sábado, 9 de fevereiro de 2008

A vida é como os elevadores...

Cilinha Pomar entrou em casa, fechou a porta, colocou a corrente de segurança, pousou o saco plástico com as compras na bancada ao lado do fogão e respirou fundo. Lá fora, nunca se sentia totalmente em segurança. Ali, na protecção relativa do minúsculo apartamento, podia baixar a guarda e voltar a ser ela própria.
Tomou um duche rápido – iam longe os tempos em que podia preguiçar num banho de espuma – limpou-se e vestiu um roupão felpudo. Pôs umas gotas de Allure, para ver se conseguia disfarçar o cheiro daquele horroroso Zara Woman que era obrigada a usar durante todo o dia. Foi ao mini-frigorífico e tirou uma garrafa de Martini Bianco; deitou dois dedos num copo, juntou-lhe gelo, uma rodela de limão e levou o copo para a mesinha da saleta. A seguir foi ao roupeiro, tirou uma mala que abriu e do fundo, onde estava escondido debaixo da roupa, retirou um molho de revistas que trouxe para a mesa. Sentou-se no sofá e deu início ao seu ritual diário: relembrar o passado.
Era uma operação ao mesmo tempo agradável e dolorosa. Enquanto bebia o Martini em pequenos goles folheava as velhas revistas, que em fotografias luminosas lhe mostravam um tempo em que a sua vida era um rodopio de festa em festa. Recepções, aniversários, inaugurações, festas disto e daquilo, e lá estava ela, loira e linda, no meio do beautiful people do qual fazia parte, a nata da sociedade, aparecendo em tudo o que acontecia de importante... Aqui no casamento da Mané Boboca, com um vestido lindo, um decote que fazia os homens virar a cabeça... Esta na festa de aniversário da revista Faces... E esta série na ilha da Poporapaca, onde tinha passado uma semana ma-ra-vi-lho-sa, tudo pago pela TV Global...
E agora ali estava ela, com o cabelo cortado e pintado de castanho, tendo que sair à rua vestida com roupas horrorosas, a trabalhar naquele pronto-a-vestir para sub-urbanas, tendo que disfarçar a postura, a forma de falar, enfim, todos os atributos que a faziam ser a Cilinha Pomar!
E sempre que pensa que a culpa de tudo isto é da debilóide da tia Patrucha, fica-lhe com um ódio que não pode!
Lembra-se como se fosse ontem, e rememora de forma quase masoquista todos os detalhes que conduziram à situação actual. Tinha estreado havia pouco tempo o programa Upstairs, e a Patrucha andou a ligar a meio mundo, avisando que ia aparecer nessa noite no programa: “Cilinha, filha, não se esqueça de me ver na télevisão!”
A entrevista foi decorrendo com aquelas baboseiras habituais, quando a Patrucha resolveu dizer à entrevistadora: “Querida, quem não é colunável, não existe!”
No dia seguinte, um daqueles jornais popularuchos resolve pespegar essa frase na primeira página, em letras garrafais: “Patrucha Gonçalves no Upstairs: Quem não é colunável, não existe!”. Nesse dia à noite os telejornais citavam o pasquim, os comentadores citavam os telejornais, as cartas aos directores continuavam a criticar, os editoriais ampliavam a notícia, e não tardou muito até haver multidões à porta da tia Patrucha que a insultavam quando ela entrava ou saía. Daí a começarem a atirar pedras às janelas foi um passo. E esta agressividade começou a alargar-se a todo o jet set. As revistas sociais tiveram de suspender a publicação, depois de várias edições terem sido destruídas por grupos de marginais que arrancavam os exemplares dos escaparates e os queimavam na rua.
O Pedro Avelar – o Pedrocas – apercebeu-se da má onda que estava a formar-se, porque nas redacções dos jornais sabe-se sempre tudo mais cedo, e avisou-nos para mantermos um low profile e se possível desaparecermos durante uns tempos.
Fui esconder-me na quinta da Mitucha, onde estivemos umas semanas em relativa segurança. Só não podíamos dar muito nas vistas, pelo que os passeios a cavalo pelas aldeias em redor e as festas à noite na praia estavam fora de questão. Cortei o cabelo – fartei-me de chorar olhando as madeixas loiras no chão – e pintei-o de castanho. E fora de casa passei a andar sempre de óculos escuros, uns óculos enormes, horrorosos.
Entretanto o Pedrocas – fico sempre espantada com os contactos que os jornalistas têm – conseguiu arranjar-me um bilhete de identidade falso. Fiquei-lhe toda agradecida, mas quando vi o nome por pouco não lhe apertei o pescoço: Cátia Vanessa! De todos os nomes do mundo, tinha que ser o nome sub-urbano por excelência!
Ele defendeu-se, dizendo que não se escolhem os nomes quando se compra um BI no mercado negro, é o que aparece. Isso não impediu que durante duas ou três semanas mal lhe tivesse falado. Cátia Vanessa, com franqueza, que horror!
Arranjei trabalho na Zara, todo o dia a dobrar camisolas, calças e saias que aquelas mongas tiram das prateleiras e largam de qualquer maneira em cima dos balcões. Uma estucha!

Cilinha interrompeu os seus pensamentos quando bebeu a última gota de Martini. Arrumou cuidadosamente a pilha de revistas, que tornou a meter na mala, e guardou a mala novamente no roupeiro. Sabia o perigo que corria em ter as revistas na sua posse, mas não conseguia destruí-las, seria como se destruisse uma parte de si própria.
Foi então preparar qualquer coisa para jantar: uma sanduiche de atum com pepino, alface e uma rodela de ovo cozido, em pão castanho. Tirou uma lata de coca-cola light do frigorífico e colocou tudo numa bandeja, que transportou para a mesinha da saleta.
Ligou a televisão enquanto comia. Não havia nada de jeito, agora que o Big Brother, Quinta das Celebridades e programas do género tinham acabado. Os concursos eram outra vez daqueles de perguntas, e ela aborrecia-se de assistir porque raramente conseguia adivinhar as respostas.
Estava a acabar de jantar quando tocou o telemóvel. Era a Mané, que despejou umas quantas banalidades, metendo no meio a seguinte frase: "O tempo vai manter-se estável nos próximos dias". O que queria dizer que a reunião seria na sexta-feira, no mesmo sítio, à mesma hora.
Se alguns meses atrás alguém dissesse à Cilinha que uma reunião de amigos tinha de ser clandestina, ela teria dado uma gargalhada. E no entanto, sexta-feira às 10 da noite, lá se dirigiu ela para um apartamento num 3º andar de uma casa no Bairro Alto, comportando-se com o ar mais natural possível, tentando assemelhar-se a qualquer das outras pessoas que se dirigem a um dos muitos bares da zona para começar a noite. Subiu as escadas e bateu à porta com a sequência combinada de pancadas.
O Chiquinho, dono do apartamento, ainda era seu primo afastado, mas só o costumava encontrar em festas estritamente familiares, porque ele tinha concentrado a sua atenção e esforço em tirar o curso de Arquitectura. Tinha depois comprado aquele apartamento onde instalara o atelier. Cilinha entrou na ampla sala, com esboços e desenhos pregados nas paredes e juntou-se ao grupo que já lá se encontrava, todos sentados em almofadas, em círculo, no chão.
No princípio tinha sido complicado estabelecer o funcionamento das reuniões, sobretudo porque alguns dos convocados não faziam a mais pequena ideia sobre o que era a clandestinidade.
Foi o Marinho Vilaça, que gostava de História, que leu um livro chamado "Memórias de um resistente" escrito por um tipo do PêCê no tempo do Salazar, e viu as técnicas usadas para se esconderem da polícia, e fez uma lista de recomendações que distribuiu e que todos passaram a cumprir religiosamente. E hoje já se conseguem rir do que se passou na primeira reunião, em que íam sendo todos apanhados porque a desmiolada da Kikas Marcela saiu do táxi como se fosse para uma festa na Quinta da Marinha. A sorte dela foi aparecer a polícia, mas não se safou de uns empurrões, uns apalpões e de ficar com o vestido todo sujo de vinho tinto e cerveja que lhe atiraram para cima!
Tiveram que passar a elaborar com muito mais cuidado a lista dos convocados para as reuniões.
O Pedro Avelar teve ele próprio algumas dificuldades quando as revistas sociais fecharam, mas escapou de ser despedido e foi integrado noutro jornal do grupo. No princípio sofreu alguma discriminação, mas essa atitude da parte dos colegas foi sendo diluída, porque ele é extremamente útil sempre que alguém precisa de alguma informação sobre alguém. O Pedro é um verdadeiro banco de dados sociais!
Diz ele que existe uma política generalizada nas empresas para admitir apenas licenciados para os Departamentos de Relações Públicas. “Isto é mau para nós”, pensa Cilinha. “Ser R.P. sempre foi uma forma natural de aplicarmos os nossos talentos.”
Em contrapartida, e ainda segundo o Pedro, os bancos estão a aliviar a vigilância às contas bancárias. Dentro de algum tempo poderá ser possível efectuar pequenos movimentos, sem dar muito nas vistas.

Três dias depois, ao fim da tarde, Cilinha está novamente dedicada à sua actividade favorita de folhear as mesmas revistas que já folheou mil vezes, quando toca o telemóvel. É o Pedrocas, com boas notícias:
"Cilinha, estás sentada? Então ouve. Comecei a trabalhar como assessor de imprensa do Secretário de Estado das Empresas e Sociedade Civil. Sim, sabes quem é, o Quim Vidigal, os pais tinham uma vivenda na rua onde morava a tia Fanocha. Mas agora ouve a parte melhor: o primeiro-ministro enviou um memorando a todos os membros do governo a dizer que nas aparições em público toda a gente deve aparecer bem vestida. Isto quer dizer que vai haver necessidade de contratar uns quantos assessores de imagem, e deve ser possível arranjar trabalho para alguns amigos. De qualquer modo e até lá, pianinho e poucas ondas, OK? Quando tiver mais novidades, ligo.”
Cilinha sente um formigueiro que lhe parece felicidade espalhar-se pelo corpo e espreguiça-se, como um gato ao sol. Pega na garrafa de Chivas que tem guardada para uma ocasião especial, põe dois cubos de gelo num copo e deita lentamente o uisque por cima. Roda o copo fazendo dançar as pedras de gelo. Vai buscar o iPod e percorre a lista das músicas gravadas até encontrar uma que lhe parece adequada, “I Can See Clearly Now”, e o som dos Hot House Flowers enche o pequeno apartamento:

(...) going to be a bright
Bright, bright
Sunshiny day!

domingo, 3 de fevereiro de 2008

Histórias do meu bairro

Os nossos problemas começaram com a Universidade para a Terceira Idade.
Mas é melhor começar pelo princípio: o nosso bairro é óptimo, um bocado envelhecido, mas toda a gente se dá bem.
É na leitaria “Estrela do Bairro” do Sr. António que nos costumamos encontrar todas as tardes. Aí ou, estando bom tempo, nos bancos do jardim em frente.
Uma tarde apareceram uns jovens que nós já conhecíamos porque trabalhavam como monitores nalgumas actividades promovidas pela Junta de Freguesia. Traziam uns papeis de uma coisa chamada Universidade para a Terceira Idade.
O primeiro a inscrever-se foi o Antunes. Contabilista reformado – é sempre ele que faz as contas quando jogamos às cartas ou ao dominó – inscreveu-se no curso de Economia e Gestão, e ficou particularmente interessado numa disciplina que se chamava “Economia para um mundo global”.
Quando veio da primeira aula parecia outro. Vinha maravilhado com o professor, “um rapaz novo, mas já com um MBA da Católica, vejam lá vocês!”. À terceira vez que disse que estava a gostar muito de fazer aquela cadeira, o Sr. Firmino atirou-lhe: “Mas ó Antunes, você agora é carpinteiro?”. Foi uma fartadela de riso, mas ele afinou, e o que safou a situação foi que a televisão começou a dar o desporto e todo o pessoal se calou para ver os resumos dos jogos.
E semana a semana, a situação foi-se degradando. Quando veio da terceira aula, começou com uma conversa de privatizar o banco que fica no sítio mais abrigado do jardim, para depois o alugar aos quartos-de-hora. Mas a Dona Etelvina que gosta de se sentar nesse banco a dar milho aos pombos e usa uma bengala grossa, foi-lhe dizendo: “Se me aparece alguém a dizer que tenho de pagar para me sentar naquele banco, leva logo uma bengalada.” E acompanhou a frase com um gesto ilustrativo, o que levou o Antunes, prudentemente, a deixar de falar no assunto.
Mas foi sol de pouca dura. Na semana seguinte já estava a tentar convencer o Sr. António a instituir consumo mínimo na leitaria, ou a alugar a Bola e o Record que estão sempre em cima do balcão para os clientes lerem.
O sr. António, que veio de Unhais da Serra aos 8 anos trabalhar como marçano, depois como empregado de mesa, até conseguir montar o seu próprio estabelecimento, olhou-o muito sério e disse: “Sr. Antunes, nunca ouviu dizer que 'quem sabe da tenda é o tendeiro'?”. E deixando-o a digerir o provérbio, foi passar o esfregão pela base da máquina de café.
À medida que o curso avançava, o Antunes foi piorando. A meio do semestre, depois de ter tido uma boa nota no teste – e já ninguém podia ouvir contar outra vez que o professor tinha elogiado perante a turma o seu desempenho – veio com outra ideia: lançar uma OPA sobre a mesa e as cadeiras existentes debaixo do caramanchão, onde o grupo da sueca, como lhe chamamos no gozo, gosta de passar as tardes de Verão a bater as cartas.
Obviamente que o grupo considerou a OPA hostil, e um deles, o Jaquim Baleizão, que foi pastor em novo, prometeu-lhe que na próxima vez que viesse com aquela conversa era corrido à pedrada. O Jaquim é homem para acertar numa lata vazia a vinte metros, pelo que o Antunes decidiu bater em retirada, resmungando contra a falta de cultura económica desta gente, incapazes de perceber as vantagens de deixar funcionar livremente o mercado.
As coisas estavam a começar a ficar feias, e alguns de nós foram falar com a Dona Teresa, que tinha sido enfermeira até se reformar do Júlio de Matos, e que também se tinha inscrito na Universidade para a Terceira Idade, onde andava a estudar "Medicinas alternativas". Já tinha feito "Acupunctura", e andava a fazer "Talassoterapia". Com as agulhas, ia praticando na vizinhança e já conseguia aliviar algumas dores, daquelas que aparecem quando a gente vai para velho.
Depois de conversarmos um bocado sobre o comportamento do Antunes, ela fez o diagnóstico:
"O Antunes está a descolar da realidade, isto acontece quando os caminhos por onde circula o prana no organismo se encontram obstruídos." Olhámos uns para os outros, um bocado confusos, mas ela parecia saber o que estava a dizer. "A acupunctura pode ajudar à desobstrução, mas não é suficiente. A talassoterapia, que eu ando a estudar agora, é considerada muito eficaz nestes casos. A sério, a sério, devia ser com água salgada, mas como o efeito principal é o banho frio, se calhar com água doce já dará efeito."
Começámos a discutir estas sugestões. A parte das agulhas era mais fácil: o Antunes tinha ficado bem impressionado com os resultados em alguns dos vizinhos, principalmente a Dona Leocádia, que andava sempre dorida da ciática e que agora, depois de umas sessões com as agulhas, caminhava ligeira como um pardalito. E como ele se queixava amiúde de dores de cabeça, não devia ser difícil convencê-lo a experimentar o tratamento. Já quanto ao banho frio...
Depois de excluída a ideia de pedir aos Bombeiros Voluntários do bairro para lhe dar uma esguichadela com a mangueira – o Sr. Rafael, que foi bombeiro, disse logo que aquilo era má ideia, porque a água sai da agulheta com muita pressão e ainda íamos magoar o Antunes – achámos que se calhar um mergulho no lago dos patos ia fazer o mesmo efeito.
E assim foi. Depois de a Dona Teresa lhe fazer um tratamento com as agulhas, fomos dar uma volta pelo jardim, e naquele sítio onde a vedação em volta do lago está caída – aliás já nos queixámos várias vezes ao Presidente da Junta de Freguesia – um de nós "desequilibrou-se", empurrou o Antunes que foi parar dentro de água. Claro que lhe acudimos imediatamente, ajudámo-lo a sair do lago, acompanhámo-lo a casa, e ficámos um pouco ansiosos à espera do resultado do tratamento.
Passados dois dias, o Antunes reapareceu, e parecia mais calmo. Mas nessa noite, estávamos na leitaria, e a televisão começou a dar uma mesa redonda com a participação de três economistas, ele arrancou com um chorrilho de insultos e só não atirou com a chávena da bica ao televisor porque o segurámos a tempo. Tivemos que o levar a dar uma volta ao quarteirão, ao fresco da noite, para ver se acalmava.
Devemos ter exagerado na dose do tratamento!
Agora até o Dr. Zeferino – gerente da Caixa ali no bairro, que é uma simpatia quando lá vamos todos os meses levantar a reforma – deixou de ir tomar a bica à "Estrela do Bairro", porque o Antunes começou a insultá-lo, de aldrabão para cima...
A Dona Joaquina tem andado a pesquisar lá no livro de acupunctura se descobre um tratamento para aplicar ao Antunes, mas o livro está escrito em chinês – foi-lhe emprestado pelo professor – e ela só consegue guiar-se pelos bonecos, portanto ainda vai levar algum tempo.
Mas estamos todos muito preocupados, até porque soubemos que o Antunes transferiu a matrícula do curso de "Economia e Gestão", que frequentava, para o de "Artes Marciais", e inscreveu-se nas disciplinas "Karaté para maiores de 60", "Defesa e ataque com armas brancas" e "Tiro ao arco".
Tememos o pior!