acesa, meteu meia dúzia de peças de roupa numa mala e foi para casa dos pais, felizmente ainda vivos. Ele está louco, mamã, soluçava a pobre senhora. De facto, acender a lareira num dia de Agosto em que o Instituto Meteorológico assinalava uma temperatura de 41 ºC dificilmente deixava lugar a outro diagnóstico.
E assim Dionísio continuou eliminando todos os sinais de contagem do tempo. Ainda tentou alvejar com uma carabina de pressão de ar o relógio da torre da igreja que se via da janela da sala, mas verificada a inutilidade desse esforço, resignou-se a correr os pesados cortinados para o afastar da vista.
Afundado num sofá, na sala quase às escuras, Dionísio tinha sossegado, o silêncio à sua volta actuando como um calmante para o seu cérebro cansado. Foi então que do núcleo mais central desse silêncio começou a surgir um ritmo, um batimento, uma pulsação regular, como se um monstruoso relógio se tivesse instalado dentro de si próprio. Quando teve consciência da origem daquele pulsar terrificante, Dionísio soube o que tinha a fazer. Como um autómato telecomandado, levantou-se, foi à cozinha, trouxe a faca de trinchar, tornou a sentar-se no sofá, procurou no lado esquerdo do peito o local onde o batimento era mais forte, apoiou aí a ponta da lâmina e lenta mas firmemente, empurrou a faca. Nos breves instantes até perder a consciência, Dionísio sentiu uma paz a invadi-lo, como se finalmente o tempo estivesse a parar...
Foi com essa expressão pacífica no rosto, como se dormisse, que a polícia, alertada pelos vizinhos, o foi encontrar três dias depois.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2006

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

Sobre Italo Calvino (fragmento)

O cartógrafo que desenha mapas do mundo real usa como ferramenta principal uma caneta de ponta fina, porque as fronteiras entre os países, contestadas ou não, são linhas, que estabelecem um corte territorial, uma descontinuidade administrativa, política, por vezes cultural, mas (quase) sempre autoritária.
Quem pretendesse mapear o território literário, teria que usar um pincel e trabalhar sobre papel poroso, mais uma aguarela do que um desenho à pena, porque as fronteiras entre géneros são frequentemente mal definidas, difusas, por vezes reivindicadas por partidários dos dois (ou mais) géneros limítrofes, mas suficientemente amplas para que alguns autores consigam viver dentro delas.
E se numa noite de inverno um viajante iniciasse a travessia de uma dessas fronteiras, na sua caminhada entre duas cidades invisíveis, poderia seguir o atalho dos ninhos de aranha e entrando no bosque, olhando para cima, ter a sorte de avistar o barão trepador, ou mais adiante encontrar uma das metades do visconde cortado ao meio. Neste caso, deverá certificar-se de qual das metades se trata, pois isso poderá ter consequências no desenrolar da sua história pessoal.
Se pelo contrário o destino o fizer encontrar o cavaleiro inexistente – façanha desde logo notável – este poderá conduzi-lo ao castelo dos destinos cruzados, e talvez à porta esteja Italo Calvino que, sorrindo, lhe pegará no braço e o conduzirá numa visita guiada enquanto lhe conta como Palomar se perdeu em devaneios numa loja de queijos, o que poderá querer significar – mas isto está aberto à discussão – que a literatura (também) é para comer.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

Silly Season

Adriano, o jornalista de serviço na estação XXL, estava preocupado: para o noticiário das 8 tinha recebido quatro notícias das agências, às 9 só tinha tido duas, às 10 uma e tinha conseguido respigar um fait-divers de um dos matutinos. Às 10 e trinta e cinco, era claro que as fontes de informação tinham secado, isto é, nada acontecia, e Adriano começou a ficar angustiado ante a perspectiva de chegar ao noticiário das 11 sem ter notícias para dar, o que seria um acontecimento inédito na XXL (“a estação sempre em cima do acontecimento! Pam! Pam! Pam!”).
Às 10 e 45 tomou uma decisão: tinha de haver pelo menos uma notícia. Meteu no leitor um CD dos Ugly Boys, começando com a faixa “There’s going to be trouble”. Olhou em volta, viu o cinzeiro de pé alto, tomou-lhe o peso. Com o cinzeiro bem agarrado na mão esquerda (Adriano era canhoto) saiu do estúdio, desceu a escada e quando chegou à rua, observou com ar apreciativo a fila de carros estacionados ao longo do passeio. Metodicamente, usando o cinzeiro como uma clava, foi deixando marcas em todos: o BMW azul ficou com o pára-brisas estilhaçado, o Corsa com uma porta metida dentro, o Peugeot sem o farol direito e o vidro de uma janela, e assim sucessivamente, vidros partidos, chapa amolgada, sem verdadeiramente apontar, limitando-se a dar balanço ao cinzeiro e fazê-lo bater como calhava. Ao fim de 12 ou 13 parou, deu meia-volta e regressou calmamente ao estúdio. Vários populares se aproximavam agora dos carros danificados e ao fundo da rua despontavam o subchefe Eleutério, ainda a abotoar os botões do blusão e o guarda Rodolfo, que alguém tinha ido chamar à esquadra, a dois quarteirões de distância.
Quase em cima das 11, Adriano meteu a publicidade do alinhamento, o indicativo do noticiário, o sinal horário, e com a sua voz bem timbrada começou:
Há poucos minutos, por razões ainda não esclarecidas, um indivíduo danificou várias viaturas estacionadas ao longo da Rua das Sardinheiras. Para o efeito utilizou um objecto pesado, que algumas testemunhas disseram tratar-se de uma barra de ferro.
Fez uma pequena pausa e ouviu, através da porta entreaberta da cabina, as pancadas na porta do estúdio, com uma firmeza que claramente identificava o braço da Lei. Então concluiu a notícia:
A PSP tomou conta da ocorrência e procede a diligências no sentido de identificar o autor deste acto de vandalismo. Em próximos noticiários, a XXL apresentará os novos desenvolvimentos deste caso. E agora, mais uma faixa do último trabalho dos Ugly Boys: “It´s all over, baby!”.
Enquanto se levantava para ir abrir a porta, Adriano sentia-se orgulhoso: tinha conseguido evitar o pior dos males – um noticiário sem notícias! – e tinha inclusivamente deixado matéria para o colega que viria rendê-lo daí a pouco. Nas consequências que viriam para si próprio nem pensava. Tendo sido o melhor aluno do Curso de Jornalismo, ainda conseguia citar de memória o parágrafo inicial do manual da disciplina “Ética Profissional”: Na sua missão sagrada de informar o público, o jornalista tem por vezes de fazer sacrifícios pessoais…

terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

Crime e Castigo na Era do Consumismo

Almerindo, o consumidor quase-ideal, circulava pelos corredores do hipermercado com o seu carrinho já quase cheio. Era uma actividade que lhe dava um enorme prazer (excepto no fim do mês, com toda a gente a queimar os ordenados e os inevitáveis encontrões) e perante uma prateleira cheia, fosse do que fosse, reagia como o cãozinho de Pavlov: exibia um comportamento compulsivo que o levava a pegar no(a) pacote ou lata ou caixa ou embalagem e juntá-lo(a) a tudo o que já transportava.
À entrada da secção “Faça Você Mesmo”, Almerindo viu um esplendoroso kit que incluía um berbequim, uma rebarbadora e uma lixadeira, três jogos de brocas, mais umas caixas com buchas e parafusos, tudo por 129,99 €. Oferta limitada!
Almerindo não era propriamente um engenhocas (na realidade era até um pouco desajeitado com as mãos) mas quando viu aquele kit na caixa colorida, com oferta da maleta de transporte, soube que sempre o tinha (inconscientemente) desejado e soube imediatamente que tinha de o levar.
Ao lado, fazendo figura de parente pobre, havia uma versão reduzida (só o berbequim e um jogo de brocas) por 49,99 €. Uma ideia brilhante surgiu no cérebro de Almerindo, e passá-la à prática foi uma questão de segundos: a etiqueta com o código de barras do preço mais baixo foi habilmente descolada e colada de novo sobre a de preço mais elevado!
No instante em que consumava tão nefando acto, Almerindo foi surpreendido por uma súbita aparição: precedido por dois anjos, surgiu perante os seus olhos o deus dos hipermercados!
Os anjos vinham na forma de duas meninas, de mini-saia e patins em linha, transportando uma faixa com letras fluorescentes que dizia: “Ponha o carro à frente dos bois / Compre agora e pague depois!”.
O deus dos hipermercados estava de fato e gravata, tinha em cada mão um telemóvel e ao pescoço um colar feito de cartões de crédito Gold. O rosto era estranhamente parecido com a cara do Eng. Belmiro. Quando falou, as suas palavras atraíram a atenção de Almerindo com o efeito magnético de um slogan publicitário:
- Almerindo, meu filho, tentar diminuir o lucro de uma grande superfície é um crime inominável, pelo qual vais ser punido. Ficas condenado a repetir até à eternidade o gesto sagrado de encher o carrinho das compras, porque quando te aproximares da caixa ele ficará subitamente vazio e terás que voltar ao princípio.
E numa de exibição de conhecimentos mitológicos, acrescentou:
- E mudarei o teu nome para Sísifo.
Abriu os braços, as meninas agitaram a faixa, os cartões Gold brilharam com uma luz fortíssima, que obrigou Almerindo a fechar os olhos. Quando os abriu, deus e anjos tinham desaparecido, deixando no ar o cheiro característico da secção “Perfumaria e Cosmética”.
E desde então Almerindo/Sísifo, errando pelo hipermercado, coloca no carrinho detergente, after shave, arroz, massa, cerveja e água tónica, salsichas e manteiga, queijo e pickles, vinho, água mineral, pão e croissants, e tudo o mais que pelo caminho vai encontrando e quando se aproxima da caixa o carrinho fica vazio e ele tem que voltar ao princípio. É estranho como nenhum dos outros clientes dá conta, mas as penas eternas se calhar são mesmo assim, só o condenado dá por elas, ou então os outros clientes também estão condenados, condenados ao consumo. Almerindo pensa que provavelmente é esta a verdade, e vai tecendo estes pensamentos enquanto continua a percorrer os corredores entre prateleiras e a encher o carrinho, continuamente, per sæcula sæculorum

terça-feira, 7 de fevereiro de 2006

Fumo


Na calma
irritação
quotidiana

O poeta fabricou
o seu
poema

Com os dedos
da bolsa
das palavras

Tirou algumas
poucas
que estão caras

Enrolou
lentamente
cuidadoso

Em papel
ordinário
de rascunho

Molhou-o
com a língua
e apertou

Como vira
fazer
ao seu avô

Acendeu
e puxou
umas fumaças

Engasgou-se
e fartou-se
de tossir

Um amigo que via
disse
então

Vê lá se apanhas
cancro
no pulmão

Mas visto que
não pode
publicá-lo

Que há-de o poeta fazer
senão
fumá-lo?

domingo, 5 de fevereiro de 2006

Narciso


Narciso cansou-se de se mirar em charcos e ribeiros. Tornou-se urbano e arranjou um emprego. Polidor de espelhos!
O patrão estava feliz. Nunca lhe tinha aparecido um empregado apaixonado pelo trabalho. Até fazia horas extraordinárias de graça!
Um dia Narciso fez uma experiência. Esperou com ansiedade pela saída dos restantes empregados e do patrão. Pegou nos últimos dois espelhos que tinha polido, cada um com dois metros de altura por um de largura (encomendados por uma loja de pronto-a-vestir) e posicionou-os em frente um do outro, as superfícies tão paralelas quanto possível. Descalçou os sapatos e as meias, despiu a roupa e, completamente nu, colocou-se no meio dos espelhos.
Quando olhou a sua imagem multiplicada até ao infinito, uma onda de prazer com uma intensidade que não supunha possível fez vibrar cada nervo do seu corpo, fez ressoar cada neurónio do seu cérebro...
Morreu de overdose.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2006