A cinza do tempo
No ano em que começou, o Fantasporto (quem se lembra do primeiro Fantasporto ponha o dedo no ar) promoveu um Concurso do Conto Fantástico, de que resultou um livrinho com os 3 premiados e mais uns quantos recomendados pelo júri para publicação. O meu não foi premiado, mas ainda conseguiu uma boleia no referido livro.Com alguma nostalgia, que sempre se infiltra nestes tempos pré-natalinos/solsticianos, fiz um scan do conto - já não tinha o original, e ainda que o tivesse, seriam umas folhas escritas à máquina - revi com algum trabalho - o OCR nunca é perfeito - e aqui está o dito.
Ainda gosto dele; que querem, a gente continua a gostar dos filhos mesmo depois de eles crescerem...
A cinza do tempo
Encontrei-o na Portugália. Era um fim de tarde de Verão. Eu tinha entrado para uma imperial rápida, ao balcão, uns minutos ao fresco, longe do barulho da Almirante Reis.
O que me chamou a atenção foram os copos vazios. Dois de cerveja e dois pequenos. E quando cheguei ao balcão estava ele a pedir nova dose.
- Mais uma imperial e um bagaço.
Pensei para mim, que forma curiosa de começar uma bebedeira, às seis da tarde. Pedi um fino. E comecei a mastigar tremoços, tomei dois ou três goles, fiquei observando a condensação na superfície fria do copo. Foi então que ele falou: - Lutar contra o tempo é uma coisa terrível…
Fatal como o destino! Devo ter uma cara de ouvinte atencioso, porque se há nas redondezas um bêbado que queira alguém para palear, vem sempre tropeçar comigo.
Emiti um resmungo, que pretendia ser «não me chateies» mas ele entendeu «Ah, sim?», e sentindo-se encorajado, continuou:
- Não me refiro a ter muito que fazer em pouco tempo. O senhor desculpe, mas já ouviu falar de entropia?
A memória é uma coisa tremenda. Ele a dizer a palavra e eu catapultado para trás, para as aulas de Termodinâmica no velho edifício da Faculdade de Ciências (entropia é desordem, caos, confusão, ruído, ausência de informação...), o trabalho que apresentei intitulado “Entropia e Informação”, uma dúzia de páginas penosamente batidas à máquina com dois dedos (até li o Shannon!) …
O flash-back durou um ou dois segundos. Olhei para ele e respondi-lhe com um ar vagamente desinteressado:
- Vi outro dia um programa na televisão...
Animou -se.
- Não estava mau esse programa, não! Mas insistia demasiado na parte térmica: vapor, caldeiras, turbinas, essa coisa... A segunda lei da Termodinâmica é muito mais do que isso. Muito mais…
Pausa. Um gole de bagaço.
- Tive um amigo que chamava à entropia «a cinza do tempo». Está a ver… como se o tempo fosse ardendo… e ficasse a cinza… isso é a entropia.
A conversa estava a ficar interessante.
- O senhor desculpe, mas em que é que trabalha?
Pergunta directa como o raio. Mas como é que se pode responder torto a um tipo que começa as perguntas com «o senhor desculpe»?
- Trabalho num escritório. Papelada. Burocracia…
E não era mentira! O facto de ser o engenheiro-chefe de uma secção de uma repartição de uma direcção-geral do Ministério da Produção só torna a resposta mais verdadeira.
A cara dele abriu-se num sorriso.
- Burocracia! Posso-lhe mostrar… e se fôssemos para uma mesa?
Hesitei um pouco. Tinha pensado ir ao cinema… Com ar ofendido, ele continuou:
- Olhe que não estou a tentar cravá-lo. Veja (e mostrou-me a carteira, onde pude ver várias notas grandes). Se quiser podemos combinar contas à moda do Porto!
Fomos para uma mesa.
Um empregado veio tomar nota do que queríamos. Pedi mais cerveja e um prego. Tinha que meter algum lastro… Ele continuou com a mesma receita.
- Burocracia, estava eu a dizer… Nunca lhe aconteceu ir procurar documentos e eles não estarem onde deviam? Cartas trocadas? Confusões, papéis que desaparecem? Isso é o aumento de entropia! Qualquer sistema tende sempre a ficar mais desordenado…
Ainda estive para corrigir «sistema isolado…» mas contive-me. Interessava-me mais ouvir do que falar… E de qualquer forma o tipo já estava lançado. Eu só precisava de acenar com a cabeça e lançar de vez em quando um «Ah, sim?» a puxar mais. Alongou-se num discurso sobre a relação entre entropia e informação que durou imperial e meia.
– Mas onde a coisa é pior é no Estado. Porque repare: qual o objectivo final de qualquer repartição? Apresentar serviço. E então agora com os prémios de produtividade…
A quem o dizes, pensava eu de mim para mim. Nova pausa, enquanto o empregado pousava mais dois copos na mesa. Ele tinha parado com os bagaços e mudado para cerveja preta. Esperou que o empregado se afastasse e continuou:
- O que é que faz perder prémios e o pessoal descer lugares nas listas de promoções? Atrasos nos processos. Como? Dossiers que desaparecem, que são arquivados no sitio errado, que são retirados por outras repartições… Está a ver?
A ver ainda não estava, mas já era todo ouvidos.
Olhou em volta, desconfiado. A cervejaria tinha agora o aspecto característico da noite a começar. Ninguém prestava a mínima atenção ao que se falava na nossa mesa.
- É aí que eu entro com o meu grupo.
Intervalo para dois goles. Lentos, saboreados.
- Pomos as coisas em ordem. Descobrimos os papéis que faltam, completamos os processos. Em resumo, fazemos diminuir a entropia. Somos pagos, claro…
Eu começava a aperceber-me do contorno, mas de uma forma emocionalmente desprendida, como se fosse um filme que já tivesse visto várias vezes. Efeito do álcool, diagnostiquei, num esforço de auto-análise.
Ele entrou em generalidades, e eu à espera que viessem mais pormenores.
- Trabalho inglório, sabe. Nunca se ganha; na melhor das hipóteses adia-se a derrota. Lembra-se quando nesse programa na televisão eles falaram da morte térmica do universo? Não precisamos de nos preocupar! A humanidade vai acabar mas é afogada em papéis! Já pensou o que acontece a qualquer documento que entra na engrenagem? São pareceres, informações, cartas, ofícios, respostas, despachos, novos pareceres… E o processo a crescer, a crescer... É como um cancro!
- Mas então por que…
- Pela mesma razão que os empregados da limpeza virão amanhã de manhã limpar esta sala – atalhou ele, apontando o chão, sujo de pontas de cigarro e papéis amachucados – sabendo perfeitamente que à noite ela estará outra vez no mesmo estado. É um trabalho, e alguém o tem que fazer.
Nova pausa para esvaziar o copo e pedir mais.
- E o meu grupo faz sempre trabalho em condições – afirmou ele, com o que parecia ser orgulho profissional – porque há por aí gente metida neste negócio sem classe nenhuma. Chegam a roubar documentos, como vulgares gatunos!
Calou-se, enquanto três ou quatro clientes, chegados para um jantar tardio, passavam junto à nossa mesa.
– Nós não! Quando tiramos um documento de qualquer sítio, o registo de saída há-de aparecer preenchido de acordo com as normas. E se for preciso até a cópia do ofício de saída aparece no arquivo. Isto é trabalho bem feito!
Silêncio, desta vez prolongado.
- E a preparação? Descobrir onde um documento que interessa possa estar? Análise estatística, simulação, modelos de conflito… Tenho gente muito competente a trabalhar comigo. Alguns formados lá fora…
Calou-se outra vez. As pausas iam-se tornando mais longas e frequentes.
- Mas é perigoso! Ainda há duas semanas um dos meus melhores rapazes estava a trabalhar numa certa repartição e foi apanhado por outro grupo. Limparam-no! O máximo que pude fazer foi arranjar uma pensão para a viúva…
Disse isto como se estivesse pensando em voz alta, olhando para o fundo do copo que acabara de esvaziar.
Endireitou os ombros, com um ar que me pareceu conformado e decidido ao mesmo tempo. Chamou o empregado.
- O senhor deve estar a pensar por que é que eu lhe estou a contar tudo isto. Primeiro, um tipo que anda neste trabalho precisa de desabafar de vez em quando; e segundo, o senhor amanhã vai pensar é que encontrou um gajo com os copos que lhe contou umas coisas mirabolantes.
O empregado chegou ao pé de nós. Ele pediu-lhe a conta. Tudo junto. Quando eu comecei a protestar, disse:
- Deixe lá! Isto é uma pequena compensação por ter estado a aturar uma bebedeira.
Pagou, e sem esperar pelo troco, atirou-me um rápido «boa noite!» e saiu da cervejaria.
Perguntei ao empregado:
- Conhece este sujeito?
- Aparece por cá de vez em quando. Mas costuma beber sempre sozinho. Até fiquei admirado quando hoje o vi com outra pessoa.
*******
Na manhã seguinte, a ressaca. Depois de um duche morno, um café bem forte e duas aspirinas, comecei a ficar convencido de que não tinha sonhado. Além do mais, o dinheiro na minha carteira era o mesmo que tinha no dia anterior ao sair do Ministério. E como a Portugália ainda não fia, alguém tinha pago. Donde, tinha acontecido. Fui para o trabalho. À luz do dia, o que ouvira na véspera era simplesmente fantástico. Parecia uma história do Júlio Cortazar. Foi tudo uma aldrabice pegada, concluí. E desliguei.
Tudo isto teve lugar há duas semanas. Há dez dias, dei por falta de duas informações num processo. O sub-chefe da secção disse-me que da última vez que pegou no dossier elas estavam lá. O pessoal da secretaria não soube explicar o desaparecimento.
Há uma semana, foi a vez de um parecer técnico, com desenhos e tudo. Mandei parar o trabalho e pus toda a gente à procura do parecer. Não o encontraram, mas em contrapartida descobriram a falta de mais alguns documentos.
Há quatro dias, o chefe da repartição chamou-me ao seu gabinete. Conversa muito vaga, muitos rodeios, mas a mensagem foi muito clara: a nossa repartição está a ficar para trás na contagem para o prémio de produtividade, e eu que não me esqueça que é ele quem atribui os pontos para a promoção do pessoal.
Todas as noites passo pela cervejaria, na esperança de encontrar o tipo outra vez. Para o contratar, claro! Mas nunca mais o vi. Ou passou a ir beber a outro sítio, ou… lembro-me que ele disse que o trabalho era perigoso...
2 comentários:
Muito bom ;) Gostei imenso de ler.
:)
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