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domingo, 28 de agosto de 2011

Notícias do Concílio do Mercado (III)


Em simultâneo com as sessões plenárias, uma comissão de peritos trabalha activamente nas questões terminológicas. Sabendo o Concílio que muitas das grandes controvérsias históricas estão relacionadas com o significado a dar às palavras, foi decidido estabelecer, não só uma lista de palavras a usar, mas também outra lista, não menos importante, das palavras a não usar - o Index Palavrorum.
Nesta segunda lista, uma das primeiras palavras a entrar foi "trabalho", substituída pelos termos "recursos humanos" ou, preferencialmente, "capital humano".
Como exemplo, seguem-se mais algumas palavras colocadas no Index, cada uma seguida da correspondente palavra a usar:

especulador --> investidor
lucro --> justa retribuição
trabalhador --> colaborador
solidariedade --> assistência

Esta tarefa deverá continuar mesmo depois do encerramento do Concílio, pois as forças do Mal estão sempre a produzir novas palavras destinadas a confundir os fieis, e os servidores do Mercado têm de manter-se   vigilantes.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Notícias do Concílio do Mercado (II)


Ao fim da segunda semana de trabalhos, foi lida pelo porta-voz autorizado uma nova declaração, estabelecendo como um dogma de Fé a possibilidade de crescimento contínuo num sistema finito.
Consta que, durante a discussão, foi aventada a possibilidade de declarar heréticos acima de qualquer remissão todos aqueles - em geral com formação nas ciências físicas, mas muitos equipados apenas com o sólido bom-senso - que tivessem alguma vez afirmado a impossibilidade de tal crescimento permanente. Mas acabou por prevalecer a tese mais moderada de que as afirmações respeitantes ao comportamento da divindade Mercado, sendo do âmbito teológico, e consequentemente do domínio da Fé, não são susceptíveis de ser confirmadas ou infirmadas por leigos.
"Ad majorem mercado gloriam", assim concluia a declaração, que como de costume, não teve direito a perguntas.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Notícias do Concílio do Mercado (I)


Terminada a primeira sessão do Concílio, foi a decisão mais importante divulgada numa conferência de imprensa sem direito a perguntas.
O Concílio decretou a infalibilidade das Agências de Rating, únicos intermediários reconhecidos entre a divindade do Mercado e o "Homus economicus".
E mais decretou que quem, por qualquer meio, exprima dúvidas sobre este dogma agora formulado, verá imediatamente o seu rating passado à categoria "lixo", ficando impedido de aceder no futuro à presença da Divindade.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

À atenção do ministro Nuno Crato


Exmo senhor ministro
É um facto conhecido que os docentes do ensino superior se queixam com frequência do tempo gasto na avaliação dos alunos: trabalhos, seminários, apresentações, testes, exames (1ª época, 2ª época, época especial)...
Os recentes acontecimentos na cena político/económica envolvendo a queda do rating da República deram-me uma ideia que poderá solucionar aquele problema. Em vez de classificar os trabalhos e exames, os professores emitirão a sua "opinião" sobre o aluno, qualquer coisa nestes termos: "independentemente do que aqui está", e poderão apontar com um dedo displicente para a pilha de trabalhos e testes produzidos pelo aluno, "tenho um feeling que você não vai conseguir passar de ano, e portanto leva um 9. E tome nota que fica com um outlook negativo, portanto fique à espera de um 6 ou 7 para a próxima."
Veja-se o tempo poupado ao sobrecarregado dia de trabalho de um docente!
E a cereja no topo do bolo é que os alunos terão de pagar para os docentes emitirem essa "opinião" baseada nesse feeling, resolvendo assim em simultâneo dois problemas crónicos: a sobrecarga dos professores e o subfinanciamento das instituições.
Naturalmente que, vivendo nós neste financeirismo totalitarista em que tudo tem um preço, tenho a expectativa de ser recompensado por esta ideia brilhante, por exemplo na forma de uma percentagem (a negociar) dos ganhos financeiros das instituições que adoptarem esta nova metodologia, da qual já submeti o respectivo pedido de patente.

Com as mais cordiais saudações académicas

domingo, 23 de janeiro de 2011

O mercado rafeiro

Fiquei de boca aberta quando encontrei o Joaquim com um mercado pela trela. Um bocado rafeiro, mas na mesma um mercado...
"Como arranjaste esse?"
"Naquela rua junto à Bolsa, topas, dei com ele a vaguear. Acenei-lhe com um juro de 7 e meio por cento e ele veio logo a correr. Eu já tinha uma coleira preparada, e foi rápido. Mas só ando com ele na rua açaimado..."
"E o que lhe dás a comer?"
"Olha, quando o apanhei estava gordo, devia ter andado a comer dívida grega a 12 e meio por cento. Agora dou-lhe juros a 1 ou 2 por cento. Rosna um bocado mas vai comendo..."
"Isto está perigoso", disse eu. "Um tipo arrisca-se a andar na rua e saltar-lhe um mercado vadio às canelas da dívida."
"Este não me dá grandes problemas. Se ladra ou se rosna demais leva um puxão na trela e acalma logo. Tenho é que andar sempre preparado...", e tirou do bolso um saco de plástico enrolado que me mostrou. "É que esta raça em qualquer lado faz merda!"

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O Mundo está a tornar-se um sítio perigoso!

Quando António entrou no bar e chegou junto dos outros, já sentados na mesa do costume, ainda ia ofegante:
"Fui atacado por um mercado!"
"Já não se pode andar na rua, coño", exclamou Pablo. "E conseguiste escapar?"
"Ameacei-o com a China, e ficou hesitante. Safei-me com um juro de 3,75% a médio prazo."
"Não foi mau, dadas as circunstâncias", concedeu Pablo. "Mas ouve só o que aconteceu aoKonstantinos."
O grego deu um gole na cerveja e começou a contar:
"Naquela zona mais escura da rua saiu-me ao caminho uma agência de rating. Queria baixar-me o rating para BB+, vejam só."
"E tu?"
"Apontei-lhe umas Eurobonds e ela (ou ele, não cheguei a perceber...) vacilou..."
"Mas as Eurobonds ainda não existem..."
"Pois não, mas o tipo (ou a tipa) estava ganzado, devia ter acabado de snifar coca, e no escuro um molho de contas por pagar passa perfeitamente por Eurobonds..."
Gargalhada geral em volta da mesa.
"Isto está a ficar perigoso", lamentou-se Patrick, o irlandês. "Os piratas já atacam em qualquer sítio. E os nossos chefes não fazem nada!"
"Eles estão feitos com os piratas, meu! Se não, por que é que deixam abertos os paraísos fiscais onde os tipos podem ir descansar entre os assaltos? Mercados, agências, é tudo a mesma mafia!"
O desalento espalhou-se à volta da mesa.
E em contraste com o ambiente acolhedor do bar, lá fora, na noite, sentia-se a presença dos predadores, vagueando, à espera...

domingo, 19 de dezembro de 2010

Perder a fé é muito triste...

Eleutério era um crente convicto. Acreditava no deus Mercado e seguia religiosamente os conselhos que lhe eram dados pelo seu banco, mediador entre ele próprio e a divindade. Mesmo quando as aplicações que o banco lhe aconselhava davam prejuizo, Eleutério ainda agradecia ao Mercado que o prejuizo não tivesse sido maior.
Alguns dos seus amigos e colegas eram clientes de outros bancos. A esses, Eleutério tentava por vezes aliciar para aderirem ao seu, mas face ao insucesso do seu proselitismo, consolava-se com a ideia de que, ao fim e ao cabo, todos adoravam o mesmo deus.
A fé de Eleutério começou a vacilar quando tomou consciência de que a sua antiga religião, tradicional e confiável, monoteísta, tinha dado lugar a uma outra, instável, volúvel, imprevisível, politeísta. Já não era "o Mercado", mas sim "os mercados".
E quando descobriu que os mercados pressionavam, exploravam, podiam levar empresas e países à bancarrota, provocando a ruína de milhões de pessoas, Eleutério perdeu a fé por completo.
No dia seguinte a essa epifania de sinal menos, Eleutério dirigiu-se ao banco, e como primeira atitude do seu recentemente adquirido estatuto de ateísmo militante, levantou até ao último cêntimo todo o dinheiro que tinha na conta, levou-o para casa e escondeu-o debaixo do colchão.