domingo, 8 de novembro de 2009

Elementar, meu caro Watson…

“Repare, sargento, na posição em que ficou o corpo” – disse o tenente Hawk, as mãos enfiadas nos bolsos da gabardina, mascando um charuto barato. À primeira vista poderia ser confundido com o tenente Columbo, mas não era ele. De facto, tinham sido colegas na Academia da Polícia, e uma das origens da úlcera gástrica do tenente Hawk era o facto de nunca ter sido o melhor da classe; tinha sido sempre o segundo, depois de Columbo.
E agora ali estava, muitos anos depois, com um novo crime entre mãos. E na própria esquadra da Polícia! Começou a imaginar a primeira página dos jornais do dia seguinte, mas o seu cérebro treinado logo se voltou para o problema que tinha à sua frente.
Ao seu lado, o sargento O’Hara bebia-lhe as palavras. Sim, porque a capacidade do tenente Hawk como investigador era conhecida em toda a corporação.
Os pés em cima da secretária, o tenente Robin parecia dormir, não fosse a mancha escura na camisa, no lado esquerdo do peito, em volta do orifício feito pela bala. No chão, um processo que ele provavelmente estava a ler na altura em que foi morto.
“Tão próximo da promoção (segundo toda a gente dizia) e agora tão longe”, pensou filosoficamente o tenente Hawk, enquanto o fotógrafo batia chapa atrás de chapa.
“Sargento, isto prova que o assassino era alguém que ele conhecia, uma vez que se deixou ficar sentado desta maneira descontraída quando o assassino entrou no gabinete.”
“O médico legista situa a morte entre as onze e meia e a meia noite e meia, tenente”, disse o sargento, consultando um livrinho de apontamentos.
“Isso bate certo, sargento”, respondeu Hawk. “E mais; teve que ser alguém da casa, para poder estar no edifício a essa hora.”
“Um membro da corporação, tenente?”, perguntou O’Hara, incrédulo.
“Sargento, a lógica leva-nos a essa conclusão. E um bom investigador nunca deixa os seus preconceitos interferir com a lógica do seu raciocínio.”
“Mas por que razão, tenente?”
“Boa pergunta, sargento. O que nos falta é o motivo. Quando o descobrirmos, temos o nosso homem. Roubo? A carteira dele estava na gaveta da secretária e não foi mexida. Saias? Robin tinha uma vida familiar estável e um comportamento moral irrepreensível. Motivos profissionais? Alguém que se sentisse ultrapassado porque, segundo se dizia, Robin era o favorito do superintendente e seria o próximo a ser promovido? Alguém que durante toda a vida foi sempre o segundo, e que sentia que mais uma vez isso lhe ia acontecer?”
O sargento O’Hara olhou para o tenente Hawk, de boca aberta, sem conseguir articular palavra.
“Vê, sargento, como a lógica dos factos se impõe? E agora, recordo-lhe o artigo 32º do Regulamento: Um membro da Corporação não pode dar voz de prisão a um superior a não ser em flagrante delito. Portanto o melhor é ir chamar o capitão.”
O sargento ficou uns instantes indeciso, até que saiu a correr.
“Sempre foste um dos melhores investigadores; muito melhor polícia do que criminoso!” murmurou o tenente Hawk para consigo próprio. Olhou em volta, lentamente, e recitou a meia voz:
“Artigo 23º - Um oficial da Polícia deve defender o bom nome da Corporação, mesmo com o sacrifício da própria vida.”
Tirou do coldre o revólver, encostou-o à cabeça e premiu o gatilho.


Este texto foi enviado para um concurso intitulado "Testemunha de um crime", promovido pelo Cinema Quarteto, em data indeterminada.

4 comentários:

n.fonseca disse...

Boa João. Gostei do "period piece". Muito à moda e ficou engraçado. Gostei :)

João Ventura disse...

Olá Nuno
Obrigado pela apreciação :)

A OUTRA disse...

Espectacular!!!!!!!!!!!!!
Grande conto policial!
João Ventura!...
Ainda queria acabar com o Blog?...
Não...não... gosto imenso de o ler.
Bom fim de semana.
Maria

João Ventura disse...

Olá Maria. Eu nunca disse que queria acabar com o blogue! O ritmo é que baixou um bocado (bem, um graaande bocado!).