domingo, 13 de maio de 2007

Arquivo morto (conclusão)

Nessa noite, Antunes teve um pesadelo. Sonhou que estava no escritório, era um dia normal de trabalho, quando subitamente a porta da escada de serviço saltou como se do outro lado tivesse havido uma explosão. Pelo buraco aberto começaram a entrar dossiês, pastas, caixas de arquivo, gavetas com documentos, agredindo os funcionários, e Antunes viu o Almerindo a cair com a cabeça esfacelada por uma gaveta metálica, e o Mendes atacado por centenas de folhas A4 que o envolveram completamente, a boca cheia de folhas amachucadas, asfixiado lentamente. Todos os outros tentavam, com pouco sucesso, defender-se do vicioso ataque. Antunes tinha sido encurralado por uma dúzia de caixas de arquivo com aspecto ameaçador, e preparava-se para vender cara a vida, quando acordou.
Assustado, Antunes considerou aquele sonho premonitório. Não conseguindo voltar a dormir, levantou-se, fez um chá de camomila, e preparou cuidadosamente a sua estratégia. Pelas nove e meia telefonou para o escritório, dizendo que se sentia adoentado e que iria faltar naquele dia. A Dona Ivone, telefonista, tomou nota do recado e despediu-se: “Então as suas melhoras, senhor Antunes”.
Na sua juventude, Antunes fora caçador. Há muitos anos que não ia à caça: a sua defunta mulher não apreciava actividades de ar livre, e depois da sua morte nunca se tinha sentido suficientemente motivado para recomeçar a caçar. Mas por qualquer razão nostálgica todos os anos renovava religiosamente a licença, e todo o material, da caçadeira à máquina de encher cartuchos, era semanal e escrupulosamente limpo.
A outra actividade com que Antunes ocupava os tempos livres era a electrónica. Já em miúdo montava e desmontava rádios e instalava alarmes pela casa toda; tinha depois entrado na revolução digital, e estava continuamente ocupado com pequenos projectos, alguns de grande utilidade. O último produto que lhe tinha saído das mãos era um pequeno aparelho que podia ser ensinado a reconhecer anúncios na televisão, e que desligava o som do televisor e ligava o leitor de CDs durante os intervalos publicitários. Por tudo isto, aquilo que agora se propunha fazer era uma brincadeira de crianças.
Antunes começou por ir à Espingardaria Diana, onde o Sr. Abílio o recebeu afavelmente e lhe vendeu chumbo e pólvora na quantidade adequada para alguém que ia recomeçar a caçar regularmente. Dirigiu-se em seguida à ElectroVendas, onde obteve uns quantos componentes electrónicos de que viria a precisar, e passando pela drogaria do bairro, comprou pequenas quantidades de alguns produtos químicos, totalmente insuspeitos quando considerados isoladamente. Regressado a casa, começou a preparar um engenho explosivo, utilizando alguns dos materiais recém-adquiridos. O toque final foi dado por um napalm caseiro, que preparou na cozinha e cuja receita tinha obtido na internet.
Construiu depois o dispositivo de ignição, accionado por um relógio digital. Graças à microelectrónica, o conjunto era de tamanho diminuto, e juntamente com o explosivo, foi alojado dentro de uma caixa de comprimento e largura correspondentes a uma folha A4 e altura de cerca de 4 centímetros. Terminou a tarefa ao fim da tarde. Jantou frugalmente, viu um pouco de televisão, programou o despertador para uma hora mais cedo do que habitualmente, deitou-se e dormiu tranquilamente.
No dia seguinte, após a higiene matinal e um nutritivo pequeno almoço, Antunes pegou cuidadosamente na caixa, meteu-a dentro de uma pasta de couro onde habitualmente transportava livros ou revistas que costumava ler no intervalo do almoço e saiu de casa. Tinha decidido ir a pé em vez de tomar o autocarro habitual, porque não queria que o objecto que viajava dentro da pasta fosse muito sacudido.
Quarenta minutos mais tarde estava a chegar ao seu local de trabalho. Cumprimentou o porteiro à entrada do prédio, subiu ao escritório onde foi o primeiro a chegar, tirou do chaveiro a chave do arquivo morto e para lá se dirigiu, levando o objecto que tinha fabricado no dia anterior. À entrada, sentiu um arrepio na espinha, mas controlou-se e depois de ajustar o relógio do dispositivo para daí a duas horas, arrumou a caixa numa prateleira entre dois dossiês e saiu rapidamente. Regressou ao escritório, tornou a pôr a chave no sítio e tinha acabado de sentar-se à secretária quando chegou o primeiro colega. “Bom dia”, “bom dia”, conversa de circunstância, “então ontem...”, “oh, pá, uma dor de estômago, alguma coisa que comi...”. Meia hora mais tarde o escritório estva em pleno funcionamento.
A meio da manhã um ruído surdo fez estremecer o edifício. “O que foi isto?”, “Parecia uma explosão”, e menos de um minuto depois começou a tocar o alarme e o pessoal, seguindo as indicações constantes do Plano de Emergência Interno do edifício (ensaiado no simulacro realizado dois meses antes), dirigiu-se ordeiramente para o exterior. Agrupados no passeio fronteiro, todos podiam ver os grossos rolos de fumo que saiam das janelas do piso onde se localizava o arquivo morto. “O fogo é no arquivo morto”, disse, expressando o óbvio, um dos colegas de Antunes. “Espero que sim, agora”, respondeu este a meia voz, não reparando no olhar de estranheza do colega perante a sua resposta.
Os bombeiros chegaram rapidamente e iniciaram o combate ao incêndio, conseguindo evitar que este se propagasse aos restantes pisos. Quando foi iniciada a fase de rescaldo, o chefe de Antunes, depois de falar com o comandante dos bombeiros, veio junto dos funcionários dizer-lhes que podiam ir para casa, e que aparecessem no dia seguinte, à hora habitual.
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No dia seguinte, à entrada do edifício, Antunes cruzou-se com dois homens que saíam transportando o que conseguiu identificar como restos irrecuperáveis do arquivo morto. “O fogo e a água dos bombeiros fizeram um trabalho eficiente”, pensou Antunes. Quando entrou no escritório, um dos colegas disse-lhe: “O chefe quer falar contigo”.
Antunes dirigiu-se à porta do gabinete do chefe, bateu e entrou. O chefe estava sentado atrás da secretária, e havia mais dois homens no gabinete.
“Bom dia, Antunes. Estes dois senhores são da Polícia Judiciária e querem fazer-lhe algumas perguntas...”

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