sábado, 15 de dezembro de 2007

Praxe

Uma notícia recente informa-nos que um estudante de um estabelecimento de ensino superior de Coimbra ficou paraplégico na sequência de uma "brincadeira" incluida na praxe académica a que estava a ser submetido.
Tenho exprimido frequentemente no meu local de trabalho, perante colegas e estudantes, a minha posição sobre a praxe. Sendo este um blogue de ficções, dedico o seguinte conto aos estudantes praxistas, cujo sadismo ou simples alarvidade os torna responsáveis por situações deste tipo, e às autoridades académicas, que assobiando para o lado perante acontecimentos desta índole, se demitem do papel disciplinar que deviam assumir: uns e outras não deviam fazer parte de uma comunidade académica digna desse nome.

Recepção aos caloiros

Jacinto Ataíde, Dux Veteranorum e Presidente por inerência da Comissão de Praxe, regressa a casa já a noite vai alta. O passo é um pouco incerto, porque acaba de passar umas horas com os outros praxistas, à volta de umas bejecas e outras coisas mais fortes e a relembrar entre gargalhadas os acontecimentos do dia.
A chegada dos caloiros é sempre uma festa! O que é preciso é que a malta se divirta à custa dos putos. E no ano que vem estes vão ser os mais entusiastas a praxar.
Bem podem os gajos do MAPA colar posters, que não têm sorte nenhuma. Movimento Anti Praxe Académica... Uma bosta! Devem ser dois ou três caramelos que imprimem os cartazes e andam depois a colá-los de noite, às escondidas...
Jacinto sente a necessidade de aliviar a bexiga. Lembra-se daquele brasileiro que uma vez lhe disse “Cara, cerveja você não compra, você aluga!”, e ri-se com vontade, enquanto se aproxima da porta de um prédio e urina contra a ombreira.
Quando fecha a braguilha parece-lhe ouvir passos. A rua é escura, caiu entretanto uma neblina através da qual a luz dos candeeiros se escoa com dificuldade. Jacinto sente um arrepio e traça a capa, tentando barrar a humidade que ensopa o ar nocturno.
Os passos ouvem-se agora com mais nitidez. Jacinto apressa-se ao longo da rua. Mais uns duzentos metros e chegará à segurança relativa da praça, bem iluminada por candeeiros de halogéneo. Contorna o tapume de um prédio em obras e subitamente do meio da neblina materializam-se três vultos a fechar-lhe a passagem.
Esboça um gesto de recuo mas os passos de há pouco chegaram agora junto de si. Está cercado.
Os vultos aproximam-se e Jacinto Ataíde verifica que estão mascarados, cada um com um passa-montanha que apenas lhe deixa ver os olhos. Encosta-se ao tapume e os outros fazem agora um semi-círculo à sua volta.
“Olha quem aqui temos, o Dux Veteranorum em pessoa! Então hoje já acabámos de praxar caloiros? Deves estar cansado...”
“Estivemos aqui a pensar que serias um praxista muito mais eficiente se experimentasses algumas das praxes na tua própria pessoa. Portanto vais dar uma voltinha connosco.”
Jacinto tenta mostrar uma coragem que não possui.
“E se eu não quiser?”
“Acontece-te isto”, responde o mascarado, e a mão avança com um objecto que toca no braço de Jacinto. Uma potente descarga eléctrica deixa-lhe o braço adormecido e tem que morder os lábios para não gritar. “O cabrão atacou-me com um taser”, pensa Jacinto, enquanto a dor se espalha por todo o braço, como se o tivesse mergulhado em água a ferver.
“Se não te portas bem levas outra... E agora toca a marchar no meio de nós, e juizinho!”
Dois dos mascarados dão o braço a Jacinto e com mais dois à frente e dois atrás, o grupo vai avançando ao longo da rua. Desembocam na praça, que contornam pelo lado dos bares, alguns dos acompanhantes de Jacinto exibem agora garrafas de cerveja das quais vão bebendo (ou fingindo que bebem?). Uma ou outra pessoa que com eles se cruza encara o grupo como mais um conjunto de foliões noctívagos.
Entram agora na zona residencial. O grupo faz parar Jacinto, um tira-lhe a capa que ainda trazia aos ombros, outro põe-lhe uma coleira ao pescoço, com uma trela, colocam-lhe uma venda preta nos olhos, dão-lhe um empurrão que o desequilibra, fica com as mãos e joelhos no chão, e qualquer tentativa para se levantar é rapidamente neutralizada com um forte puxão na trela.
“Então agora não achas graça, Bobby? Mas hoje de manhã rias como um alarve quando fazias isto aos caloiros”.
“Esta rua por onde vamos é onde os habitantes aqui do bairro costumam passear os cãezinhos. Vê onde pões as mãos...”
O aviso faz disparar um coro de gargalhadas no grupo.
Começam a andar. Segundos depois, a mão direita de Jacinto assenta em algo pastoso; o reflexo de retirar a mão quase o faz desequilibrar e ir com a cara ao chão. O que segura a trela dá-lhe um puxão e o passeio continua, com Jacinto de vez em quando a pisar excrementos com as mãos e os joelhos. Mesmo atrás da venda grossa que lhe colocaram Jacinto apercebe-se de alguns clarões súbitos, intercalados com risos abafados dos seus captores.
O grupo pára. O som do rodar de uma chave, mais o som metálico de um portão que se abre, depois o portão a fechar-se, e Jacinto sente que estão agora dentro de um compartimento (garagem? Armazém?).
“Acabou o passeio, Bobby. Mas o Bobby tem as patas todas suuujas! Temos que as lavar... Estende as patas, Bobby!”
Jacinto estende os braços, ouve água a correr e a seguir sente nas mãos um forte jacto de água, quem está a segurar na mangueira não a mantém fixa, os braços também já estão molhados, ao fim de algum tempo tem a roupa completamente encharcada.
“Agora que o Bobby já tomou banho, vai-se descalçar para brincar um bocadinho.”
O tom de ameaça na voz que falou não lhe deixa alternativa. Ainda vendado, Jacinto desfaz os nós dos atacadores, tira os sapatos, descalça as meias. Empurrado, cambaleia para a frente e recupera o equilíbrio a custo, o chão está escorregadio devido à utilização da mangueira, e os outros estão à volta dele, e empurram-no de uns para os outros, de vez em quando escorrega, várias vezes vai com as mãos e os joelhos ao chão, aí alguém lhe dá um pontapé no traseiro para o obrigar a levantar e tudo recomeça, nova série de empurrões, até que Jacinto atinge o limite, cai de joelhos, e chorando baba e ranho, implora aos seus agressores que parem.
No silêncio que se segue ouve-se a voz de um deles: “Fim da fase 2. Início da fase 3.”
Tiram-lhe a venda. Quando os seus olhos se habituam à luz, Jacinto observa o local onde se encontra. É um espaço amplo (uma garagem?), com chão de cimento, não tem janelas, numa das paredes uma torneira com uma mangueira ligada e enrolada no chão. Uma lâmpada suspensa do tecto espalha uma luz amarelada. Os seus captores mascarados estão vestidos de preto.
Um deles pega na capa de Jacinto e estende-a sobre o chão enlameado. “O Bobby está cansado e pode deitar-se um bocadinho no cobertor... deita, Bobby!” E acompanha as palavras de um gesto ameaçador com o taser.
Jacinto não tem alternativa que não seja obedecer.
“Agora o Bobby zanga-se e vai começar a rosnar e a rasgar o tapete com os dentes e as unhas...”
E a aproximação do taser faz com que Jacinto obedeça. Finca os dentes no tecido grosso da capa e rasga, e puxa, e outra vez, e outra, quando começa a rasgar com as mãos há alguém do grupo que o ameaça: “Com os dentes, com os dentes”, e lá volta a morder a capa, fincar os dentes e puxar com a cabeça até rasgar mais um bocado. E enquanto dura a operação, um deles dispara de vez em quando uma máquina fotográfica.
“Já chega”, diz o que parece se o líder do grupo. “Levanta-te!”.
Há um que traz uma cadeira e obrigam Jacinto a sentar-se. Colocam-lhe de novo uma venda, um deles segura-lha na cabeça com firmeza, ouve um zumbido que ainda está a tentar identificar quando sente a máquina a começar a cortar-lhe o cabelo. Mas o corte não é regular, e continuam a tirar fotografias.
Ao fim de alguns minutos, ouve comentários jocosos: “Oh, pá, mas tu és um artista! Tens que abrir um salão de cabeleireiro de homens!”. Segue-se um coro de risadas.
Tiram-lhe a venda. Um deles coloca a máquina num tripé frente à cadeira, o grupo posiciona-se à volta de Jacinto, obrigam-no a inclinar a cabeça e o que está junto da máquina carrega no temporizador e corre para se juntar ao grupo antes que o flash dispare.
Ordenam a Jacinto que se calce, dão-lhe a capa e um deles diz-lhe: “Agora pira-te! E é melhor tirares umas férias, que vais precisar”. E um coro de gargalhadas acompanha a saída apressada de Jacinto, que uma vez na rua anda um pouco ao acaso até se orientar e depois corre rapidamente na direcção da sua casa.
Entra no pequeno apartamento e no espelho do hall de entrada verifica o estado miserável em que o puseram. As calças esburacadas nos joelhos, a capa rasgada, a roupa completamente encharcada, e quando inclina a cabeça vê o que os sacanas fizeram: o cabelo que lhe cortaram desenha no topo da cabeça as letras M – A – P – A. Filhos da puta!
Pega numa tesoura e com lágrimas de raiva e humilhação a escorrer pelas faces, corta o cabelo o mais rente que pode. As letras continuam a ver-se. Põe creme no pincel da barba, espalha a espuma na cabeça e com a gilette acaba com os últimos vestígios de cabelo.

-------------- X --------------

No dia seguinte, quase 10 da manhã, os membros da comissão de praxe dão sinais de impaciência com o atraso do dux veteranorum. Os caloiros já foram agrupados no átrio da faculdade (“os curros”), está tudo pronto para começar o “tourear do caloiro”, e Jacinto Ataíde não há meio de aparecer. Não responde ao telemóvel nem ao telefone do apartamento onde mora.
“Ontem à noite ele não bebeu assim tanto para ficar de ressaca”, comenta um dos membros da comissão. Um outro mais impetuoso exclama: “Eu vou ver se ele está em casa”, e sai do edifício, mete-se no carro e arranca.
A comissão vai junto dos caloiros, e um deles com um megafone anuncia: “Caloiros, tenham calma, que daqui a pouco começa a festa...”
“Brava”, completa outro, e toda a comissão se ri, mas os risos soam um pouco a falso.
Quinze minutos depois (o apartamento de Jacinto não é longe) chega o colega que foi à sua procura. “Falei com a porteira do prédio: às 8 e meia da manhã ela estava a lavar o átrio da entrada, e viu o Jacinto sair do prédio e apanhar um táxi. Levava uma mala e um gorro de lã enterrado até às orelhas”.
“Num dia como hoje, com o Sol que está? Parece-me uma cena estranha...”
É nessa altura que, dentro do enorme grupo de caloiros, começam a soar gargalhadas. É uma situação tão insólita que deixa a comissão de praxe espantada: os caloiros costumam é estar com aquela atitude entre envergonhada e receosa, sem saber o que lhes vai acontecer a seguir. Os praxistas dirigem-se para a origem das gargalhadas, e empurrando sem cerimónia os caloiros que riem chegam à parede onde um placard exibe um conjunto de fotografias, que mostram o dux veteranorum de coleira e trela a ser conduzido como um cachorro, e outras onde se vê ele no chão a rasgar a capa com os dentes e outra ainda onde, sentado e rodeado por um grupo mascarado, inclina a cabeça para a frente, permitindo que se veja que o cabelo foi cortado de modo a formar a palavra MAPA.
A agitação cresce na multidão dos caloiros, que quase se atropelam para ver as fotos. E riem à gargalhada observando aquele que no dia anterior os praxava forçado a comportar-se daquela forma. A comissão de praxe sente que está a perder o controlo da situação, mas nenhum deles sabe o que fazer, e é aí que o sistema de difusão sonora do edifício começa a transmitir.
Sendo um acontecimento inesperado, toda a gente se cala. E sobre o silêncio agora existente jorra uma voz que implora clemência:
“... não, parem, por favor, chega, não aguento mais isto, não, não, por favor... não... não...”
E a litania transforma-se lentamente num choro convulsivo, que se prolonga durante cerca de um minuto, até parar bruscamente. E surge uma voz calma que anuncia:
“Caros caloiros, como certamente reconheceram, acabam de ouvir o praxista-mor, o auto-intitulado dux veteranorum, o próprio Jacinto Ataíde, na banda sonora correspondente às fotos que já tiveram ocasião de apreciar”.
Risos da parte de muitos caloiros. E a voz continua:
“E agora, caros caloiros, de que é que estão à espera para fazer o mesmo a essa cambada de palhaços de capa e batina, a essa auto-nomeada comissão de praxe? Mostrem-lhes que a humilhação acabou, CORRAM COM ELES!”
Os membros da comissão de praxe entreolham-se, sentindo alguma insegurança, começam lentamente a mover-se em direcção à saída, mas têm que passar através daquela multidão, e são só alguns instantes até o primeiro ser empurrado, puxarem a capa a outro, um terceiro levar uma palmada na nuca, outro um pontapé, e aquela massa de caloiros é como um animal selvagem que estivesse a acordar, há uma batina que se rasga quando o dono é agarrado e tenta desesperadamente libertar-se, há outro que é rasteirado e cai, leva dois pontapés e levanta-se a correr, e há agora uma multidão enfurecida que corre atrás dos membros da comissão de praxe que de roupa rasgada e alguns hematomas fogem desesperadamente em direcção ao portão de saída da faculdade.

-------------- X --------------

A essa hora Jacinto Ataíde segue de comboio para a Beira, o gorro de lã na cabeça. Olhando sem ver as árvores que deslizam velozmente do outro lado da janela, vai ruminando ainda a humilhação de que foi vítima na noite anterior. “Filhos da puta do MAPA”, é tudo o que as lembranças dolorosas o deixam verbalizar, enquanto a distância entre ele e Lisboa vai aumentando...

3 comentários:

Anónimo disse...

é MATA "Movimento Anti Tradição Académica"...

Anónimo disse...

pode apagar o meu comentário anterior, e aproveite para corrigir essa lacuna no seu texto, para assim fazer mais sentido...

de nada!

pode apagar este comentário também

João Ventura disse...

Caro anónimo:
Na realidade "real" existe, como dizes, o MATA "Movimento Anti Tradição Académica". Na realidade deste conto existe o MAPA "Movimento Anti Praxe Académica".

Qualquer coincidência entre as duas realidades é pura semelhança...

:-)

Obrigado pela visita.