SETE DIAS NUM UNIVERSO PARALELO
Este texto é dedicado à memória de Luís Alves,saudoso amigo com quem muitas vezes conversei
sobre a necessidade de um Serviço Nacional de Saúde
numa sociedade que pretendemos justa.
Dedico-o também aos profissionais de saúde
que me trataram durante estes sete dias,
a quem as dificuldades que lhes têm sido impostas
não inibem de cuidar dos doentes
com profissionalismo e simpatia.
Para eles o meu reconhecimento.
DIA PRIMEIRO
Há diversas formas de efectuar a transição entre universos. A minha passagem foi relativamente trivial. Na madrugada do dia 24 de Abril de 2015 sofri uma queda desamparada, seguida por dores muito fortes na perna direita. Chamado o 112, chegou rapidamente uma equipa do INEM que após analisar a situação me colocou numa cadeira de rodas na qual me transportou até à ambulância onde fui acomodado e imobilizado numa maca. Fui então conduzido ao Hospital de Santa Maria, um dos portais de entrada no universo paralelo conhecido como Serviço Nacional de Saúde.
Passada a triagem, assegurada por uma radiografia, um electrocardiograma e uma análise ao sangue, uma médica anuncia-me o diagnóstico e o que se seguirá: tenho uma fractura do colo do fémur / tenho de ser operado / vou ser internado.
É desta forma que entro no universo paralelo.
Sou conduzido ao local onde vou viver nos próximos dias, um quarto/enfermaria onde vou coabitar com mais três doentes. Dois enfermeiros ligam-me a perna e colocam uma espécie de tala, ligada a um contrapeso que mantém a perna sob tracção. Creio que a ideia é que a fractura não comece a consolidar de forma errada.
Dores? Nem sempre, só quando mexo – ou me mexem – a perna. O que é inevitável nas mudanças de posição na cama. O paracetamol intravenoso vai controlando a situação. Mas quando dói, dói mesmo.
Começo a aprender a estrutura e funcionamento do universo paralelo.
DIA SEGUNDO
A luz no universo paralelo não segue os padrões circadianos. Os espaços podem ser inundados por uma luz branca, crua, se for necessário para o tipo de actividade a realizar, ou quase totalmente obscurecidos para conforto dos internados.
A alternância sono/vigília sofre alterações. Dorme-se mais irregularmente ao longo das 24 horas convencionais de medição do tempo.
O universo normal é múltiplo, os diversos actores têm diferentes objectivos e vão seguindo a sua existência tentando atingi-los. Essa multiplicidade de objectivos que enquadram a nossa vida é drasticamente reduzida. O universo paralelo está focado, tem uma finalidade, tratar os doentes, e tudo é organizado em função disso.
Ainda que haja um televisor na sala onde me encontro, os acontecimentos no universo de onde vim chegam-me atenuados, desfocados. Vejo uma reportagem sobre as comemorações do 25 de Abril e parecem acontecimentos longínquos, quase como noutro planeta...
As rotinas que enquadravam o nosso dia-a-dia vão-se esfumando até desaparecerem, como coisas pertencentes ao outro universo. Passamos a orientar-nos pelas refeições, a higiene, as tomas de medicamentos...
DIA TERCEIRO
O universo paralelo inclui duas grandes classes de habitantes: os doentes e os que se ocupam dos doentes. No segundo grupo estão os médicos, os enfermeiros e os auxiliares.
Os médicos examinam, operam, prescrevem, decidem. Em particular são eles que decidem sobre a entrada (“internamento”) e a saída (“alta”) do universo paralelo. É possível entrar e sair do universo paralelo por períodos limitados, da ordem de uma ou duas horas (as chamadas “visitas”), mas um visitante apenas fica a conhecer o nível superficial desse universo.
Os enfermeiros gerem a “hora a hora”, às vezes o “minuto a minuto”. É a medicação, são os tratamentos, é o olhar que verifica o nível do frasco de soro ou paracetamol, é a disponibilidade que sabemos estar ao alcance de uma campainha. Dirigem-se a cada doente pelo nome, perguntam se tem dores, tentam responder a eventuais queixas.
Os auxiliares controlam o resto, as refeições, a higiene, os pequenos (mas importantes) pormenores que nos fazem sentir humanos. Com permanente boa vontade e (muitas vezes) sentido de humor.
São como três camadas do universo paralelo com interfaces onde as fronteiras são geralmente nítidas.
Anunciam-me que poderei ser operado amanhã.
DIA QUARTO
Apenas um copo de chá em substituição do pequeno-almoço como preparação para a operação. No início da manhã e ao princípio da tarde dois dos meus companheiros de quarto são levados para ser operados. O dia vai deslizando e começo a convencer-me que já não será hoje. Com a ansiedade da espera nem sinto fome.
Ao fim da tarde um médico entra no quarto e subitamente o tempo acelera: começam a empurrar a minha cama em direcção ao Bloco Operatório.
O Bloco
Não se vai, é-se levado.
Enquanto a cama rola por corredores, entra num ascensor, sobe, mais corredor, deitado de costas vejo o tecto e a parte superior das paredes a deslizar por cima de mim.
No bloco três anestesistas, jovens, bem-dispostas, fazem-me perguntas, usam toucas coloridas, depois chega outro médico que me injecta um líquido no braço. Ainda lhe pergunto se aquilo é para me pôr a dormir e não me lembro de mais nada.
Alguém me diz: "Sabe onde está? Já foi operado, correu tudo bem". Recordo a minha sensação, primeiro de surpresa (Já? Ainda há instantes estava a falar com o médico...) e em seguida de alívio. Embora neste tipo de operação a probabilidade de algo correr mal seja muito baixa, há sempre um cantinho do nosso cérebro que, a medo, encara a hipótese de que o “bilhete” para o bloco possa não ser de “ida e volta”. Invade-me um sentimento de gratidão difusa, em relação a tudo à minha volta. A confirmação de que fui e regressei.
Agora, passado algum tempo, suspeito que a pergunta "Sabe onde está?" teve lugar, não no Bloco mas no Recobro.
DIA QUINTO
O Recobro
Sossego. Calma. Penumbra. Silêncio só interrompido por ocasionais blips e pings dos instrumentos que monitorizam a vida dos doentes nas camas dispostas à volta da sala, ou por curtos diálogos a meia voz dos profissionais de turno.
No centro uma ilha, oásis de luz na obscuridade da sala, onde está o pessoal de serviço, quando não anda junto dos doentes.
O recobro é um espaço suspenso no tempo, como um casulo, sentimos o conforto de saber que há quem esteja a tomar conta de nós, e capacitado para actuar caso a necessidade surja.
Durmo com sonhos, por vezes a repetirem-se como em loop, quase a roçar o pesadelo, no que calculo que seja a ressaca da anestesia.
Passada a noite, regresso ao quarto de manhã.
Sentado numa cadeira pela primeira vez desde o internamento, é sentado que almoço. Durante a tarde trazem-me uma cadeira de rodas e dou uns pequenos “passeios” pelo corredor. É agradável o movimento – ainda que por interpostas rodas – face à imobilidade na cama.
DIA SEXTO
Uma fisioterapeuta ensina-me a andar usando o andarilho. Pé direito, pé esquerdo, deslocação do andarilho. Pé direito, pé esquerdo… A tensão nos músculos desabituados deixa-me rapidamente cansado, tenho de parar de vez em quando.
Visita do cirurgião que me operou, que me diz que “hoje ou amanhã” vou ter alta.
DIA SÉTIMO
De manhã, nova lição, agora para aprender a andar com as canadianas, que irão ser as minhas companheiras de marcha por alguns meses.
Já vestido e preparado para sair, ainda almoço numa sala onde existe uma vitrina que exibe uma colecção de próteses ortopédicas.
Um auxiliar leva-me numa cadeira de rodas até junto da viatura de transporte de doentes, parada no parque de estacionamento. Enquanto espero um pouco, antes de entrar no veículo que me levará a casa, o calor agradável do sol que eu não sentia no corpo há sete dias dá-me as boas vindas e convence-me que estou de regresso ao meu universo habitual.
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