sexta-feira, 21 de setembro de 2007

O conto que se segue obteve o 3º prémio no 1º Concurso Nautilus de FC, e foi publicado no nº 72 (Junho 99) do fanzine Somnium, CLFC, SP, Brasil. Em Janeiro de 2002 apareceu no site E-nigma, editado por Jorge Candeias. Na altura em que os diversos canais apresentam as novas grelhas, achei que também devia dar a minha contribuição para a temática audio-visual.

Ascensão e Queda da Telenovela

Nota prévia: O presente trabalho foi preparado no âmbito da disciplina Television: Sociology and Technology do mestrado em Politica y Mass-Media leccionado na Universidad Camilo Torres, Florida, Confederación de Norte-América. A tradução para publicação na "Revista de Multimédia Ecran" foi feita pelo autor.


Segundo alguns autores, como Oliveira (1987), as origens da telenovela ("soap" na terminologia anglo-saxónica) devem procurar-se nos rádio-romances, muito populares na década de 50 (antes da expansão generalizada da televisão), geralmente patrocinados por marcas de detergentes, e estes por sua vez nos romances por fascículos (inícios do século XX). A este ponto de vista opõem-se fortemente Santos e Andrade (1989) que, baseando-se numa análise multidimensional da especificidade dos meios de informação utilizados, demonstram magistralmente que o sucesso da telenovela é uma função muito forte da identificação visual entre os diversos sectores socio-culturais do público tele-espectador e os personagens da novela.
A tendência para o alargamento do espaço ocupado pelas telenovelas tinha começado nos anos 70, e prolongou-se pelos 80. As sondagens mostravam que o público gostava de saber todos os pormenores, mesmo os mais irrelevantes, da vida dos actores, confundindo estes muitas vezes com os personagens que interpretavam.
Pereira (1984) mostrou que 73,9 por cento das conversas em locais de trabalho e transportes públicos tinham como tema a novela em exibição diária. Favorecida ao mesmo tempo pelo poder político, por razões que Aguiar (1988) analisa exaustivamente, eram frequentes, no fim da década de 80, novelas que se prolongavam durante anos, com três horas de exibição diárias.
No ano 2002 surgiu o conceito de "telenovela total", desenvolvido por Ayrton (2001, 2002), um MacLuhanista dissidente. Este autor opõe-se às teses que consideram como factores determinantes na evolução do género a ascensão do Brasil ao grupo dos "5 maiores" e a passagem da população hispânica nos EUA acima dos 50 por cento, propondo antes uma teoria baseada em argumentos pós-jungianos.
O número de horas foi aumentando até que, em 2006, a BBC/Globo/CBS mostrava, simultaneamente em 4 canais diferentes, 24 horas por dia, a vida dos 4 personagens principais da novela. Os satélites retransmissores tinham circuitos de atraso que sincronizavam a transmissão com a hora local dos países para onde a novela era enviada. Desta forma, os espectadores podiam acompanhar, em tempo real, a vida do seu personagem favorito. Houve alguma oposição da Sociedade Contra a Invasão da Privacidade dos Cidadãos, mas a acção que moveu contra aquela multinacional foi rejeitada pelo Tribunal de Haia.
Materializou-se assim a coincidência entre espectáculo e vida real. "Life is show and show is life" era o motto do departamento de produção de "A vida de Antonio, Brigitte, Cristina e Dave", os ABCD como eram familiarmente conhecidos por centenas de milhões de espectadores. Antonio (mexicano, hispano-índio, 32 anos) podia ser observado vinte e quatro horas por dia no Canal 17; os Canais 23 e 25 davam conta de todos os acontecimentos nas vidas de Brigitte (francesa, loira, 38 anos) e Cristina (brasileira, de ascendência japonesa, 29 anos); e o Canal 29 apresentava Dave (americano, negro, 35 anos). Algumas regiões tiveram necessidade de legislar contra a existência de televisores de pulso nos locais de trabalho.
O mercado televisivo era no entanto um mercado muito volátil. Cerca de dois anos após o início da "telenovela total", os índices de audiência começaram a dar sinais de enfraquecer. Os produtores eram naturalmente perfeitos conhecedores dos códigos do género, compilados anos antes por Baresi (2004). Assim, sabendo que o coeficiente de empatia público/personagens, verificadas certas condições, tende para um máximo quando estas são colocadas numa situação difícil, fizeram com que Brigitte sofresse um acidente doméstico de que resultaram algumas queimaduras de 3º grau, internamento numa clínica, cirurgia plástica, várias semanas de recuperação.
O índice WATCH ponderado (obtido de 6 em 6 horas com base num universo fixo, corrigido por flutuações demográficas) subiu 3 pontos, mas recomeçou a descer.
Foi necessário então provocar um acidente de automóvel no qual Dave sofreu várias fracturas expostas, com a necessidade subsequente de três intervenções cirúrgicas. Embora as sondagens spot mostrassem que as cenas hospitalares traziam um aumento de audiência pontual, o índice apenas atenuou a sua descida.
Quando foi concluído, sem sombra de dúvida, que se estava perante uma vaga de fundo, uma reunião ao mais alto nível teve lugar secretamente na BBC/Globo/CBS. Depois de uma apreciação dos índices de audiência, a decisão de terminar o programa foi unânime. Entre uma proposta de um fim gradual (fazendo desaparecer os personagens um a um, o que poderia reforçar momentaneamente a audiência em relação aos sobreviventes) e outra de um final súbito e mais dramático, foi aprovada a segunda, por 7 votos contra 2. Para concretizar o final, foi feita uma simulação da espectacularidade de um acidente aéreo e de um aquático, sendo escolhido o segundo, dado o muito maior impacto emocional dos destroços e corpos a boiar, sangue a espalhar-se na água, etc. Foi assim decidido que os quatro personagens principais iriam a bordo de um iate e que este explodiria, presumivelmente devido a um curto-circuito (Anon., 2008).
E foi o que ocorreu, 3 dias após esta reunião. A explosão do iate, mostrada em simultâneo pelos 4 canais da "telenovela total", bateu o record absoluto de audiência. A publicidade exibida atingiu preços astronómicos (Watch, 2008). À data em que escrevemos este texto, prossegue ainda a batalha jurídica entre a SPAT (Sociedade Protectora dos Artistas de Televisão) e a BBC/Globo/CBS.
Alguns autores, como Kellog (2011), consideram que os acontecimentos descritos constituem o climax do género, argumentando que o máximo de empatia implica um meio bidimensional, e que a holovisão, com a introdução da tridimensionalidade, constitui um processo de reprodução "demasiado real". Outros opinam que estes argumentos são semelhantes aos utilizados várias décadas atrás quando da introdução da cor no cinema. Prosseguem entretanto as investigações (muito activas, segundo consta, na Confederação do Pacífico Ocidental) sobre a introdução do cheiro em produções holovisivas, com a intenção de, a médio prazo, se chegar ao espectáculo totalmente sensorial. Estes desenvolvimentos demasiado recentes estão todavia fora do âmbito do presente trabalho.


REFERÊNCIAS

Aguiar, V. (1988), "O poder e a comunicação social - simbiose ou parasitismo?", Editora Problemas e Soluções, Lisboa, Portugal.
Anon. (2008), Actas do julgamento SPAT vs BBC/Globo/CBS, p. 3125-3157, Tribunal Internacional de Haia, Holanda.
Ayrton, F. A. (2001), "The total soap opera concept", International Journal of Mass-Media Studies, 27, p. 361-384.
Ayrton, F. A. (2002), "Total Soap Opera - The Life Show", Art & Science Press, S. Francisco, U.S.A.
Baresi, D. (2004), "Television - Syntax, Semantics, Semiotics", World University Press, Amsterdam, Nederlands.
Kellog, W. (2011), "SPAT vs BBC/Globo/CBS - incident or end of an era?", Sociometrics and Mediatics Journal, 32, p. 315-332.
Oliveira, P. A. (1987), "As origens da telenovela", tese de doutoramento, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade de Lisboa-Sintra, Portugal.
Pereira, J. P. (1984), "Análise estatística do público da telenovela", 2º Congreso Latino-Americano de Comunicacion y Publicidad, Buenos Aires, Argentina.
Santos A. e L. Andrade (1989), "Telenovela - relação biunívoca entre argumento e público", Relatório de progresso do Projecto Integrado sobre Atividade Mediática, Escola de Engenharia Social, Universidade de São Paulo, Brasil.
Watch (2008), Worldvision Yearbook.

2 comentários:

Miguel Garcia disse...

Boa noite, em primeiro lugar Parabens pelo prémio!

Este conto é um texto de ficção, mas será assim tão ficcional?
Agora estamos a entrar na era dos actores de uso rápido, fazem a novela um ano, entretanto perderam um ou mais anos da escola, são normalmente poucos os que são aproveitados.
Existe o Casting inicial para a novela, mas depois a própria novela é um casting, só ficam "os melhores" (...dos piores)... fugi um bocado ao tema...
Gostei bastante do texto!
Cumprimentos
Miguel Garcia

João Ventura disse...

Olá Miguel
Quando isto foi escrito, ainda o "Big Brother" não tinha chegado a Portugal... o tempo passa!
Obrigado pela visita.