sábado, 7 de setembro de 2013

DO TEMPO FRAGMENTADO

Relatório de diagnóstico sobre a grave disfunção temporal detectada na periferia da galáxia, enviado ao Contemplador dos Fluxos Galácticos pelo afinador temporal destacado para o planeta Terra.



Sereno Contemplador


Desejo a Vossa permanência por muitas rotações galácticas.

Como sabeis, fui enviado a este sistema em virtude de graves distorções no continuum temporal detectado na sua vizinhança. A perturbação era originada no 3º planeta, o único habitado; seguindo a aproximação padrão, colocámo-nos em órbita e escolhemos para inspecção directa dois locais com valores limites da densidade populacional: o que na terminologia local é designado como uma pequena aldeia e uma grande cidade.

A observação directa teve lugar, como habitualmente, através da entrada num elemento da população, seleccionado aleatoriamente pela nave de acordo com critérios pré-estabelecidos, avaliando o seu comportamento racional e emocional. Esta monitorização não é detectável pelo hospedeiro e deve ter lugar, sempre que possível, de forma não interferente. Em caso de necessidade, o observador pode controlar totalmente as acções do hospedeiro, fazendo um by-pass à camada superior do sistema nervoso. O hospedeiro apenas fica com uma amnésia localizada, respeitante ao período em que foi controlado. Este procedimento não se revelou necessário na operação aqui relatada.

Serão em seguida descritas as duas experiências a que procedemos, com os comentários destinados à avaliação sumária da situação.

Na primeira experiência, o hospedeiro seleccionado foi um agricultor: Esta constitui uma ocupação muito frequente nas zonas menos povoadas e consiste em fazer crescer biomassa vegetal, utilizando o solo como substrato.
No momento do contacto, o hospedeiro conduzia um veículo, um tractor, com o qual lavrava um campo próximo da aldeia. Embora o dispositivo de accionamento fosse descontínuo, isso não afectava o hospedeiro de forma detectável.
A certa altura, avaliou a altura do Sol acima da linha do horizonte, encostou o tractor e desligou o motor. Apeou-se e começou a andar em direcção à aldeia. Da direcção desta veio uma sequência de sons metálicos, que despertaram no hospedeiro um sentimento de satisfação com vários cambiantes, difíceis de destrinçar para um contacto ainda na fase inicial.
Chegou a casa próximo da hora da alimentação. Esta é uma ocasião caracterizada por um certo ritual. Alimentos de diversos tipos são colocados sobre uma mesa para serem ingeridos pela família sentada à volta.

Finda a refeição, o hospedeiro foi sentar-se no alpendre, tirou do bolso um objecto constituído por um tubo fino ligado a um pequeno vaso, onde colocou umas ervas secas a que deitou fogo. Pelo tubo fino aspirava o fumo que depois libertava para o ar, e com um prazer sereno ali ficou a fumar, observando o pôr-do-sol. Os seus pensamentos deslizavam, suaves, com um fluir ditado por ritmos naturais: pintar a casa no próximo Verão, trocar o velho tractor depois da colheita. O seu tempo era um tempo primevo, calmo, sem tensões; mesmo o relógio que a certa altura foi buscar ao prego onde estava pendurado pela corrente e que depois acertou cuidadosamente pelas badaladas da torre da igreja, embora sendo uma máquina destinada a cortar o tempo, não era sentida como tal, mas sim como um objecto de adorno, cuja visão invocava a festa do dia seguinte, onde o levaria no bolso do colete preto, e o seu pai, já desaparecido, a quem pertencera.

Após este breve levantamento, foi decidido passar à segunda experiência: e embora já estivesse à espera de situações aberrantes, em função do que os nossos sensores temporais haviam assinalado, devo dizer que só o treino intensivo a que nós, afinadores temporais, somos submetidos, fez com que conseguisse suportar a experiência.

O meu hospedeiro era desta vez um gestor, isto é, um indivíduo responsável por um grupo de empresas, entidades funcionais do sistema económico, envolvendo pessoas e equipamentos.

O tempo era, para este homem - e verifiquei depois para a generalidade dos habitantes da grande cidade - dividido em pedaços, por sua vez subdivididos, por vezes ainda subdivididos, e todas as actividades, do despertar ao adormecer, eram controladas por essas divisões. Oficialmente, o tempo de uma volta completa do planeta em torno de si próprio é dividido em 24 partes (horas), divididas por sua vez em 60 partes (minutos), por sua vez divididos em 60 segundos. Existe uma obsessão em que qualquer actividade seja executada no tempo mais curto possível.

O dia de trabalho do meu hospedeiro era dividido em pequenas fatias, onde eram arrumadas as reuniões que tinha, os telefonemas que tinha que fazer, as cartas a ditar; na parede, vários relógios indicavam a hora local em diversas outras cidades do planeta, donde vinham e para onde eram enviadas mensagens. Diversos telefones tocavam, pessoas atendiam, respondiam ou passavam a informação ao meu hospedeiro, que tomava uma decisão a esse respeito.

No meio desta loucura de múltiplas descontinuidades, senti que havia uma preocupação no espírito do meu hospedeiro: precisava de comprar um presente de aniversário para a mulher. Consultou a agenda na sua mesa de trabalho e verificou que tinha um período de meia-hora sem nenhuma marcação. Chamou um dos colaboradores e disse-lhe: "Vou sair durante meia hora; se houver alguma coisa realmente importante, liguem para o telemóvel."

Tomou o elevador e saímos ao nível da rua. Milhares de pessoas caminhavam em todas as direcções, olhando com frequência os relógios que traziam ao pulso, conduzindo automóveis, entrando em autocarros, precipitando-se para as entradas do comboio subterrâneo.

O meu hospedeiro seguiu ao longo do passeio, e entrou subitamente num local que foi para mim um súbito choque: à nossa volta, centenas, milhares de máquinas pequenas, grandes, de todos os tamanhos, fragmentavam o tempo, ora ponteiros que ao percorrer mostradores cortavam pequenas fatias, ora visores luminosos onde os números se sucediam, indicando os segundos, décimos, centésimos...

Verifiquei então que se tratava de um local onde se podiam comprar relógios e o meu hospedeiro havia entrado lá porque pretendia oferecer um desses objectos à mulher... Foi de facto um suplício ter que estar ali, assistindo ao múltiplo retalhar do continuum temporal, enquanto ele escolhia. Terminada a transacção, saímos finalmente para a rua onde, embora o ambiente de loucura fosse evidente, não o era de forma tão concentrada como dentro da relojoaria.

Após esta breve descrição dos dois contactos havidos e em consequência do estudo multivariado realizado posteriormente, submeto a Vossa Serenidade a seguinte linha de actuação:


1. Repartição da população do planeta em aglomerados populacionais com o máximo de mil unidades cada, com tratamento subliminal por forma a assegurar que este limite não será ultrapassado. Só desta forma será possível manter a epidemia de agressão temporal sob controlo permanente.

2. Quanto aos aglomerados actualmente acima deste limite, existem 2 alternativas: ou a sua eliminação pura e simples, ou a dispersão dessa população pelas zonas rurais por forma a atingir o objectivo do parágrafo anterior.


Vossa Serenidade certamente deslizará para uma decisão sintonizada com os padrões galácticos.



Ass: O afinador temporal enviado ao planeta Terra

1 comentário:

André Nóbrega disse...

Engraçada a abordagem da nossa relação com o tempo tentando observá-la de um ponto de vista externo, no entanto com um observador que, quanto ao tempo, também não é de todo objectivo e tem as suas próprias ideias quanto ao que deve ou não deve ser feito com ele.