quinta-feira, 19 de junho de 2014

O deus das palavras

O deus das palavras focou a sua atenção no monitor sobre o qual piscava uma luz vermelha. Sabia o que isso significava: havia alterações substanciais na frequência de uso de uma ou mais palavras.
A sua função era precisamente verificar que as palavras de uma dada língua eram utilizadas apropriadamente. Pela lei dos grandes números isto levava a que as palavras utilizadas seguissem uma determinada distribuição estatística.
O deus das palavras ainda se lembrava de quando este processo de monitorização era feito por um batalhão de sub-deuses, tomando nota manualmente de todas as palavras utilizadas e calculando penosamente as estatísticas usando ábacos. Agora, depois de implementada a informatização dos serviços, o trabalho é muito mais fácil. O deus das palavras e dois sub-deuses adjuntos conseguem dar conta do recado.
O deus das palavras dirige-se ao monitor que accionou o alarme e observa com atenção. Verifica as palavras que estão a ser utilizadas com uma frequência acima do seu valor normal: “empreender” e seus derivados (“empreendedor”, “empreendedorismo”, etc.), “competitividade”, “produtividade”, “ajustamento”. Reconhece que são palavras pertencentes ao dialecto economês. Chama um dos adjuntos e diz-lhe para manter aquele monitor sob vigilância.
No dia seguinte, o sub-deus informa-o que a utilização das palavras referidas subiu duas ordens de grandeza. O deus das palavras irrita-se e a cólera dos deuses pode ser terrível. Senta-se ao terminal, acede à base de dados que contém todas as palavras, e apaga as palavras violadoras da distribuição estatística. Com um sorriso raivoso, comenta para o seu adjunto: “Já está!”
As consequências no país em causa foram tremendas. Os discursos políticos ficaram com o aspecto de uma manta esburacada. Quando anteriormente um político dizia: “É necessário o empreendedorismo para aumentar a competitividade e a produtividade do país”, agora saía-lhe da boca para fora: “É necessário o [          ] para aumentar a [         ] e a [          ] do país”.
O deus das palavras apenas levou dois dias pensando que tinha reposto a regularidade estatística. Essa sua satisfação terminou com um novo alarme a soar no mesmo monitor. As palavras cujas frequências de utilização tinham agora disparado eram “Palhaço!” e “Rua!”

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