sábado, 15 de dezembro de 2007

Praxe

Uma notícia recente informa-nos que um estudante de um estabelecimento de ensino superior de Coimbra ficou paraplégico na sequência de uma "brincadeira" incluida na praxe académica a que estava a ser submetido.
Tenho exprimido frequentemente no meu local de trabalho, perante colegas e estudantes, a minha posição sobre a praxe. Sendo este um blogue de ficções, dedico o seguinte conto aos estudantes praxistas, cujo sadismo ou simples alarvidade os torna responsáveis por situações deste tipo, e às autoridades académicas, que assobiando para o lado perante acontecimentos desta índole, se demitem do papel disciplinar que deviam assumir: uns e outras não deviam fazer parte de uma comunidade académica digna desse nome.

Recepção aos caloiros

Jacinto Ataíde, Dux Veteranorum e Presidente por inerência da Comissão de Praxe, regressa a casa já a noite vai alta. O passo é um pouco incerto, porque acaba de passar umas horas com os outros praxistas, à volta de umas bejecas e outras coisas mais fortes e a relembrar entre gargalhadas os acontecimentos do dia.
A chegada dos caloiros é sempre uma festa! O que é preciso é que a malta se divirta à custa dos putos. E no ano que vem estes vão ser os mais entusiastas a praxar.
Bem podem os gajos do MAPA colar posters, que não têm sorte nenhuma. Movimento Anti Praxe Académica... Uma bosta! Devem ser dois ou três caramelos que imprimem os cartazes e andam depois a colá-los de noite, às escondidas...
Jacinto sente a necessidade de aliviar a bexiga. Lembra-se daquele brasileiro que uma vez lhe disse “Cara, cerveja você não compra, você aluga!”, e ri-se com vontade, enquanto se aproxima da porta de um prédio e urina contra a ombreira.
Quando fecha a braguilha parece-lhe ouvir passos. A rua é escura, caiu entretanto uma neblina através da qual a luz dos candeeiros se escoa com dificuldade. Jacinto sente um arrepio e traça a capa, tentando barrar a humidade que ensopa o ar nocturno.
Os passos ouvem-se agora com mais nitidez. Jacinto apressa-se ao longo da rua. Mais uns duzentos metros e chegará à segurança relativa da praça, bem iluminada por candeeiros de halogéneo. Contorna o tapume de um prédio em obras e subitamente do meio da neblina materializam-se três vultos a fechar-lhe a passagem.
Esboça um gesto de recuo mas os passos de há pouco chegaram agora junto de si. Está cercado.
Os vultos aproximam-se e Jacinto Ataíde verifica que estão mascarados, cada um com um passa-montanha que apenas lhe deixa ver os olhos. Encosta-se ao tapume e os outros fazem agora um semi-círculo à sua volta.
“Olha quem aqui temos, o Dux Veteranorum em pessoa! Então hoje já acabámos de praxar caloiros? Deves estar cansado...”
“Estivemos aqui a pensar que serias um praxista muito mais eficiente se experimentasses algumas das praxes na tua própria pessoa. Portanto vais dar uma voltinha connosco.”
Jacinto tenta mostrar uma coragem que não possui.
“E se eu não quiser?”
“Acontece-te isto”, responde o mascarado, e a mão avança com um objecto que toca no braço de Jacinto. Uma potente descarga eléctrica deixa-lhe o braço adormecido e tem que morder os lábios para não gritar. “O cabrão atacou-me com um taser”, pensa Jacinto, enquanto a dor se espalha por todo o braço, como se o tivesse mergulhado em água a ferver.
“Se não te portas bem levas outra... E agora toca a marchar no meio de nós, e juizinho!”
Dois dos mascarados dão o braço a Jacinto e com mais dois à frente e dois atrás, o grupo vai avançando ao longo da rua. Desembocam na praça, que contornam pelo lado dos bares, alguns dos acompanhantes de Jacinto exibem agora garrafas de cerveja das quais vão bebendo (ou fingindo que bebem?). Uma ou outra pessoa que com eles se cruza encara o grupo como mais um conjunto de foliões noctívagos.
Entram agora na zona residencial. O grupo faz parar Jacinto, um tira-lhe a capa que ainda trazia aos ombros, outro põe-lhe uma coleira ao pescoço, com uma trela, colocam-lhe uma venda preta nos olhos, dão-lhe um empurrão que o desequilibra, fica com as mãos e joelhos no chão, e qualquer tentativa para se levantar é rapidamente neutralizada com um forte puxão na trela.
“Então agora não achas graça, Bobby? Mas hoje de manhã rias como um alarve quando fazias isto aos caloiros”.
“Esta rua por onde vamos é onde os habitantes aqui do bairro costumam passear os cãezinhos. Vê onde pões as mãos...”
O aviso faz disparar um coro de gargalhadas no grupo.
Começam a andar. Segundos depois, a mão direita de Jacinto assenta em algo pastoso; o reflexo de retirar a mão quase o faz desequilibrar e ir com a cara ao chão. O que segura a trela dá-lhe um puxão e o passeio continua, com Jacinto de vez em quando a pisar excrementos com as mãos e os joelhos. Mesmo atrás da venda grossa que lhe colocaram Jacinto apercebe-se de alguns clarões súbitos, intercalados com risos abafados dos seus captores.
O grupo pára. O som do rodar de uma chave, mais o som metálico de um portão que se abre, depois o portão a fechar-se, e Jacinto sente que estão agora dentro de um compartimento (garagem? Armazém?).
“Acabou o passeio, Bobby. Mas o Bobby tem as patas todas suuujas! Temos que as lavar... Estende as patas, Bobby!”
Jacinto estende os braços, ouve água a correr e a seguir sente nas mãos um forte jacto de água, quem está a segurar na mangueira não a mantém fixa, os braços também já estão molhados, ao fim de algum tempo tem a roupa completamente encharcada.
“Agora que o Bobby já tomou banho, vai-se descalçar para brincar um bocadinho.”
O tom de ameaça na voz que falou não lhe deixa alternativa. Ainda vendado, Jacinto desfaz os nós dos atacadores, tira os sapatos, descalça as meias. Empurrado, cambaleia para a frente e recupera o equilíbrio a custo, o chão está escorregadio devido à utilização da mangueira, e os outros estão à volta dele, e empurram-no de uns para os outros, de vez em quando escorrega, várias vezes vai com as mãos e os joelhos ao chão, aí alguém lhe dá um pontapé no traseiro para o obrigar a levantar e tudo recomeça, nova série de empurrões, até que Jacinto atinge o limite, cai de joelhos, e chorando baba e ranho, implora aos seus agressores que parem.
No silêncio que se segue ouve-se a voz de um deles: “Fim da fase 2. Início da fase 3.”
Tiram-lhe a venda. Quando os seus olhos se habituam à luz, Jacinto observa o local onde se encontra. É um espaço amplo (uma garagem?), com chão de cimento, não tem janelas, numa das paredes uma torneira com uma mangueira ligada e enrolada no chão. Uma lâmpada suspensa do tecto espalha uma luz amarelada. Os seus captores mascarados estão vestidos de preto.
Um deles pega na capa de Jacinto e estende-a sobre o chão enlameado. “O Bobby está cansado e pode deitar-se um bocadinho no cobertor... deita, Bobby!” E acompanha as palavras de um gesto ameaçador com o taser.
Jacinto não tem alternativa que não seja obedecer.
“Agora o Bobby zanga-se e vai começar a rosnar e a rasgar o tapete com os dentes e as unhas...”
E a aproximação do taser faz com que Jacinto obedeça. Finca os dentes no tecido grosso da capa e rasga, e puxa, e outra vez, e outra, quando começa a rasgar com as mãos há alguém do grupo que o ameaça: “Com os dentes, com os dentes”, e lá volta a morder a capa, fincar os dentes e puxar com a cabeça até rasgar mais um bocado. E enquanto dura a operação, um deles dispara de vez em quando uma máquina fotográfica.
“Já chega”, diz o que parece se o líder do grupo. “Levanta-te!”.
Há um que traz uma cadeira e obrigam Jacinto a sentar-se. Colocam-lhe de novo uma venda, um deles segura-lha na cabeça com firmeza, ouve um zumbido que ainda está a tentar identificar quando sente a máquina a começar a cortar-lhe o cabelo. Mas o corte não é regular, e continuam a tirar fotografias.
Ao fim de alguns minutos, ouve comentários jocosos: “Oh, pá, mas tu és um artista! Tens que abrir um salão de cabeleireiro de homens!”. Segue-se um coro de risadas.
Tiram-lhe a venda. Um deles coloca a máquina num tripé frente à cadeira, o grupo posiciona-se à volta de Jacinto, obrigam-no a inclinar a cabeça e o que está junto da máquina carrega no temporizador e corre para se juntar ao grupo antes que o flash dispare.
Ordenam a Jacinto que se calce, dão-lhe a capa e um deles diz-lhe: “Agora pira-te! E é melhor tirares umas férias, que vais precisar”. E um coro de gargalhadas acompanha a saída apressada de Jacinto, que uma vez na rua anda um pouco ao acaso até se orientar e depois corre rapidamente na direcção da sua casa.
Entra no pequeno apartamento e no espelho do hall de entrada verifica o estado miserável em que o puseram. As calças esburacadas nos joelhos, a capa rasgada, a roupa completamente encharcada, e quando inclina a cabeça vê o que os sacanas fizeram: o cabelo que lhe cortaram desenha no topo da cabeça as letras M – A – P – A. Filhos da puta!
Pega numa tesoura e com lágrimas de raiva e humilhação a escorrer pelas faces, corta o cabelo o mais rente que pode. As letras continuam a ver-se. Põe creme no pincel da barba, espalha a espuma na cabeça e com a gilette acaba com os últimos vestígios de cabelo.

-------------- X --------------

No dia seguinte, quase 10 da manhã, os membros da comissão de praxe dão sinais de impaciência com o atraso do dux veteranorum. Os caloiros já foram agrupados no átrio da faculdade (“os curros”), está tudo pronto para começar o “tourear do caloiro”, e Jacinto Ataíde não há meio de aparecer. Não responde ao telemóvel nem ao telefone do apartamento onde mora.
“Ontem à noite ele não bebeu assim tanto para ficar de ressaca”, comenta um dos membros da comissão. Um outro mais impetuoso exclama: “Eu vou ver se ele está em casa”, e sai do edifício, mete-se no carro e arranca.
A comissão vai junto dos caloiros, e um deles com um megafone anuncia: “Caloiros, tenham calma, que daqui a pouco começa a festa...”
“Brava”, completa outro, e toda a comissão se ri, mas os risos soam um pouco a falso.
Quinze minutos depois (o apartamento de Jacinto não é longe) chega o colega que foi à sua procura. “Falei com a porteira do prédio: às 8 e meia da manhã ela estava a lavar o átrio da entrada, e viu o Jacinto sair do prédio e apanhar um táxi. Levava uma mala e um gorro de lã enterrado até às orelhas”.
“Num dia como hoje, com o Sol que está? Parece-me uma cena estranha...”
É nessa altura que, dentro do enorme grupo de caloiros, começam a soar gargalhadas. É uma situação tão insólita que deixa a comissão de praxe espantada: os caloiros costumam é estar com aquela atitude entre envergonhada e receosa, sem saber o que lhes vai acontecer a seguir. Os praxistas dirigem-se para a origem das gargalhadas, e empurrando sem cerimónia os caloiros que riem chegam à parede onde um placard exibe um conjunto de fotografias, que mostram o dux veteranorum de coleira e trela a ser conduzido como um cachorro, e outras onde se vê ele no chão a rasgar a capa com os dentes e outra ainda onde, sentado e rodeado por um grupo mascarado, inclina a cabeça para a frente, permitindo que se veja que o cabelo foi cortado de modo a formar a palavra MAPA.
A agitação cresce na multidão dos caloiros, que quase se atropelam para ver as fotos. E riem à gargalhada observando aquele que no dia anterior os praxava forçado a comportar-se daquela forma. A comissão de praxe sente que está a perder o controlo da situação, mas nenhum deles sabe o que fazer, e é aí que o sistema de difusão sonora do edifício começa a transmitir.
Sendo um acontecimento inesperado, toda a gente se cala. E sobre o silêncio agora existente jorra uma voz que implora clemência:
“... não, parem, por favor, chega, não aguento mais isto, não, não, por favor... não... não...”
E a litania transforma-se lentamente num choro convulsivo, que se prolonga durante cerca de um minuto, até parar bruscamente. E surge uma voz calma que anuncia:
“Caros caloiros, como certamente reconheceram, acabam de ouvir o praxista-mor, o auto-intitulado dux veteranorum, o próprio Jacinto Ataíde, na banda sonora correspondente às fotos que já tiveram ocasião de apreciar”.
Risos da parte de muitos caloiros. E a voz continua:
“E agora, caros caloiros, de que é que estão à espera para fazer o mesmo a essa cambada de palhaços de capa e batina, a essa auto-nomeada comissão de praxe? Mostrem-lhes que a humilhação acabou, CORRAM COM ELES!”
Os membros da comissão de praxe entreolham-se, sentindo alguma insegurança, começam lentamente a mover-se em direcção à saída, mas têm que passar através daquela multidão, e são só alguns instantes até o primeiro ser empurrado, puxarem a capa a outro, um terceiro levar uma palmada na nuca, outro um pontapé, e aquela massa de caloiros é como um animal selvagem que estivesse a acordar, há uma batina que se rasga quando o dono é agarrado e tenta desesperadamente libertar-se, há outro que é rasteirado e cai, leva dois pontapés e levanta-se a correr, e há agora uma multidão enfurecida que corre atrás dos membros da comissão de praxe que de roupa rasgada e alguns hematomas fogem desesperadamente em direcção ao portão de saída da faculdade.

-------------- X --------------

A essa hora Jacinto Ataíde segue de comboio para a Beira, o gorro de lã na cabeça. Olhando sem ver as árvores que deslizam velozmente do outro lado da janela, vai ruminando ainda a humilhação de que foi vítima na noite anterior. “Filhos da puta do MAPA”, é tudo o que as lembranças dolorosas o deixam verbalizar, enquanto a distância entre ele e Lisboa vai aumentando...

Grageas, 100 cuentos breves de todo el mundo



O miniconto "Reflexões sobre a carestia da escrita" (aqui publicado no último dia do ano passado) foi agora, na sua versão em castelhano, incluído na antologia Grageas, editada por Sergio Gaut vel Hartman, e que será lançada na Argentina no próximo dia 19.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Contagem decrescente (2)

A revista online argentina Axxón, editada por Eduardo Carletti, traz no número especial de Dezembro uma colecção de micro (nano?) estórias, intitulada Cuenta regressiva (II) em que a primeira tem 60 palavras, a segunda 59, etc e a última 0 (isso mesmo, zero!) palavras. Desta vez tenho lá duas: a número 54 e a última...

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Vai ser lançado no dia 1 de Dezembro

em Porto Alegre e tenho pena de não poder estar presente no lançamento...

(Clique na imagem para aumentar)



A minha contribuição é o miniconto Entre o Dentro e o Fora há sempre uma fronteira, ainda que frágil, que podem ler aqui no "Das Palavras...", se recuarem a 30 de Dezembro do ano passado.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

"Prosperamente os ventos assoprando"



é o que desejamos para acompanhar a trajectória da antologia "Por Universos Nunca Dantes Navegados", lançada ao espaço no Fórum Fantástico 2007, e que transporta no bojo uma introdução (carta de marear, melhor, de universar, porque de universos se trata) do editor, mais 14 contos de 13 autores, portugueses e brasileiros, entre os quais me incluo.
Mais informação sobre a antologia, bem como sobre a forma de aquisição, pode ser vista aqui.

sábado, 10 de novembro de 2007

“De cabeça para baixo” ou “De pernas para o ar”? Você decide!

Começou quando o ministro das finanças mandou para casa uma funcionária doente, tomando a seu cargo a decisão de um serviço que devia ter tomado essa decisão. A seguir, o ministro da saúde escolheu pessoalmente a tinta para pintar as paredes da nova sala de espera do hospital de cebolinho de cima, bem como o tipo de flores de plástico que deviam ornamentar a jarra colocada na mesa da recepção. O ministro da educação ocupou-se ele próprio do regulamento sobre a venda de chupa-chupas na cantina da escola básica de trás-do-sol-posto, e o ministro das obras públicas foi verificar o nó da gravata dos portageiros da auto-estrada que vai ligar os dois novos aeroportos internacionais a construir até 2100.
Por razões de simetria, que tem uma forte influência no astral do país – facto confirmado por 97,23% dos astrólogos de serviço – as novas normas do código da estrada passaram a ser decididas pelos frequentadores do Centro Comercial Colombo no primeiro sábado de cada mês, e o orçamento geral do estado passa a ser aprovado pela assistência à final da taça de portugal, tendo os jogadores de ambas as equipas naturalmente direito de veto.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Minguante


Isto está a tornar-se um hábito...
Vejam no nº 8, que acaba de sair, as minhas microcontribuições. E tudo o resto, claro! O tema é A Leveza.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Uma fábula anarquista

Naquele país longínquo, o poder era uma árvore. Grande, de longos ramos. E muita gente vivia à sombra do poder.
Esses tinham medo que o poder caísse na rua. Assim, os ramos mais pesados eram escorados para evitar esse tão perigoso evento.
Até que entre aqueles que não estavam à sombra, começou a grassar a revolta. E a palavra de ordem era "Queimar!". E uma noite foram junto da árvore, acumularam erva seca em redor do tronco e deitaram-lhe fogo.
O poder era já seco, estéril, e a árvore ardeu bem. Na manhã seguinte, só restava o tronco calcinado.
Mas as raízes da árvore tinham chegado longe, e poucas semanas depois surgiam rebentos um pouco por todo o lado e novos poderes apareceram e se multiplicaram. Pequenos poderes, mas poderes na mesma.
E uma nova palavra de ordem começou a circular, cada vez com mais insistência: "Cortar e queimar!".
E uma noite, ao sinal combinado, equipas bem treinadas cortaram todas as árvores que tinham nascido da velha árvore do poder, fizeram o mesmo ao tronco desta, que se mantinha ainda de pé, juntaram toda a madeira cortada e acenderam uma fogueira gigantesca. E em volta dela festejaram!
E na manhã seguinte, foi a primeira vez que naquele país foi possível dizer, com verdade, que o Sol nasceu para todos...

domingo, 7 de outubro de 2007

Cerejeiras Plaza

Venha disfrutar de uma vista desimpedida do maravilhoso eixo Norte-Sul.
Todas as janelas com vidros simples para poder apreciar o ruído contínuo do tráfego automóvel.
Chegue à varanda (1,5 metros quadrados) de manhã e encha os pulmões com uma agradável mistura que inclui CO2, CO e PAHs.
Não temos garagens, mas os arrumadores da zona são muito simpáticos.

O Banco "Ponha a Corda ao Pescoço e Viva Feliz" financiou este empreendimento e financiará a sua aquisição: sem entrada inicial, acabe de pagar quando for velhinho ou, melhor ainda, faça pagar os seus filhos e netos!

domingo, 23 de setembro de 2007

H2O

"Não percebo o interesse de andar à procura de água em Marte. Ainda se fosse vinho..." balbuciou o homem com a voz entaramelada, olhando com ar melancólico para a garrafa quase vazia.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

O conto que se segue obteve o 3º prémio no 1º Concurso Nautilus de FC, e foi publicado no nº 72 (Junho 99) do fanzine Somnium, CLFC, SP, Brasil. Em Janeiro de 2002 apareceu no site E-nigma, editado por Jorge Candeias. Na altura em que os diversos canais apresentam as novas grelhas, achei que também devia dar a minha contribuição para a temática audio-visual.

Ascensão e Queda da Telenovela

Nota prévia: O presente trabalho foi preparado no âmbito da disciplina Television: Sociology and Technology do mestrado em Politica y Mass-Media leccionado na Universidad Camilo Torres, Florida, Confederación de Norte-América. A tradução para publicação na "Revista de Multimédia Ecran" foi feita pelo autor.


Segundo alguns autores, como Oliveira (1987), as origens da telenovela ("soap" na terminologia anglo-saxónica) devem procurar-se nos rádio-romances, muito populares na década de 50 (antes da expansão generalizada da televisão), geralmente patrocinados por marcas de detergentes, e estes por sua vez nos romances por fascículos (inícios do século XX). A este ponto de vista opõem-se fortemente Santos e Andrade (1989) que, baseando-se numa análise multidimensional da especificidade dos meios de informação utilizados, demonstram magistralmente que o sucesso da telenovela é uma função muito forte da identificação visual entre os diversos sectores socio-culturais do público tele-espectador e os personagens da novela.
A tendência para o alargamento do espaço ocupado pelas telenovelas tinha começado nos anos 70, e prolongou-se pelos 80. As sondagens mostravam que o público gostava de saber todos os pormenores, mesmo os mais irrelevantes, da vida dos actores, confundindo estes muitas vezes com os personagens que interpretavam.
Pereira (1984) mostrou que 73,9 por cento das conversas em locais de trabalho e transportes públicos tinham como tema a novela em exibição diária. Favorecida ao mesmo tempo pelo poder político, por razões que Aguiar (1988) analisa exaustivamente, eram frequentes, no fim da década de 80, novelas que se prolongavam durante anos, com três horas de exibição diárias.
No ano 2002 surgiu o conceito de "telenovela total", desenvolvido por Ayrton (2001, 2002), um MacLuhanista dissidente. Este autor opõe-se às teses que consideram como factores determinantes na evolução do género a ascensão do Brasil ao grupo dos "5 maiores" e a passagem da população hispânica nos EUA acima dos 50 por cento, propondo antes uma teoria baseada em argumentos pós-jungianos.
O número de horas foi aumentando até que, em 2006, a BBC/Globo/CBS mostrava, simultaneamente em 4 canais diferentes, 24 horas por dia, a vida dos 4 personagens principais da novela. Os satélites retransmissores tinham circuitos de atraso que sincronizavam a transmissão com a hora local dos países para onde a novela era enviada. Desta forma, os espectadores podiam acompanhar, em tempo real, a vida do seu personagem favorito. Houve alguma oposição da Sociedade Contra a Invasão da Privacidade dos Cidadãos, mas a acção que moveu contra aquela multinacional foi rejeitada pelo Tribunal de Haia.
Materializou-se assim a coincidência entre espectáculo e vida real. "Life is show and show is life" era o motto do departamento de produção de "A vida de Antonio, Brigitte, Cristina e Dave", os ABCD como eram familiarmente conhecidos por centenas de milhões de espectadores. Antonio (mexicano, hispano-índio, 32 anos) podia ser observado vinte e quatro horas por dia no Canal 17; os Canais 23 e 25 davam conta de todos os acontecimentos nas vidas de Brigitte (francesa, loira, 38 anos) e Cristina (brasileira, de ascendência japonesa, 29 anos); e o Canal 29 apresentava Dave (americano, negro, 35 anos). Algumas regiões tiveram necessidade de legislar contra a existência de televisores de pulso nos locais de trabalho.
O mercado televisivo era no entanto um mercado muito volátil. Cerca de dois anos após o início da "telenovela total", os índices de audiência começaram a dar sinais de enfraquecer. Os produtores eram naturalmente perfeitos conhecedores dos códigos do género, compilados anos antes por Baresi (2004). Assim, sabendo que o coeficiente de empatia público/personagens, verificadas certas condições, tende para um máximo quando estas são colocadas numa situação difícil, fizeram com que Brigitte sofresse um acidente doméstico de que resultaram algumas queimaduras de 3º grau, internamento numa clínica, cirurgia plástica, várias semanas de recuperação.
O índice WATCH ponderado (obtido de 6 em 6 horas com base num universo fixo, corrigido por flutuações demográficas) subiu 3 pontos, mas recomeçou a descer.
Foi necessário então provocar um acidente de automóvel no qual Dave sofreu várias fracturas expostas, com a necessidade subsequente de três intervenções cirúrgicas. Embora as sondagens spot mostrassem que as cenas hospitalares traziam um aumento de audiência pontual, o índice apenas atenuou a sua descida.
Quando foi concluído, sem sombra de dúvida, que se estava perante uma vaga de fundo, uma reunião ao mais alto nível teve lugar secretamente na BBC/Globo/CBS. Depois de uma apreciação dos índices de audiência, a decisão de terminar o programa foi unânime. Entre uma proposta de um fim gradual (fazendo desaparecer os personagens um a um, o que poderia reforçar momentaneamente a audiência em relação aos sobreviventes) e outra de um final súbito e mais dramático, foi aprovada a segunda, por 7 votos contra 2. Para concretizar o final, foi feita uma simulação da espectacularidade de um acidente aéreo e de um aquático, sendo escolhido o segundo, dado o muito maior impacto emocional dos destroços e corpos a boiar, sangue a espalhar-se na água, etc. Foi assim decidido que os quatro personagens principais iriam a bordo de um iate e que este explodiria, presumivelmente devido a um curto-circuito (Anon., 2008).
E foi o que ocorreu, 3 dias após esta reunião. A explosão do iate, mostrada em simultâneo pelos 4 canais da "telenovela total", bateu o record absoluto de audiência. A publicidade exibida atingiu preços astronómicos (Watch, 2008). À data em que escrevemos este texto, prossegue ainda a batalha jurídica entre a SPAT (Sociedade Protectora dos Artistas de Televisão) e a BBC/Globo/CBS.
Alguns autores, como Kellog (2011), consideram que os acontecimentos descritos constituem o climax do género, argumentando que o máximo de empatia implica um meio bidimensional, e que a holovisão, com a introdução da tridimensionalidade, constitui um processo de reprodução "demasiado real". Outros opinam que estes argumentos são semelhantes aos utilizados várias décadas atrás quando da introdução da cor no cinema. Prosseguem entretanto as investigações (muito activas, segundo consta, na Confederação do Pacífico Ocidental) sobre a introdução do cheiro em produções holovisivas, com a intenção de, a médio prazo, se chegar ao espectáculo totalmente sensorial. Estes desenvolvimentos demasiado recentes estão todavia fora do âmbito do presente trabalho.


REFERÊNCIAS

Aguiar, V. (1988), "O poder e a comunicação social - simbiose ou parasitismo?", Editora Problemas e Soluções, Lisboa, Portugal.
Anon. (2008), Actas do julgamento SPAT vs BBC/Globo/CBS, p. 3125-3157, Tribunal Internacional de Haia, Holanda.
Ayrton, F. A. (2001), "The total soap opera concept", International Journal of Mass-Media Studies, 27, p. 361-384.
Ayrton, F. A. (2002), "Total Soap Opera - The Life Show", Art & Science Press, S. Francisco, U.S.A.
Baresi, D. (2004), "Television - Syntax, Semantics, Semiotics", World University Press, Amsterdam, Nederlands.
Kellog, W. (2011), "SPAT vs BBC/Globo/CBS - incident or end of an era?", Sociometrics and Mediatics Journal, 32, p. 315-332.
Oliveira, P. A. (1987), "As origens da telenovela", tese de doutoramento, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade de Lisboa-Sintra, Portugal.
Pereira, J. P. (1984), "Análise estatística do público da telenovela", 2º Congreso Latino-Americano de Comunicacion y Publicidad, Buenos Aires, Argentina.
Santos A. e L. Andrade (1989), "Telenovela - relação biunívoca entre argumento e público", Relatório de progresso do Projecto Integrado sobre Atividade Mediática, Escola de Engenharia Social, Universidade de São Paulo, Brasil.
Watch (2008), Worldvision Yearbook.

sábado, 15 de setembro de 2007

Intermezzo Gastronómico

Passou junto ao que anos atrás se designava por "loja dos 300" e entre a diversa mercadoria exposta à porta, chamou-lhe a atenção uma caixa com letras que diziam "Ventilador de sobremesa". Percebeu do que se tratava - a foto da ventoinha ao lado das letras não deixava lugar a dúvidas - e pensou "Isto deve ser o resultado de uma tradução de cantonês para português feita por alguém que não sabe muito bem nem uma língua nem a outra". E esqueceu o assunto.
À hora do costume foi com os colegas do costume almoçar à tasca do costume. No final da refeição a D. Rosa, esposa do proprietário, veio à mesa anunciar: "Sobremesa temos mousse, pudim flan, melão e uvas." E sem pensar, ele disparou: "Não tem ventiladores?"
A face incrédula da D. Rosa e a gargalhada colectiva dos seus colegas impediram-no de se concentrar e descobrir a razão daquela estúpida pergunta.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

As "correntes" parecem estar (outra vez) na moda. O Luis Ene meteu-me numa: "10 Livros que Não Mudaram a Minha Vida".
Visto que 1) não era preciso rezar a São Judas Tadeu; e 2) não havia ameaças à integridade física de quem interrompesse a corrente, resolvi alinhar.
E saiu isto:

A Lista de Todas as Listas

Produzia listas de forma obsessiva. Ao princípio era um hobby, mas cedo se tornara a sua actividade principal, dominante, exclusiva. Fazia listas de tudo: de livros, filmes, discos, cidades, países, actores, políticos, receitas de cozinha, animais, plantas, monumentos e de cada classe segundo vários critérios: os maiores, os mais pequenos, os melhores, os piores, os mais antigos, em suma, tudo o que fosse comparável podia ser (e era) objecto de uma lista.
Quando foi desafiado para escrever a lista dos "10 Livros que Não
Mudaram a Minha Vida", sorriu. Foi à "Lista de Todas as Listas", mas
quando acabou de percorrê-la (o que lhe levou bastante tempo como é
fácil de calcular) verificou que nunca tinha feito uma lista dos livros
que não tinham mudado a sua vida. Era obviamente necessário corrigir essa falta.
Mas não se preocupou grandemente: a Lista de Todas as Listas era um "work in progress" e logo descobriu uma forma de fácilmente lhe acrescentar o que lhe tinha sido pedido. Como tinha a "Lista de todos os livros que já li" e a "Lista dos livros que mudaram a minha vida", bastaria subtrair a segunda da primeira, et voilá!
Foi então à procura das duas listas mencionadas, mas aí surgiu um problema: o sistema de catalogação que usava na "Lista de Todas as Listas" deixava muito a desejar (entre outras razões porque ele estava sempre a introduzir-lhe modificações...): atribuia números às listas e havia depois uma "Lista de localização de listas" que fazia corresponder locais de arquivo a esses números. Mas essa Lista de localização de listas tinha sido deslocalizada pelo que, com muita pena, não lhe foi possível responder ao desafio que lhe fora lançado. Nem a "Lista dos blogues para continuar correntes" conseguiu encontrar...
Maior do que a intensidade da sua obsessão pela feitura de listas, era a sua total e completa ausência de sentido de arrumação!

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Capital humano

“Está ali, senhor comissário”, dizia em voz baixa o gerente da dependência, apontando disfarçadamente.
O comissário olhou e viu um homem metido num saco-cama, sentado num sofá. Nas mãos tinha um livro de que lia passagens, interrompendo de vez em quando a leitura para passear o olhar em volta, observando ora os clientes, ora os cartazes anunciando os diversos produtos financeiros disponibilizados pelo Banco.
“Violento?” perguntou o Comissário.
“De forma alguma”, respondeu o gerente. “Entrou quando abrimos a porta, trazia uma pequena mochila às costas e um saco plástico na mão, enfiou-se no saco-cama e sentou-se ali...”
“Bem, vou falar com ele. O senhor fique aqui.”
O agente da autoridade dirige-se ao homem sentado. O gerente, afastado, observa.
“Bom dia, sou o comissário Neves, da PSP. O senhor é...?”
“António Lima, senhor comissário.”
“Senhor Lima, pode explicar-me por que se instalou desta forma aqui no Banco?”
“Com certeza, senhor comissário. Já podia ter explicado ao gerente, se ele estivesse menos nervoso e me ouvisse, em vez de estar sempre a dizer em voz baixa vá-se embora! vá-se embora!
“Então conte lá...”
“Sabe, senhor comissário, até há uns dias atrás eu era um funcionário administrativo da empresa Almeida & Almeida, fabricantes de sapatos. Trabalhei lá durante desassete anos...
Sempre me considerei parte do pessoal da empresa, até que há dois anos houve grandes modificações, a empresa chamou uns consultores que andaram por lá a fazer perguntas e a escrever relatórios, e uma das consequências foi que a Secção de Pessoal passou a ser o Departamento de Recursos Humanos.
Não gostei! Senti que passar a ser considerado um recurso – embora humano – me punha ao nível da fotocopiadora ou do relógio de ponto. Mas não disse nada...
Há seis meses, a Almeida & Almeida foi comprada por uma multinacional, a “Shoes for All”. Puseram à frente da empresa um destes jovens com o diploma do MBA ainda com a tinta fresca, e em poucos dias deixámos de ser recursos humanos e passámos a ser capital humano.
Na semana passada ficou clara a intenção da aquisição: a administração anunciou que ia desactivar as secções de fabrico, passando a empresa a funcionar como armazém e centro de distribuição para o material da “Shoes for All” fabricado pelos pequeninos escravos no extremo oriente. A óptima carteira de clientes da Almeida & Almeida foi a cereja no topo do bolo.
E assim, de uma assentada, 90 por cento do capital humano foi despedido! E tudo para o bem da economia...”
“Chegado a este ponto, pensei assim: António, quem é que guarda o capital? Os bancos. Então, se tu és capital - embora humano – procura um banco que te guarde. E foi assim que vim para aqui.”
“Eu fiz a minha parte, agora o Banco tem que fazer a parte dele, não é assim?”
O homem tinha feito esta descrição num tom calmo, pausado, olhando o comissário nos olhos. Este reflectia no que tinha ouvido e pensava para si: “Mais um que se passou, o desemprego faz destas coisas às pessoas”, mas ao mesmo tempo uma pequenina dúvida surgia no seu estruturado sistema mental, onde o Bem e o Mal ocupavam posiçõs nítidas, e essa dúvida crescia, insidiosa, “e se o homem tivesse alguma razão?”, e a dúvida a crescer, a crescer, e o comissário levantou-se e disse:
“Desculpe-me só um momento.”
Afastou-se alguns metros e ligou o telefone.
“Chefe, temos aqui um pequeno problema. Preciso que me envie alguém da Psicologia para ajudar a negociar uma situação. OK, fico à espera.
Olhou para o homem. António Lima tinha regressado à leitura do livro, alheado do que se passava à sua volta... E na cabeça do comissário Neves, as palavras capital humano soavam cada vez mais estranhas...

sexta-feira, 15 de junho de 2007

The death of Caesar

"A morte de César", publicado aqui no blogue na versão original portuguesa em Outubro do ano passado, e em espanhol na revista online Axxón, numa antologia "Veinte breves viajes por el tiempo", foi agora republicado em inglês no site de Daniel W. Koon, integrado em "Twenty short trips through time", com tradução do próprio Daniel, a quem agradeço.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Contagem decrescente

A revista online argentina Axxón traz no último número (174) uma colecção de micro (nano?) estórias, intitulada Cuenta regresiva, em que a primeira tem 60 palavras, a segunda 59, etc e a última 0 (isso mesmo, zero!) palavras. A minha tem o número 55 e é a versão espanhola de uma mini-saga já publicada aqui. Vão lá ver!

segunda-feira, 11 de junho de 2007

sábado, 9 de junho de 2007

Em Maio de 2004, teve lugar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa o 1º Encontro Literário de Fantasia e Ficção Científica, que nos dois anos seguintes reencarnou como Fórum Fantástico. Convidado a participar pelo Rogério Ribeiro, preparei o texto que se segue , e para “ilustrar” a apresentação, fiz uns rabiscos nuns acetatos, alusivos às obras de Calvino, que fui projectando ao longo da conversa. Este trabalho foi publicado nas actas do Encontro e posteriormente no fanzine Dragão Quântico. A presente versão tem pequenas alterações em relação às duas anteriores. Também já li mais alguns livros de Calvino, mas não quis alterar demasiado o texto original...

Italo Calvino: Fantasia, ficção especulativa, slipstream... ou simplesmente literatura?

RESUMO (não é bem, mas podia ser...)
O cartógrafo que desenha mapas do mundo real usa como ferramenta principal uma caneta de ponta fina, porque as fronteiras entre os países, contestadas ou não, são linhas, que estabelecem um corte territorial, uma descontinuidade administrativa, política, por vezes cultural, mas (quase) sempre autoritária.
Quem pretendesse mapear o território literário, teria que usar um pincel e trabalhar sobre papel poroso, mais uma aguarela do que um desenho à pena, porque as fronteiras entre géneros são frequentemente mal definidas, difusas, por vezes reivindicadas por partidários dos dois (ou mais) géneros limítrofes, mas suficientemente amplas para que alguns autores consigam viver dentro delas.
E se numa noite de inverno um viajante iniciasse a travessia de uma dessas fronteiras, na sua caminhada entre duas cidades invisíveis, poderia seguir o atalho dos ninhos de aranha e entrando no bosque, olhando para cima, ter a sorte de avistar o barão trepador, ou mais adiante encontrar uma das metades do visconde cortado ao meio. Neste caso, deverá certificar-se de qual das metades se trata, pois isso poderá ter consequências no desenrolar da sua história pessoal.
Se pelo contrário o destino o fizer encontrar o cavaleiro inexistente – façanha desde logo notável – este poderá conduzi-lo ao castelo dos destinos cruzados, e talvez à porta esteja Italo Calvino que, sorrindo, lhe pegará no braço e o conduzirá numa visita guiada enquanto lhe conta como Palomar se perdeu em devaneios numa loja de queijos, o que poderá querer significar – mas isto está aberto à discussão – que a literatura (também) é para comer.

....................

Na segunda metade da década de 50, numa cidade do interior alentejano, um adolescente não encontrava muitas alternativas à leitura como ocupação das longas férias de Verão. Um vizinho meu, mais velho, tinha um conjunto razoável de volumes da colecção "O livro de bolso" da Portugália Editora, que me foi emprestando e que eu fui devorando. Foi assim que encontrei (ou que veio ter comigo) o primeiro livro de Italo Calvino: O Atalho dos Ninhos de Aranha.
Eu gostava dos filmes neo-realistas italianos, e a temática do livro "agarrou-me": além disso, a narrativa do ponto de vista de uma criança introduzia um certo grau de estranheza. Interessante...

O segundo encontro, mais ou menos na mesma altura, foi com O Visconde Cortado ao Meio. Esta parábola sobre o bem e o mal, uma espécie de Dr Jekill & Mr Hyde originados por um tiro de canhão na guerra entre a Áustria e a Turquia (1716), levou-me a dar mais um passo em direcção ao interior do universo de Calvino. Deste livro, a lembrança mais marcada é a piscadela de olho de Calvino à base maniqueísta do nosso pensar: as acções do "meio visconde bom" conseguem por vezes ter piores consequências do que as da metade má.


Após um muito, mas muito longo intervalo afastado desse universo, encontro O Cavaleiro Inexistente no quarto do meu filho, então a frequentar o 9º ano. Tinha-lhe sido emprestado por um colega. Pego nele por curiosidade, e o insólito da história toma conta de mim: aquela armadura vazia, mas ao mesmo tempo tão cheia das virtudes da cavalaria, do sentido do dever, do "politicamente correcto" medieval apresenta analogias com algumas pessoas com quem nos cruzamos no dia a dia, cascas sem miolo, pouco mais do que discursos ocos.


Mais um ou dois anos, e em Agosto, numa feira do livro no norte do país, surge à minha frente O Barão Trepador. Era o que me faltava ler para completar a trilogia Os Nossos Antepassados. Durante duas semanas, ao ritmo calmo das férias do Verão, fui acompanhando as deambulações de Cosimo, o primogénito de uma família nobre, saltando de árvore em árvore e organizando (humanizando) o ambiente arbóreo onde haveria de passar o resto da vida.


Noutra feira do livro, desta vez no átrio do Pavilhão Central do Instituto Superior Técnico, com saldos provenientes de diversas editoras, os meus passos dirigem-me para As Cidades Invisíveis sobre as quais já tinha lido e ouvido. As conversas entre Marco Polo e Kublai Kan levantam questões, fazem vibrar algumas fundações das nossas estruturas mentais, lembram-nos que a realidade que vemos é muitas vezes um cenário e que quando esse cenário é rasgado, o que aparece por detrás pode ser outro cenário... As cidades e a memória, as cidades e o desejo, as cidades e os sinais, as cidades subtis, as cidades e as trocas, as cidades e os olhos as cidades e o nome, as cidades e os mortos, as cidades e o céu, as cidades contínuas, as cidades ocultas: estas as classes que Italo Calvino usa para catalogar as cidades descritas por Marco Polo. Colocamo-nos na posição de Kublai Kan ou de Marco Polo? O primeiro tenta ver o que o outro observou e descreve, ou será que é o segundo que procura e acaba por encontrar aquilo que nasce na imaginação do primeiro?


Sobre este livro, escreveu Gore Vidal (The New York Review of Books): Of all tasks, describing the contents of a book is the most difficult and in the case of a marvellous invention like Invisible Cities, perfectly irrelevant.
Surge depois a colecção Mil Folhas do Público, e o seu número 11 é Se Numa Noite de Inverno Um Viajante, do qual nessa altura o Luís Rodrigues me fala muito bem. O próprio Calvino o define como um "romance sobre o prazer de ler". Comprado, começado, e capítulo a capítulo é um novo território que se desdobra, ou novos territórios, com códigos de leitura que vão forçosamente variando, num permanente desafio entre autor e leitor (e leitora!), como num jogo do gato e do rato.


Algum tempo mais tarde, na FNAC do Colombo, em Lisboa, encontro Palomar. Nova revelação: a forma como ele analisa e comenta a sua realidade quotidiana deveria ser utilizada como material de estudo em qualquer oficina de escrita criativa. O seio nu, A pantufa desirmanada ou O museu dos queijos são pequenos textos saborosos, mas que mantêm o sabor em sucessivas leituras.



Sobre O Castelo dos Destinos Cruzados não vou dizer nada porque é o que ando a ler neste momento.


E os percursos para encontrar Calvino (ou qualquer outro autor...) aumentaram exponencialmente com todos os caminhos e atalhos que têm sido abertos no ciberespaço. Uma pesquisa no Google com o nome “Italo Calvino” fornece material suficiente para semanas de leitura. E na preparação para esta palestra encontro na Web um fragmento de Cosmicómicas, ziliões de anos de evolução compactados e humor q. b., onde surgem personagens de nomes impronunciáveis, como o narrador, Qfyfq, que aposta obsessivamente com o seu amigo (k)yK sobre o desenvolvimento futuro do universo, desde o aparecimento dos átomos nos primeiros instantes às cotações da bolsa no século XX. O que li foi suficiente para incluir o título na minha wish list de livros, em permanente actualização.


A pluralidade de caminhos, a multiplicidade de leituras num universo ficcional riquíssimo leva a que qualquer esquema classificativo da obra de Italo Calvino se revele forçosamente redutor e esteja condenado ao insucesso.
Os “encontros” entre a minha trajectória de leitor e as obras de Italo Calvino irão certamente continuar no futuro ...

quarta-feira, 6 de junho de 2007

O Zen e a Literatura Fantástica

Em 1974, Robert M. Pirsig publicou “Zen and the Art of Motorcycle Maintenance”, a descrição de uma viagem de mota pelo interior norte-americano, feita por um pai e um filho, que funciona em relação ao primeiro como uma espécie de peregrinação interior. Comprei o livro em 1981, atraído, devo confessar, pela estranheza do título. Li-o nesse ano, gostei, e devo ter-lhe pegado duas ou três vezes nestes últimos 25 anos, mas quando tive que arranjar um título para esta conversa, pensei que se aquele título tinha suscitado a minha curiosidade naquele longínquo 1981, talvez o pudesse adaptar para atrair a atenção de mais alguém neste ano de 2006. E assim nasceu o título “O Zen e a Literatura Fantástica”.

O que vai seguir-se é apenas um conjunto de notas de leitura de um leitor compulsivo, ligadas pelos fios de memória através dos quais as estórias se falam umas às outras. Além de alguns contos Zen, serão referidos três autores que poderiam ser designados como A Fantástica Trindade: Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Italo Calvino. Dadas as limitações de tempo, os exemplos escolhidos terão que ser de ficção curta, ou fragmentos de ficção mais longa.

E em primeiro lugar, por quê a associação do Zen com literatura fantástica?

O Zen procura atingir a iluminação. Esta iluminação está em geral relacionada com o transcender a situação vivida, passar acima dela, vê-la de um plano superior onde o problema, conflito, dilema deixa de fazer sentido, ou passa a ser trivial. Como método de ensino, utiliza frequentemente problemas que o mestre coloca ao discípulo, problemas aparentemente sem solução, que só podem ser resolvidos quando o discípulo atinge a iluminação.

Existem diversas colecções de contos Zen, e uma das melhores compilações é “Zen Flesh, Zen Bones”, feita por Paul Reps e Nyogen Senzaki.

Foi daí que tirei este clássico:

Uma Parábola

Um homem que viajava através de um campo encontrou um tigre. Fugiu, perseguido pela fera. Chegando à beira de um precipício, agarrou-se a uma raiz e ficou suspenso sobre o vazio. Por cima, o tigre farejava-o. Tremendo, o homem olhou para baixo, onde viu outro tigre à espera para o devorar. Só a raiz o sustinha.

Dois ratos apareceram e começaram a roer a raiz. Muito próximo, o homem viu um morango apetitoso. Segurando a raiz só com uma das mãos, o homem colheu o morango e meteu-o à boca. Como era doce!

A literatura fantástica de qualidade é a que surpreende, desafiando a capacidade de percepção do leitor. A leitura de uma boa história fantástica é como o rasgar de um cenário, e a surpresa resultante assume a forma de um sentimento próximo da iluminação do Zen. Ainda que (ou sobretudo quando) por detrás possa existir outro cenário...

Julio Cortázar foi o meu primeiro contacto com o que depois vim a saber chamar-se “realismo mágico”. E disse, muito melhor do que eu poderia dizer, numa conferência proferida na Universidade Católica Andrés Bello, em Caracas, intitulada “El sentimiento de lo Fantástico”:

Esse sentimento do fantástico como gosto de chamar-lhe, porque creio que é sobretudo um sentimento e mesmo um pouco visceral, esse sentimento acompanha-me desde o princípio da minha vida, desde muito pequeno, antes, muito antes de começar a escrever, neguei-me a aceitar a realidade tal como os meus pais e professores me pretendiam impô-la e explicá-la. Eu vi sempre o mundo de uma forma diferente, senti sempre que entre duas coisas que parecem perfeitamente delimitadas e separadas, há interstícios através dos quais, para mim pelo menos, passava, se infiltrava um elemento que não podia explicar-se com leis, que não podia explicar-se com lógica, que não podia explicar-se com a inteligência racional.

Esse sentimento, que penso ser reflectido na maioria dos meus contos, poderíamos qualificá-lo de “estranhamento”; em qualquer momento pode acontecer-vos, poderá ter-vos acontecido, a mim acontece-me a toda a hora, em qualquer momento que podemos qualificar como prosaico, na cama, no autocarro, no duche, falando, caminhando ou lendo, surgem como pequenos parênteses nessa realidade e é aí que uma sensibilidade preparada para esse tipo de experiências sente a presença de algo diferente, sente, por outras palavras, o que podemos chamar o fantástico.

É de Cortázar a seguinte

Maneira facílima de destruir uma cidade

Espera-se, escondido entre a erva, que uma grande nuvem do tipo cumulus se localize sobre a cidade que nos incomoda. Dispara-se então a flecha petrificadora, a nuvem converte-se em mármore, e o resto dispensa comentário.

No seu livro “Historias de cronopios y de famas”, publicado em 1962, existe um utilíssimo Manual de Instrucciones, donde seleccionei umas apropriadamente tristes

Instruções para chorar

Instruções para chorar. Pondo de lado os motivos, debrucemo-nos sobre a maneira correcta de chorar, entendida como um choro que nem assuma um carácter escandaloso, nem insulte o sorriso com uma semelhança paralela e torpe. O choro médio ou ordinário consiste numa contracção geral do rosto e um ruído espasmódico acompanhado de lágrimas e ranhos, estes últimos só no final, porque o choro acaba quando o sujeito se assoa energicamente. Para chorar, dirija a imaginação para si próprio, e se isto for impossivel por ter contraído o hábito de acreditar no mundo exterior, pense num pato coberto de formigas ou nesses golfos do estreito de Magalhães nos quais não entra nada, nunca. Chegado o choro, deve tapar-se o rosto com decoro, usando ambas as mãos com as palmas viradas para dentro. As crianças devem chorar com o braço contra a cara, e de preferência num canto do quarto. Duração média do choro, três minutos.

Ainda hesitei em incluir o texto seguinte, mas depois pensei: que diabo, deve haver algumas pessoas na assistência que ainda se lembrem que há uns anos atrás se dava corda aos relógios.

E assim, do mesmo Manual de Instrucciones, sai o

Preâmbulo às instruções para dar corda ao relógio

Pensa nisto: quando te oferecem um relógio oferecem-te um pequeno inferno florido, uma cadeia de rosas, um calabouço de ar. Não te dão somente o relógio, com muitos parabéns e esperamos que te dure muito tempo porque é de boa marca, suiço e com âncora de rubis; não te oferecem somente esse minúsculo picapau que vais amarrar ao pulso e levarás a passear contigo. Oferecem-te – não o sabem, o que é terrivel é que não o sabem –, oferecem-te um novo pedaço frágil e precário de ti mesmo, algo que é teu mas que não é o teu corpo, que tens que amarrar ao teu corpo com a pulseira como um bracinho desesperado agarrando-se ao teu pulso. Oferecem-te a necessidade de lhe dar corda todos os dias, a obrigação de lhe dar corda para que continue a ser um relógio; oferecem-te a obsessão de procurar a hora exacta nas montras das relojoarias, no sinal horário da rádio, na informação horária da companhia dos telefones. Oferecem-te o medo de o perder, de que to roubem, de que caia ao chão e se parta. Oferecem-te a sua marca, e a segurança de que é uma marca melhor que as outras, oferecem-te a tendência de comparar o teu relógio com os outros relógios. Não te oferecem um relógio, tu é que és o oferecido, oferecem-te a ti para o aniversário do relógio.

De Julio Cortázar não vou ler mais, porque os seus contos são demasiados extensos para o tempo disponível e suportam mal a extracção de fragmentos. Curiosamente (mais uma coincidência em que o fantástico é fértil) Cortázar é publicado pela primeira vez numa revista literária cujo secretário da redacção é Jorge Luis Borges.

Mas antes de passar a Borges, (que em 1977 dá uma conferência sobre Budismo no Coliseu de Buenos Aires) vou ler-vos mais um conto Zen. Gosto em particular deste porque mostra uma religião com sentido de humor, o que não parece ser muito frequente...

A Pedra na Cabeça

Hogen, um mestre Zen chinês, vivia sozinho num pequeno templo no interior do país. Um dia chegaram quatro monges que andavam em viagem e que lhe pediram se podiam fazer uma fogueira no pátio para se aquecerem.

Enquanto acendiam o fogo, Hogen ouviu-os a discutir sobre subjectividade e objectividade. Chegou junto deles e disse: “Está ali aquela pedra grande. Acham que ela está dentro ou fora das vossas mentes?”

Um dos monges respondeu: “Do ponto de vista Budista, tudo é uma objectificação da mente, então eu diria que a pedra está dentro da minha mente.”

“Deves sentir a cabeça muito pesada, a transportar uma pedra destas lá dentro.”

De Borges, creio que o primeiro conto que li foi “As ruínas circulares”, incluido no livro “Ficções”. Nele se fala de um mago que cria um filho sonhando-o. Preocupa-o que o seu filho possa descobrir que não é real, que é apenas um sonho. E o conto termina assim:

(...) Numa madrugada sem pássaros o mago viu abater-se sobre as paredes o incêndio concêntrico. Por um instante, pensou refugiar-se nas águas, mas logo compreendeu que a morte vinha coroar a sua velhice e absolvê-lo dos seus trabalhos. Caminhou ao encontro dos círculos de fogo. Estes não morderam a sua carne, acariciaram-no e inundaram-no sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele próprio também era uma aparência, que outro estava a sonhá-lo.

Esta ideia de sequência infinita (neste caso alguém que sonha alguém, que sonha alguém, que sonha alguém) é um tema caro a Borges. Eis aqui outro exemplo:

Um sonho

Num deserto lugar do Irão há uma não muito alta torre de pedra, sem portas nem janelas. No único compartimento (cujo chão é de terra e tem a forma de um círculo) há uma mesa de madeira e um banco. Nessa cela circular, um homem parecido comigo escreve em caracteres que não compreendo um longo poema sobre um homem que noutra cela circular escreve um poema sobre um homem que noutra cela circular... O processo não tem fim e ninguém poderá ler o que os prisioneiros escrevem.

Outra técnica favorita de Borges é a utilização de citações inventadas. O seguinte texto é atribuido a Suaréz Miranda, Viajes de varones prudentes, IV, cap. 45, Lérida, 1658, e intitula-se:

Do rigor em ciência

... Naquele Império, a Arte da Cartografia conseguiu tal perfeição que o mapa de uma só Província ocupava toda uma Cidade e o mapa do Império toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmesurados não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos Dadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes consideraram que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; não há em todo o País outra relíquia das Disciplinas Geográficas.

Folheando as Obras Completas publicadas há alguns anos, encontro outro tema recorrente: o sentimento de que, no universo, tudo se liga a tudo, embora às vezes não nos apercebamos como. O conto seguinte é um exemplo disso; chama-se

O bastão lacado

María Kodama descobriu-o. Apesar da sua autoridade e da sua firmeza, é curiosamente leve. Quem o vê repara nele; e quem repara fica a lembrar-se.

Observo-o. Sinto que é uma parte daquele império, infinito no tempo, que ergueu a sua muralha para construir um recinto mágico.

Observo-o. Penso naquele Chuang Tzu que sonhou que era uma borboleta e que não sabia, ao acordar, se era um homem que tinha sonhado ser uma borboleta ou uma borboleta que sonhava agora ser um homem.

Observo-o. Penso no artesão que trabalhou o bambu e o dobrou para que a minha mão direita pudesse agarrar bem o punho.

Não sei se ainda está vivo ou se morreu.

Não sei se é tauista ou budista ou se interroga o livro dos sessenta e quatro hexagramas.

Não nos veremos nunca.

Está perdido entre novecentos e trinta milhões.

No entanto, alguma coisa nos liga.

Não é impossível que Alguém tenha premeditado este vínculo.

Não é impossível que o universo necessite deste vínculo.

Por fim, um outro aspecto de Jorge Luis Borges, uma fina ironia sobre si próprio, bem patente no pequeno conto

Borges e eu

Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, na contemplação do arco de um saguão e da cancela; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num trio de professores ou num dicionário biográfico. Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o sabor do café e a prosa de Stevenson; o outro comunga dessas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atributos de um actor. Seria exagerado afirmar que a nossa relação é hostil; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me. Não me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o bom já não seja de alguém, nem sequer do outro, mas da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a perder-me definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou-lhe cedendo tudo, ainda que me conste o seu perverso hábito de falsificar e magnificar. Espinosa entendeu que todas as coisas querem perseverar no seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra, e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros do que em muitos outros ou no laborioso toque de uma viola. Há anos tratei de me livrar dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e tudo perco, tudo é do esquecimento ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta página.

Antes de passar a Italo Calvino, mais um conto Zen. Quando Jean-Paul Sartre disse, numa frase muito citada, “o inferno são os outros”, poderia ter dito “o inferno (e o paraíso) somos nós”:

As Portas do Paraíso

Um soldado de nome Nobushige foi ter com Hakuin e perguntou-lhe: “Existe de facto um paraíso e um inferno?”

“Quem és tu?” perguntou-lhe Hakuin.

“Sou um samurai,” respondeu o guerreiro.

“Tu, um soldado!” exclamou Hakuin. “Que espécie de senhor te quereria na sua guarda? A tua cara parece a de um pedinte.”

Nobushige ficou tão irritado que começou a desembainhar a espada, mas Hakuin continuou: “E tens uma espada! Provavelmente está tão embotada que não serias capaz de me cortar a cabeça.”

Quando Nobushige desembainhou a espada Hakuin comentou: “Abriram-se as portas do inferno!”

Ouvindo estas palavras, o samurai percebeu a disciplina do mestre, embainhou a espada e fez uma vénia.

“Abriram-se as portas do paraíso,” disse Hakuin.

Italo Calvino... porque sim. Uma comunicação académica que se preze deve citar o próprio autor, pelo que a justificação para a minha fascinação por Calvino pode ser encontrada na comunicação que fiz no 1º Encontro Literário de Fantasia e Ficção Científica, intitulada

“Italo Calvino: Fantasia, ficção especulativa, slipstream... ou simplesmente literatura?”, publicada nas Actas do Encontro e posteriormente no fanzine Dragão Quântico.

Os textos que vou ler de Italo Calvino são todos de “As Cidades Invisíveis”, que é um livro onde Marco Polo, ao serviço de Kublai Kan, descreve a este as cidades que visita nas suas viagens. As descrições das cidades são intercaladas com descrições da interacção entre os dois personagens, que constituem um segundo plano de leitura do livro.

Marco entra numa cidade; vê alguém numa praça viver uma vida ou um instante que poderiam ser seus; no lugar daquele homem agora poderia estar ele se tivesse parado no tempo muito tempo antes, ou se muito tempo antes numa encruzilhada em vez de tomar uma estrada tivesse tomado a oposta e ao cabo de uma longa volta viesse encontrar-se no lugar daquele homem naquela praça. Agora, daquele seu passado verdadeiro ou hipotético ele está excluído; não pode parar; tem de prosseguir até outra cidade onde o espera outro seu passado, ou algo que talvez tivesse sido um seu possível futuro e agora é o presente de outro qualquer. Os futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos.

- Viajas para reviver o teu passado? - era agora a pergunta do Kan, que também podia ser formulada assim: - Viajas para achar o teu futuro?

E a resposta de Marco: - O algures é um espelho em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu, descobrindo o muito que não teve nem terá.

Gostava de vos ler agora um texto que é uma verdadeira análise sobre a essência do poder:

Voltando da sua última missão Marco Polo foi dar com o Kan à sua espera sentado diante de um tabuleiro de xadrez. Com um gesto convidou-o a sentar-se à sua frente e a descrever-lhe só com o auxílio das peças de xadrez as cidades que tinha visitado. O veneziano não desanimou. As peças do xadrez do Grão Kan eram de marfim polido: dispondo no tabuleiro torres dominantes e cavalos desconfiados, adensando enxames de peões, traçando alamedas direitas ou oblíquas como o andar majestoso da rainha, Marco recriava as perspectivas e os espaços de cidades brancas e negras nas noites de luar.

Ao contemplar estas paisagens essenciais, Kublai reflectia sobre a ordem invisível que governa as cidades, sobre as regras a que corresponde o seu surgir e tomar forma e prosperar e adaptar-se às estações e murchar e arruinar-se. Por vezes parecia-lhe que estava prestes a descobrir um sistema coerente e harmonioso que estava submetido às infinitas deformidades e desarmonias, mas nenhum modelo aguentava a comparação com o do jogo de xadrez. Talvez, em vez de matar a cabeça a evocar com o magro auxílio das peças de marfim visões apesar de tudo destinadas ao esquecimento, bastava jogar uma partida de acordo com as regras, e contemplar cada um dos sucessivos estados do tabuleiro como uma das inúmeras formas que o sistema das formas reúne e destrói.

Agora Kublai Kan já não precisava de mandar Marco Polo em longínquas expedições: retinha-o a jogar intermináveis partidas de xadrez. O conhecimento do império estava escondido no desenho traçado pelos saltos angulosos do cavalo, pelas travessias diagonais que se abrem às incursões do bispo, pelo passo arrastado e circunspecto do rei e do humilde peão, pelas alternativas inexoráveis de cada partida.

O Grão Kan tentava concentrar-se no jogo: mas agora era o porquê do jogo que lhe escapava. O fim de todas as partidas é um perder ou ganhar: mas o quê? Qual era a verdadeira aposta? Ao xeque-mate, sob os pés do rei derrubado pela mão do vencedor, fica um quadrado preto ou branco. À força de desmaterializar as suas conquistas para as reduzir à essência, Kublai chegara à operação extrema: a conquista definitiva, de que os multiformes tesouros do império não passavam de invólucros ilusórios, reduzia-se a um pedaço de madeira aplainada: o nada ...

E para terminar, um dos textos mais curtos do livro. É necessário um génio para transformar o lugar comum “O todo é maior do que a soma das partes” nisto que se segue:

Marco Polo descreve uma ponte, pedra a pedra.

- Mas qual é a pedra que sustém a ponte? – pergunta Kublai Kan.

- A ponte não é sustida por esta ou por aquela pedra - responde Marco, - mas sim pela linha do arco que elas formam.

Kublai Kan permanece silencioso, reflectindo. Depois acrescenta: - Porque me falas das pedras? É só o arco que me importa.

Polo responde: - Sem pedras não há arco.

E pronto. Esta Fantástica Trindade produziu material suficiente para anos de exploração. Boas leituras... e misturem uns contos Zen para temperar.

Nota final: Para ler mais

Zen

http://www.101zenstories.com/

http://www.amazon.com/gp/product/1570620636/104-8852481-8623107?v=glance&n=283155

Julio Cortázar

http://www.juliocortazar.com.ar/obras.htm

La vuelta al dia en ochenta mundos (2 volumes)

Siglo XXI de España Editores, S. A.

Jorge Luis Borges

Obras Completas (4 volumes) Ed. Círculo de Leitores

Italo Calvino

As cidades invisíveis

Editorial Teorema - Colecção Estórias, nº 53


Este texto foi lido numa sessão do Fórum Fantástico, em Novembro de 2005

sábado, 2 de junho de 2007

À volta de Borges


“Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de quartos, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto.”

J.L.B.
Buenos Aires, 31 de Outubro de 1960



O autor que tenciona escrever uma comunicação sobre Borges – de ora em diante o Autor – lê um pequeno texto incluido em A Cifra de 1981, intitulado “Um sonho”:

“Num deserto lugar do Irão há uma não muito alta torre de pedra, sem portas nem janelas. No único compartimento (cujo chão é de terra e tem a forma de um círculo) há uma mesa de madeira e um banco. Nessa cela circular, um homem parecido comigo escreve em caracteres que não compreendo um longo poema sobre um homem que noutra cela circular escreve um poema sobre um homem que noutra cela circular... O processo não tem fim e ninguém poderá ler o que os prisioneiros escrevem.”

Pensa então que a sua comunicação sobre Borges poderia começar assim:
Numa cidade de um país na periferia do Império, um homem escreve uma comunicação sobre um homem que escreve uma comunicação sobre um homem (...) que escreve uma comunicação sobre Borges.
Mas ao ler pela segunda vez o texto referido de Borges, repara na última frase: “O processo não tem fim (...)”. Ora terminar a sua sequência com as palavras “escreve uma comunicação sobre Borges” vai torná-la finita. Como o carácter borgesiano da sequência é precisamente o facto de ser infinita, a intervenção do Autor seria de facto a negação de Borges. E assim, dolorosamente, o Autor abandona a ideia que ao princípio lhe parecera tão promissora.

Tenta uma segunda abordagem: começa a escrever um texto sobre Borges recheado de citações apócrifas, referências de autores inexistentes, identificação detalhada de obras nunca publicadas... Mas ao fim de meia dúzia de páginas, a releitura faz-lhe ver que nunca conseguirá provocar em nenhum leitor aquela sensação indefinível que assenta na faixa estreita entre o verdadeiro e o falso, aquilo que sentimos quando lemos algumas das histórias de Borges, o acreditar minado pela suspeita ou a incredulidade com infiltrações de “até podia ser”.
E o que escreveu acaba por ser rasgado em pequenos pedaços que atira para o cesto dos papéis.

Pega agora num texto de Borges, um pequeno conto escolhido ao acaso, e escreve-o lentamente, criando um ficheiro no computador, copiando palavra a palavra, pronunciando-as em voz alta de forma a sentir-lhes o sabor, a densidade. Começa então um exercício que consiste em substituir uma palavra por um sinónimo e tornar a gravar o ficheiro com outro nome, nova substituição e nova gravação, e ao fim de algumas horas de trabalho tem cerca de trezentos ficheiros no disco, todos eles variantes do mesmo texto base. Parando para olhar o conjunto, apercebe-se que embora a ideia original fosse atractiva, o resultado final será apenas e sempre uma caricatura pobre e portanto risível da famosa Biblioteca de Babel, onde se encontram todos os livros possíveis, “todas as possíveis combinações dos vinte e tal símbolos ortográficos (...) ou seja, tudo o que nos é dado exprimir: em todos os idiomas” (Ficções, 1944). Seria apenas a sombra da Biblioteca incidindo sobre um texto, e a simples atitude de pretender usá-la como analogia de “A Biblioteca” aparece tingida de uma arrogância que, embora não intencional, vai marcar indelevelmente o texto produzido.
E mais uma vez o autor, com alguma relutância, destroi aquilo que escreveu. Fecha a pasta onde estão todos os ficheiros, com nomes de biblio_1 a biblio_298, marca a pasta e carrega em delete.

Nova tentativa: resolve falar de um objecto cujas propriedades sejam tais que a ligação desse objecto a si próprio, Autor, surja como única, com a inevitabilidade de uma lei matemática através da qual, conhecidas as causas, resultam fatalmente as consequências (mantendo embora uma dúvida insidiosa nos interstícios das afirmações, mesmo as mais absolutas). A ideia surge-lhe a partir de “O bastão lacado”, e de “O punhal”, pequenos contos dos livros A Cifra, de 1981 e Evaristo Carriego, de 1930. Ambos falam de objectos que possuem como que uma vida própria, e que constituem, esses objectos, um fio de ligação entre a sua própria história e o seu actual possuidor.
Só um excerto de “O bastão lacado”:
(...)
“Observo-o. Sinto que é uma parte daquele império, infinito no tempo, que ergueu a sua muralha para construir um recinto mágico.
(...)
Observo-o. Penso no artesão que trabalhou o bambu e o dobrou para que a minha mão direita pudesse agarrar bem o punho.
(...)
Não nos veremos nunca.
(...)
No entanto, alguma coisa nos liga.
Não é impossível que Alguém tenha premeditado este vínculo.
Não é impossível que o universo necessite deste vínculo.”

Mas quando começa em casa à procura desse objecto único, o Autor verifica que tudo o que o rodeia é fruto da produção em massa dos últimos anos. Todos os objectos do seu quotidiano se caracterizam por serem iguais a milhões de outros, saídos das linhas de montagem das fábricas de mão de obra barata do extremo oriente. E a ligação entre o operário e o fruto do seu trabalho é totalmente diferente do vínculo estabelecido entre o artesão e o objecto que produziu ao longo de dias ou semanas de paciente esforço. A produção em massa gera objectos sem história. E portanto também aqui as intenções do Autor se revelam infrutíferas.

Pensa subitamente na História Universal da Infâmia, de 1935. Desde essa data, muitos infames, reais ou imaginários, percorreram os caminhos da humanidade. Ele, Autor, seria certamente capaz de inventar mais uns quantos. É quando alguém lhe diz que um autor galês, Rhys Hughes, publicou recentemente Uma Nova História Universal da Infâmia. Não contente com isso, pegou em O Livro de Areia publicado em 1975 – uma fonte de inspiração riquíssima – e escreveu “Em busca do Livro de Areia”!

O Autor apercebe-se que regressou à estaca zero. Todas as suas tentativas de escrever sobre Borges falharam redondamente. Sente que andou à volta de Borges numa trajectória circular, ou quando muito seguindo uma espiral que se aproxima do centro com extrema lentidão, como o movimento de uma galáxia em torno do buraco negro oculto no seu centro. Provavelmente o seu conhecimento da obra do mestre não é suficiente para produzir algo de relevante sobre a mesma.

Resolve então reler. Não da maneira semi-anárquica que tinha caracterizado o seu primeiro contacto com os escritos de Borges, mas de um modo disciplinado, seguindo um percurso rigorosamente cronológico. Começa pelas obras da juventude, a poesia de Fervor de Buenos Aires publicado em 1923, lê lentamente, mais poesia de 1925, o Caderno San Martin de 1929, Evaristo Carriego, os ensaios de 1932, lê com minúcia a História Universal da Infâmia (1935) e a História da Eternidade (1936). Ficções e Artifícios, ambos de 1944, são saboreados com prazer, bem como O Aleph de 1949. O Fazedor, de 1960, onde existe um poema dedicado aos Borges, seus antepassados portugueses, e outro a Luís de Camões. Mais poesia ao longo da década de 60. O relatório de Brodie e O Ouro dos Tigres no princípio dos anos 70.

Ao longo deste trabalho dedicado e minucioso a vista do Autor vai piorando. É já com grande dificuldade que termina O Livro de Areia de 1975. A partir daí é obrigado a recorrer aos amigos para lhe lerem em voz alta. E é já pela voz deles que visita a poesia de 1975 a 77, A Cifra de 1981, os Nove ensaios dantescos de 1982, Atlas de 1984 e Os Conjurados de 1985.
Mas de alguma forma, com a perda da vista, a compreensão dos textos aumenta, como se com o progressivo desaparecimento do sentido da visão, do apagamento das imagens, as palavras fossem ganhando mais intencionalidade e consistência. O Autor identifica-se cada vez mais com Borges, agora que, como ele, vive na escuridão, tendo como ligação privilegiada ao mundo exterior a sonoridade das palavras. E a tal ponto se torna forte esta identificação com o centro, o ponto alfa do universo borgesiano, Jorge Luís Borges himself que, repetindo o que o mestre escreveu na linha final do conto “Borges e eu”, o Autor poderá dizer:
“Não sei qual dos dois escreve esta página.”

Este texto foi lido numa sessão do Fórum Fantástico, em Novembro de 2006.