segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

 Dedicado aos leitores de Eça de Queiroz, uma brincadeira sobre um dos seus livros

 

 

A Vingança do Mandarim

ou

O karma é lixado!

 

O palacete no Loreto onde habitava Theodoro estava rodeado da habitual multidão de fanáticos admiradores. Da caleche que parou em frente ao portão saiu um homem de feições asiáticas, vestindo uma casaca preta, chapéu alto, luvas e uma bengala de castão de prata. Os dois guardas municipais, ali destacados em permanência, abriram caminho para que o visitante chegasse à porta de entrada.

A sua visita tinha sido marcada pelo Ministério dos negócios Estrangeiros, por solicitação da delegação do Império do Meio em Londres. O homem foi conduzido pelo mordomo ao Salão Oriental.

Quando Theodoro entrou no salão, o seu visitante observava meticulosamente toda a decoração. Até que o seu olhar se deteve na campânula de cristal da Boémia e no objecto que esta protegia.

“É esta a campainha, não é verdade?”, perguntou o homem, num português impecável.

Theodoro tentou disfarçar a surpresa. Segurava na mão direita o cartão do visitante, e perguntou:

“A quem tenho a honra de…”

“Ainda que conseguisse decifrar os hanzi nesse cartão, o meu nome não lhe diria nada. Mas há outro nome que talvez lhe seja familiar: sou neto do Mandarim Ti-Chiu-Fú e estou aqui em nome próprio e em representação de toda a minha família.”

Theodoro estava pálido.

“Portanto, volto a perguntar-lhe: Foi esta campainha que tocou para matar o meu avô, não é verdade?”

Theodoro gaguejou:

“Sim. Mas como soube…?”

“Os nossos astrólogos são muito bons, senhor Theodoro. Mas devo dizer que o livro escrito pelo seu compatriota Eça de Queiroz ajudou. Embora altamente fantasista! Onde é que ele foi buscar a ideia de que o senhor teria viajado ao Império do Meio? Ambos sabemos que o senhor nunca lá pôs os pés!”

Aqui o visitante esboçou um leve sorriso, que fez que Theodoro se sentisse gelado.

“Levei muitos anos a imaginar este momento. Não preciso dizer-lhe – o senhor tem imaginação suficiente – das provações que afectaram a minha família com a morte do meu avô e o desaparecimento da sua considerável fortuna. De como sobrevivemos na Ponte dos Mendigos, ao pé dos terraços do Templo do Céu, à mercê da generosidade de estranhos. Até que comecei a lenta, e dolorosa, subida pelos degraus da burocracia administrativa do Império do Meio. Mas que acabou por dar os seus frutos…”

“E o que pretende de mim?”

“Pouca coisa, senhor Theodoro. O seu gesto egoísta – e impensado! – alterou de forma abrupta a ordem natural das coisas, o equilíbrio do mundo. Pelo que se torna imperativo repor esse equilíbrio. Tenho aqui um documento que o senhor vai assinar, e que consiste na doação de todos os seus bens aos herdeiros do Mandarim Ti-Chiu-Fú — possa a sua alma descansar eternamente no azul.”

Fez uma pausa e continuou:

“Repare que é uma doação e não um testamento que vai assinar, pelo que a sua – na minha opinião, miserável – vida será poupada. Não lhe escondo que alguns dos meus familiares eram partidários de ‘compensações’ mais ‘violentas’.”

E aqui o visitante passou lentamente o dedo indicador pela garganta, gesto que provocou um arrepio na espinha de Theodoro.

“A miséria em que vivemos durante muitos anos era propícia a sentimentos de vingança. Mas os ensinamentos de Confúcio ajudaram a moderar esses meus familiares mais exaltados. Portanto, aqui está!”

E o neto de Ti-Chiu-Fú tirou da algibeira da casaca um papel que colocou sobre a escrivaninha, e pegou na pena que, depois de molhar no tinteiro, ofereceu a Theodoro:

“Faz obséquio…”

Este ainda tentou balbuciar:

“E se eu não…?”

Mas ao levantar os olhos encontrou o olhar fixo do seu visitante, e através dele vislumbrou durante uns segundos uma sala repleta de instrumentos de tortura, cujo aspecto o deixou aterrorizado. Como num sonho, Theodoro pegou na pena e assinou no fundo da página.

O chinês agitou o papel para que a tinta secasse, dobrou-o e guardou-o na algibeira da casaca.

“E agora, fará o favor de tocar a campainha, para que o equilíbrio do mundo seja reposto.”

Theodoro levantou a campânula, pegou na campainha e agitou-a, produzindo um som cristalino, igual àquele com o qual tudo tinha começado, muitos anos atrás. E desmaiou.

--- XXX ---

Quando algumas horas depois Theodoro acordou, pensou que tinha tido um pesadelo. Até abrir os olhos.

O movimento no salão era intenso, carregadores cuidadosamente empacotando e levando para o exterior todo o recheio – as pratas, as porcelanas finas de Dresde e de Sèvres, os móveis de madeiras exóticas, as tapeçarias Gobelins, os candelabros Fortunys, os quadros de Daubigny, Rousseau e Corot…

O que parecia ser o capataz viu que ele já estava acordado:

“Senhor, tem de sair. Daqui a uma hora temos de ter o edifício completamente vazio, de pessoas e bens!

Theodoro saiu do palacete que até há pouco fora a sua morada e, arrastando os pés, voltou à casa de Madame Marques, para alugar o quarto onde tinha vivido no que, agora lhe parecia, uma outra vida. E no dia seguinte iria à Repartição, de dorso curvado e chapéu na mão, implorar ao Director Geral o favor de o deixar regressar ao seu lugar de amanuense.

 

 

 

 

 

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