quarta-feira, 18 de julho de 2007

Capital humano

“Está ali, senhor comissário”, dizia em voz baixa o gerente da dependência, apontando disfarçadamente.
O comissário olhou e viu um homem metido num saco-cama, sentado num sofá. Nas mãos tinha um livro de que lia passagens, interrompendo de vez em quando a leitura para passear o olhar em volta, observando ora os clientes, ora os cartazes anunciando os diversos produtos financeiros disponibilizados pelo Banco.
“Violento?” perguntou o Comissário.
“De forma alguma”, respondeu o gerente. “Entrou quando abrimos a porta, trazia uma pequena mochila às costas e um saco plástico na mão, enfiou-se no saco-cama e sentou-se ali...”
“Bem, vou falar com ele. O senhor fique aqui.”
O agente da autoridade dirige-se ao homem sentado. O gerente, afastado, observa.
“Bom dia, sou o comissário Neves, da PSP. O senhor é...?”
“António Lima, senhor comissário.”
“Senhor Lima, pode explicar-me por que se instalou desta forma aqui no Banco?”
“Com certeza, senhor comissário. Já podia ter explicado ao gerente, se ele estivesse menos nervoso e me ouvisse, em vez de estar sempre a dizer em voz baixa vá-se embora! vá-se embora!
“Então conte lá...”
“Sabe, senhor comissário, até há uns dias atrás eu era um funcionário administrativo da empresa Almeida & Almeida, fabricantes de sapatos. Trabalhei lá durante desassete anos...
Sempre me considerei parte do pessoal da empresa, até que há dois anos houve grandes modificações, a empresa chamou uns consultores que andaram por lá a fazer perguntas e a escrever relatórios, e uma das consequências foi que a Secção de Pessoal passou a ser o Departamento de Recursos Humanos.
Não gostei! Senti que passar a ser considerado um recurso – embora humano – me punha ao nível da fotocopiadora ou do relógio de ponto. Mas não disse nada...
Há seis meses, a Almeida & Almeida foi comprada por uma multinacional, a “Shoes for All”. Puseram à frente da empresa um destes jovens com o diploma do MBA ainda com a tinta fresca, e em poucos dias deixámos de ser recursos humanos e passámos a ser capital humano.
Na semana passada ficou clara a intenção da aquisição: a administração anunciou que ia desactivar as secções de fabrico, passando a empresa a funcionar como armazém e centro de distribuição para o material da “Shoes for All” fabricado pelos pequeninos escravos no extremo oriente. A óptima carteira de clientes da Almeida & Almeida foi a cereja no topo do bolo.
E assim, de uma assentada, 90 por cento do capital humano foi despedido! E tudo para o bem da economia...”
“Chegado a este ponto, pensei assim: António, quem é que guarda o capital? Os bancos. Então, se tu és capital - embora humano – procura um banco que te guarde. E foi assim que vim para aqui.”
“Eu fiz a minha parte, agora o Banco tem que fazer a parte dele, não é assim?”
O homem tinha feito esta descrição num tom calmo, pausado, olhando o comissário nos olhos. Este reflectia no que tinha ouvido e pensava para si: “Mais um que se passou, o desemprego faz destas coisas às pessoas”, mas ao mesmo tempo uma pequenina dúvida surgia no seu estruturado sistema mental, onde o Bem e o Mal ocupavam posiçõs nítidas, e essa dúvida crescia, insidiosa, “e se o homem tivesse alguma razão?”, e a dúvida a crescer, a crescer, e o comissário levantou-se e disse:
“Desculpe-me só um momento.”
Afastou-se alguns metros e ligou o telefone.
“Chefe, temos aqui um pequeno problema. Preciso que me envie alguém da Psicologia para ajudar a negociar uma situação. OK, fico à espera.
Olhou para o homem. António Lima tinha regressado à leitura do livro, alheado do que se passava à sua volta... E na cabeça do comissário Neves, as palavras capital humano soavam cada vez mais estranhas...