A Lei da Cópia Privada e Chico Liberdade
A discussão da Lei da Cópia Privada arrastava-se na Assembleia da República. Intervenções a favor dos partidos da maioria, intervenções críticas ou muito críticas dos partidos da oposição. Nas galerias, representantes das organizações que iriam ter ganhos chorudos com a aprovação da lei sorriam uns para os outros.
Chegou a vez de o Jotinha falar. Aclarou a voz, ajeitou o microfone e começou:
“Senhora Presidente, senhor Secretário de Estado da Cultura, senhoras e senhores deputados. É minha convicção que as leis aprovadas por esta casa devem reflectir os últimos avanços da Ciência e da Técnica, pois isso só contribuirá para o prestígio deste Parlamento.”
Vozes de “Muito bem!” da bancada da maioria.
“Chegou ao meu conhecimento um artigo recentemente publicado na reputada revista científica
Science – e aí a mão direita do deputado agitou no ar umas folhas de papel – onde é demonstrado que os instrumentos musicais, sejam de cordas, de percussão ou de sopro, madeiras ou metais, conservam na sua estrutura a memória das melodias que alguma vez tocaram.”
“Intitula-se o artigo” – e o deputado leu com sotaque algo aportuguesado – “
Are materials able to store sounds? Detection through laser interferometry and atomic force microscopy of acoustic wave imprint patterns in different materials. Embora me considere um leigo em acústica, inter-fe-ro-me-tria laser e outras matérias mencionadas neste artigo, a sua conclusão parece-me definitiva: os instrumentos musicais memorizam sons, logo têm a possibilidade de armazenar o trabalho dos artistas, logo, por extensão, também estes instrumentos deverão estar sujeitos a uma taxa no âmbito da lei ora em discussão.”
A intervenção foi saudada com alguns acenos de cabeça aprovadores por deputados da maioria, com alguns risos por parte da oposição, mas o líder parlamentar do maior partido de apoio ao governo não quis deixar passar a oportunidade e pedindo a palavra, disse:
“Muito obrigado, senhor deputado, pela sua tão pertinente achega à matéria em discussão. Penso que a sua sugestão poderá ser acolhida em sede de discussão na especialidade, e dessa forma contribuir para a melhoria do diploma em discussão.”
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A sessão já tinha terminado e um grupo de deputados dirigia-se ao Café de São Bento para almoçar. Nesse grupo, o Jotinha gozava dos seus cinco minutos de fama, rindo e aceitando os cumprimentos dos seus colegas de bancada.
Pelo mesmo passeio, em sentido oposto, caminhava Chico Liberdade, baladeiro e cantor de rua. Tinha estado a ver o canal Parlamento, porque as questões relacionadas com a Lei da Cópia Privada lhe interessavam por razões tanto profissionais quanto de cidadania.
Os seus ténis, que já viram melhores dias, levam-no numa trajectória de intersecção com os sapatos pretos bem engraxados do deputado.
Chico Liberdade levanta os olhos e vê a cara de auto-satisfação do Jotinha. Sente
uma raiva a crescer-lhe nos dentes como na canção do Zé Mário Branco que canta com frequência. Sem mais, pega na viola pelo braço, dá-lhe balanço, a viola descreve um arco e vai embater com força na cabeça do deputado, que afunda lentamente, aturdido, e fica sentado no chão. O som da pancada foi estranho, mistura da percussão seca da caixa com uma espécie de acorde causado pela vibração simultânea das seis cordas. Enquanto os colegas socorrem o Jotinha, Chico Liberdade ainda lhe diz:
“Se te lembrares desta pancada é sinal que tens memória, e também vais ter que pagar taxa. Mas como só tens dois neurónios e meio, estás no primeiro escalão da capacidade de armazenagem e pagas pouco.”
E vai-se embora sem olhar para trás. Quando um dos colegas do Jotinha se lembra de chamar a polícia já Chico Liberdade desapareceu, dobrando a esquina e seguindo pela travessa mais próxima.