O deus das palavras
O deus das palavras focou a sua atenção no monitor sobre o qual piscava uma luz vermelha. Sabia o que isso significava: havia alterações substanciais na frequência de uso de uma ou mais palavras.A sua função era precisamente verificar que as palavras de uma dada língua eram utilizadas apropriadamente. Pela lei dos grandes números isto levava a que as palavras utilizadas seguissem uma determinada distribuição estatística.
O deus das palavras ainda se lembrava de quando este processo de monitorização era feito por um batalhão de sub-deuses, tomando nota manualmente de todas as palavras utilizadas e calculando penosamente as estatísticas usando ábacos. Agora, depois de implementada a informatização dos serviços, o trabalho é muito mais fácil. O deus das palavras e dois sub-deuses adjuntos conseguem dar conta do recado.
O deus das palavras dirige-se ao monitor que accionou o alarme e observa com atenção. Verifica as palavras que estão a ser utilizadas com uma frequência acima do seu valor normal: “empreender” e seus derivados (“empreendedor”, “empreendedorismo”, etc.), “competitividade”, “produtividade”, “ajustamento”. Reconhece que são palavras pertencentes ao dialecto economês. Chama um dos adjuntos e diz-lhe para manter aquele monitor sob vigilância.
No dia seguinte, o sub-deus informa-o que a utilização das palavras referidas subiu duas ordens de grandeza. O deus das palavras irrita-se e a cólera dos deuses pode ser terrível. Senta-se ao terminal, acede à base de dados que contém todas as palavras, e apaga as palavras violadoras da distribuição estatística. Com um sorriso raivoso, comenta para o seu adjunto: “Já está!”
As consequências no país em causa foram tremendas. Os discursos políticos ficaram com o aspecto de uma manta esburacada. Quando anteriormente um político dizia: “É necessário o empreendedorismo para aumentar a competitividade e a produtividade do país”, agora saía-lhe da boca para fora: “É necessário o [ ] para aumentar a [ ] e a [ ] do país”.
O deus das palavras apenas levou dois dias pensando que tinha reposto a regularidade estatística. Essa sua satisfação terminou com um novo alarme a soar no mesmo monitor. As palavras cujas frequências de utilização tinham agora disparado eram “Palhaço!” e “Rua!”
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