sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Natal em Little Town

O tenente Patrick O’Neill conhecia a cidade como poucos, e muito particularmente a zona conhecida como Little Town, onde fora nascido e criado. Tirando o período em que frequentara a Academia da Polícia, sempre ali vivera.
Conhecia não só a superfície, que os cidadãos bem comportados conhecem, mas também muito do que ocorria nos becos escuros, nas salas das traseiras de bares e locais semelhantes ou em certos salões geralmente considerados acima de toda a suspeita. Durante os séculos dezanove e vinte, Little Town tinha-se expandido quase como um patchwork, um crescimento entre orgânico e anárquico, à medida que vagas sucessivas de imigrantes iam chegando, fugindo da fome ou das perseguições políticas ou religiosas.
Mas O’Neill gostava dos velhos edifícios, conhecia os donos das pequenas lojas, tinha amigos em todas as comunidades que faziam de Little Town aquilo que ela tinha de único.

Um problema com alguma importância eram os gangs de adolescentes, mas a situação estava relativamente controlada, devido em parte à política de admissões na Polícia de membros das diversas etnias.“Los Ches”, de ascendência cubana, as tee-shirts negras com a mítica foto de Che Guevara impressa a vermelho, cuja principal fonte de receita era o contrabando de charutos feitos na ilha, para os quais continuava a existir um mercado fiel e bem pagante.
“Itália forte”, que funcionava como uma pequena filial da Cosa Nostra, protecção, extorsão, roubo, mas sempre em pequena escala.
“The Irish fighters”, essencialmente uma central distribuidora de drogas – legais, semi-legais e ilegais – produzidas na florescente indústria farmacêutica da ilha onde tinham nascido os seus avós.
Os gregos e turcos estavam no negócio dos opiáceos produzidos no Afeganistão, e que por vários caminhos, atravessando o Irão e Iraque, chegavam à Turquia. Estes dois grupos, que pareciam ter esquecido a história das últimas décadas, trabalhavam em conjunto – o gang chamava-se “Mar Egeu” – e falavam entre si um dialecto que era uma mistura de grego e turco salpicada de inglês.
Mas tudo muda, e a Little Town que o Tenente O’Neill sempre conheceu também está a mudar. Antigos quarteirões totalmente demolidos para dar lugar a modernos condomínios, instalação de grandes centros comerciais causando o fecho de dezenas de pequenos comércios... E como se não bastasse, há rumores sobre o aparecimento de um novo gang. Parece que se intitulam “El Niño”, mas as fontes habituais de informação do tenente são desta vez extremamente vagas. Não há descrições nítidas de indivíduos, tudo o que existe é escasso e nebuloso, por vezes contraditório. E não parecem estar ligados a uma etnia em particular. É o único gang onde não conseguiu ainda infiltrar ninguém, e sente-se desconfortável por isso.

O tenente O’Neill pensa em tudo isto enquanto conduz em direcção ao local do crime. Não fica longe da esquadra pelo que quando lá chega ainda não há jornalistas, e o pessoal dos Homicídios tira fotografias e marca no solo o contorno do corpo, para memória futura.

É o terceiro caso em duas semanas. E parece uma cópia dos outros dois: à porta de um supermercado, um Pai Natal abatido com um tiro na cabeça. O tenente observa o cadáver. “É o que se chama um tiro limpo”, pensa. A Polícia tinha bloqueado as ruas na vizinhança mais para cumprir as regras do que outra coisa. O’Neill espera junto ao corpo que chegue o médico legista, quando vê aproximar-se o sargento Eduardo Diaz. Traz pelo braço alguém mais pequeno e na outra mão uma TRG-22 com mira telescópica, segura pela extremidade do cano. Quando chegam ao pé do tenente, este verifica tratar-se de um miúdo que aparenta ter entre12 e 14 anos, calça sandálias e veste uma espécie de túnica de mangas largas.
“Tenente, apanhei este. No último andar daquele prédio.” E aponta para um edifício com ar degradado. “A arma ainda cheira a pólvora...”
Havia qualquer coisa de familiar na figura do rapaz, o seu comportamento nas presentes circunstâncias não se ajustava ao que se esperaria de um delinquente; estava calmo, olhou para o corpo no chão como se fosse para ter a certeza de um trabalho bem feito e olhou em seguida para o tenente.
“Sabes alguma coisa sobre isto?”
“Sei, fui eu.”
“E tu és...?”
“Jesus”, disse ele com simplicidade.
“Devia ter calculado”, pensou O’Neill.
O tenente olha para o jovem e recita-lhe: “Tudo o que disseres poderá ser utilizado contra ti”.
E para o sargento: “Leve-o para a esquadra, eu já lá vou ter. É preciso interrogá-lo”.
O jovem olha em volta, um olhar lento, longe, diz em voz pausada “Tudo bem, tenente, onde está um de nós estão os outros todos” e deixa-se conduzir pelo sargento em direcção à viatura policial.
O tenente olha também em volta e parece-lhe ver ao fundo da rua, e nos telhados de dois prédios vizinhos, figuras que poderiam ser jovens como este. Mas fixa melhor a vista, e já não está seguro que não tenha sido uma ilusão causada pela neve que entretanto começou a cair.
***
O tenente entra na esquadra e sente-se em casa, as lâmpadas que iluminam os tampos das secretárias, o cheiro a madeira velha, a mofo, a café, o som de dedos a bater em teclados. Sacode dos ombros alguns flocos de neve, olha em volta o movimento característico do fim da tarde, depoimentos de testemunhas a ser recolhidos, um ou dois detidos embriagados a ser levados para celas para cozer a bebedeira, guardas que preenchem relatórios de ocorrências. Verifica que uma das salas de interrogatório tem a luz acesa e dirige-se para lá.
O jovem já está sentado de um dos lados da mesa e o tenente senta-se do outro lado.
“Sargento, tire-lhe as algemas.”
O sargento Diaz obedece. Jesus esfrega os pulsos para activar a circulação.
“Bem, precisamos de tirar isto a limpo. Já conheces os teus direitos, portanto acho que podemos começar.”
Carrega no botão do gravador.
“Pertences ao “El Niño?”
“Verdade.”
“Então este é o aspecto deles”, pensa o tenente. “Mas por que não me apareceu nenhuma descrição até agora?”
“E por que é que andam aí a matar Pais Natal?”
“Para responder a essa pergunta, preciso começar um pouco mais atrás. Posso?”
O tenente acena com a cabeça que sim.
“Quando era jovem, como era o seu Natal?”
Pela mente de O’Neill passam vertiginosamente cenas de infância, memórias agradáveis que contrastam com a dureza da vida actual, e é com esforço que interrompe esse fluxo avassalador de imagens e diz secamente para o detido:
“Quem faz aqui as perguntas somos nós!”
O jovem sorri. “Desde sempre em Little Town festejámos o Natal com El Niño, até que os gringos começaram a invadir-nos com os centros comerciais, as árvores de Natal, os tipos gordos de barbas brancas e de fato vermelho vindos directamente dos anúncios da Coca-Cola... E vão desaparecendo a missa da meia-noite, a ceia de Natal com toda a família à volta da mesa, o presépio anualmente preparado, os presentes trazidos pelo menino Jesus... Até que decidimos que era necessário passar à acção directa. El Niño tiene que vencer!”
Jesus falava com uma voz calma, quase doce, os seus olhos dirigidos alternadamente para um e outro dos polícias, e a tranquilidade das suas palavras enchia de sossego a sala de interrogatórios. E enquanto falava, O’Neill e Diaz foram ficando imóveis, com o olhar cada vez mais fixo. Jesus parou de falar, levantou-se, deu a volta à mesa e passou a mão a curta distância dos olhos dos polícias; nenhum deles pestanejou. Carregou no Stop do gravador, abriu-o e retirou a cassete, que fez desaparecer numa algibeira da túnica. Saíu da sala, e abandonou calmamente a esquadra.
Cinco minutos mais tarde O’Neill respira profundamente, como se despertasse de um longo sono. Vira-se para o sargento e diz:
“Então, sargento, mais um Pai Natal?”
“É verdade, tenente, já é o terceiro. Desta vez encontrámos a arma, mas nem sombra do assassino...”
“Temos que agarrar estes tipos, se não qualquer dia os jornais não nos largam... Vou para casa, deixe o relatório em cima da minha mesa para eu assinar amanhã. Boa noite sargento.”
“Boa noite tenente, hasta mañana.”
O’Neill sai para a rua e dirige-se para a entrada do Metro, sem reparar numa fila de pegadas de sandália, que a neve, que cai agora com mais intensidade, começa a cobrir...

Este conto foi publicado no Somnium, ezine do CLFC  - Clube dos Leitores de Ficção Científica, conforme anunciado num post a 9 de Maio de 2008.

3 comentários:

A OUTRA disse...

João Ventura:
Obrigada o seu comentário.
Desejo-lhe um 2010 feliz.
É uma delícia ler no seu Blogue.
Um BOM ANO João Ventura
Abraço
Maria

Pé na estrada disse...

Que grande história de Natal!!! Digna de uma série do Fox Crime!!
Feliz Ano Novo João!!

João Ventura disse...

Isto é apenas a fase mais avançada da guerra das varandas entre os pais natais trepadores e os pendões com o baby Jesus... :)

Um Bom Ano Novo também para ti!