ELEUTÉRIO E O ESCRITOR FAMOSO
Para a Regina, que me deu a ideia…
Eleutério descobriu quase por acaso que o escritor famoso ia jantar habitualmente à Estrela da Junqueira – Refeições e Petiscos.
Eleutério era um grande admirador do escritor famoso. A prateleira de cima da estante comprada no IKEA vergava com o peso das obras primas produzidas pelo escritor famoso, e colado na parede por cima da televisão estava uma foto do escritor famoso em pose contemplativa, publicada há alguns anos no suplemento literário de um jornal diário.
Sempre que possível, Eleutério escolhia uma mesa ao lado, olhava disfarçadamente o que ele estava a comer e escolhia o mesmo, trocavam um aceno de cabeça e um sorriso à chegada ou à partida, até que a oportunidade se proporcionou num dia de jogo europeu. A Estrela da Junqueira estava cheia de adeptos para ver o jogo no plasma que o senhor Joaquim – dono e gerente do restaurante – tinha comprado recentemente, e o único lugar vago era na mesa ocupada por Eleutério. Este fez um gesto convidativo e uns segundos depois concretizou-se a sua aspiração de muitos anos: jantar em frente do escritor famoso.
Eleutério foi habilidoso: conversa de circunstância, alguns comentários sobre o jogo que se desenrolava e que ambos iam observando de forma distraída, um “Boa noite” mais caloroso à despedida. Eleutério ficou a saber o clube da simpatia do escritor famoso, e isso levou-o a passar a comprar jornais desportivos, onde se ia informando sobre o que ia acontecendo ao referido clube, o que poderia vir a revelar-se útil numa futura conversa.
Eleutério tinha da sua vida uma perspectiva altamente fantasiada. Considerava a maior parte do que lhe tinha acontecido, mesmo os acontecimentos mais triviais, como merecedores de divulgação. Quando começou o programa de televisão “A minha vida dava um filme” ainda pensou em candidatar-se, mas teve receio de que o formato televisivo não fizesse justiça ao seu percurso de vida.
Nunca pensou em relatar ele próprio esses acontecimentos pessoais porque se considerava manifestamente incapaz nas artes da escrita – e por uma vez tinha uma opinião correcta acerca de si próprio. Mas começou a acalentar um sonho: o de ver os acontecimentos marcantes da sua vida postos em letra de forma pelo escritor famoso.
E na consolidação da sua estratégia de aproximação, uma nova janela de oportunidade surgiu com a transmissão de outro jogo europeu e a (previsível) sobrelotação da Estrela da Junqueira, levando à partilha de mesa entre Eleutério e o escritor famoso. Aproveitando uma pausa na degustação dos carapauzinhos fritos com arroz de tomate – uma das especialidades da Dona Genoveva, mulher do senhor Joaquim e responsável pela cozinha – prato que ambos tinham pedido, e que Eleutério tinha passado a comer à mão seguindo o exemplo do escritor famoso, Eleutério disse, sem colocar grande ênfase na afirmação: “Sabe, senhor doutor” – era sempre assim, respeitosamente, que se dirigia ao escritor famoso – “a minha vida dava um livro”.
Este, cuja mão esquerda transportava um carapau, habilmente seguro pelo rabo, a caminho da boca, suspendeu o movimento, olhou para ele por cima dos óculos e disse: “Ai é, senhor Eleutério? Conte-me mais.”
E Eleutério embalou, e contou como quase se tinha afogado a primeira vez que tinha ido à praia, o bullying que sofrera na primária e no liceu porque era desajeitado nas aulas de ginástica, duas ou três histórias da tropa, cenas heroicas da empresa de contabilidade onde trabalhava, como daquela vez que tinha resolvido um problema no Excel que estava a bloquear a saída do balanço mensal de um cliente importante, a última reunião do condomínio onde a sua intervenção tinha decidido a votação de um assunto urgente, tudo isto e muito mais ele contou no decurso da segunda parte do jogo, enquanto o escritor famoso continuava a olhá-lo por cima dos óculos e acenava de tempos a tempos com a cabeça, encorajando-o a prosseguir.
Nessa noite, Eleutério mal conseguiu dormir de eufórico que estava. “Será que o escritor famoso vai transformar a minha vida num romance? Numa novela? Num conto? Numa crónica de jornal, no mínimo?”, estes eram os pensamentos que o faziam dar voltas na cama, sem conseguir pregar olho.
Nos dias que se seguiram houve muitos lugares vagos ao jantar na Estrela da Junqueira, pelo que Eleutério não teve oportunidade nem pretexto para contactar de perto com o escritor famoso.
Duas semanas mais tarde, num sábado de sol, comprou o jornal como fazia habitualmente no quiosque à esquina da sua rua e abriu-o imediatamente na página onde o escritor famoso tinha uma crónica semanal. E ficou paralisado!
A crónica do escritor famoso intitulava-se “A vida de Eleutério”. Nem sequer tinha alterado o nome! E em vez de ser um texto sério, onde os episódios marcantes da sua vida fossem descritos e comentados com elevação, o escritor famoso tinha transformado a sua trajectória pessoal numa história risível, destinada a provocar a gargalhada fácil nos leitores. O seu quase afogamento na infância era uma pilhéria, os acontecimentos do serviço militar eram um resumo do valente soldado Chveik em versão tuga, até se dava ao desplante de fazer rimas idiotas com o seu nome, como deletério, despautério, impropério, cemitério!
Debaixo de um sol radioso, os pensamentos de Eleutério eram negros! Regressou a casa, acendeu a lareira – o que só fazia uma vez por ano, quando trazia os seus pais já idosos para jantar no Natal – trouxe todos os volumes do escritor famoso que possuía e um a um, foi rasgando raivosamente as folhas que atirava de seguida às chamas.
Quando os livros se acabaram foi arrancar da parede a fotografia do escritor famoso, e ficou a vê-la enrolar com o calor, até que as chamas a consumiram e dela não restou mais do que cinza. E enquanto isto, Eleutério remoía pensamentos nada pacíficos sobre escritores em geral e sobre o escritor famoso em particular.
E nunca mais foi jantar à Estrela da Junqueira!
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