quarta-feira, 10 de abril de 2013

O tempo escuro em que vivemos fez-me entrar em modo neo-realista. Quem não gostar pode passar ao lado...


O OUTRO, O PRÓXIMO

Manuel Joaquim, o encarregado da obra, observa, do 3º andar do prédio em construção, o estaleiro em baixo. Os homens executam os trabalhos que lhes foram distribuídos e até agora não houve desvios ao planeado.
 Um camião entra agora no estaleiro e Manuel Joaquim desce para receber a carga. São paletes de tijolos e caixas com placas isolantes para as paredes que vão começar a fazer. O camião vem equipado com uma pequena grua que levanta as paletes, uma a uma, e as deposita nos locais indicados pelo encarregado. Este assina a guia de transporte e o camião abandona o estaleiro.
É meio-dia e o trabalho é suspenso para almoçar. Os homens pegam nas marmitas que estiveram a aquecer na fogueira feita com tábuas, e dirigem-se para o telheiro, onde se instalam na mesa e bancos toscos. Um deles aparece com meia dúzia de cervejas que foi buscar ao café à esquina da rua, e começam a comer. A excepção é Ivan, o ucraniano, que se sentou num degrau um pouco mais longe, abre uma caixa donde tira uma sanduíche que vai comendo devagar, intercalando com goles de água de uma garrafa.
Manuel Joaquim suspira. É difícil o pessoal aceitar os estrangeiros, mas pelo menos tem conseguido evitar conflitos dentro da obra. E então o Raul, é lixado!
Dirige-se para o café onde habitualmente almoça, o dono já o conhece e a comida é gostosa, caseira, nada parecida com o “come-em-pé” na outra ponta da rua.
Quando regressa à obra, faltam poucos minutos para pegar no trabalho. Os portugueses estão ainda debaixo do telheiro, discutindo animadamente os jogos de futebol do domingo anterior, enquanto Ivan, sentado ainda no mesmo sítio, lê um livro.
O encarregado ouve Raul a resmungar:
“Lá está o sacana do russo a ler um daqueles livros com letras que ninguém percebe!”
Manuel Joaquim intervém: “Raul, o homem não se mete contigo, deixa-o em paz. Não quero problemas na obra!”
Raul encolhe-se: “Desculpe, sô Manel, isto era só a falar...”
“Acabou, não quero mais conversas dessas!”
O encarregado distribui trabalho. É necessário começar a transportar os tijolos para os pisos superiores. Para isto é necessário desmanchar as embalagens, para arrumar os tijolos no monta-cargas e fazê-los subir.
Dois dos operários, Raul e Jacinto, dirigem-se para uma das embalagens. Raul introduz a ponta da tesoura por baixo de uma das cintas metálicas que sujeitam a carga de tijolos e a cinta parte-se de repente, a tensão faz a ponta solta descrever um arco e a tira metálica vai bater a grande velocidade no braço de Jacinto, logo acima do pulso. O bordo fino da lâmina secciona o braço do homem, que solta um grito e cai de joelhos, agarrado ao coto que sangra abundantemente.
Ivan, que tinha ido buscar o carro de mão para o transporte dos tijolos, vira-se ao ouvir o grito e corre rapidamente para o homem acidentado. Com rapidez, tira o cinto das calças e usa-o para lhe fazer um torniquete no braço, conseguindo estancar a hemorragia. Enquanto faz isso diz a Raul: “Telefona para 112, rápido! Pede ambulância, diz que foi acidente, diz que temos amputado!”
O tom de voz transmite segurança, e Raul saca o telemóvel do bolso e começa a marcar o número. Ivan vira-se para outro operário que acorreu: “Vai café, depressa, traz balde com gelo e saco plástico!”
Entretanto fala devagar com Jacinto, tentando tranquilizá-lo; despe o blusão, enrola-o e coloca-o debaixo da cabeça do ferido.
Chega o colega a correr vindo do café com um balde de plástico contendo pedaços irregulares de gelo, Ivan pega na mão decepada, mete-a dentro do saco plástico que o homem também trouxe e acomoda o embrulho no meio dos pedaços de gelo.
Verifica o pulso de Jacinto, mantém-se estável, fala novamente com ele “Vai tudo sair bem, conserva calma, ambulância deve estar chegar” e como para confirmar as suas palavras começa a ouvir-se uma sirene e pouco depois a ambulância do INEM aparece à esquina da rua.
A ambulância pára, saem um médico e um enfermeiro, trazem uma maca que colocam ao lado do ferido, o médico examina-o, observa o garrote, e pergunta: “Quem fez isto?”
Ivan avança e responde: “Eu fiz”.
“Tinha conhecimentos de primeiros socorros?”
O ucraniano sorri e diz: “Médico em minha terra. Cirurgião em hospital central de Kiev.”
“Já vi que preservaram a mão, vamos levá-la e do caminho alertamos o serviço de cirurgia reconstrutiva.”
Colocam a mão no recipiente que trouxeram, o enfermeiro dá uma injecção a Jacinto, mudam o ferido para a maca e transportam-no para a ambulância.
“Quem é o responsável da obra? Preciso que venha connosco para preencher os papéis de entrada no hospital.”
O encarregado entra na ambulância e a viatura arranca rapidamente, com a sirene e as luzes a abrir caminho pelo meio do tráfego.
Raul olha Ivan que vai buscar o carro de mão. A sua cabeça está confusa, o que acabou de assistir entrou em choque com os preconceitos que lhe moldaram a mente ao longo dos anos, mas uma coisa ele sente no seu íntimo, é que se não fosse o russo o Jacinto quase de certeza já não estava vivo!
Quase duas horas depois, Manuel Joaquim regressa à obra. Os homens rodeiam-no, ansiosos.
“Assim que entrou foi logo para o bloco operatório. Parece que há esperança de lhe pegarem outra vez a mão...”
“Telefonei ao engenheiro e ele deu autorização para acabarem hoje mais cedo. Podem ir para casa.”


--- X ---


Às oito horas do dia seguinte, no início do trabalho, Manuel Joaquim traz notícias.
“Falei hoje de manhã com a mulher do Jacinto. Ela esteve no hospital até ao fim da operação, viu quando o trouxeram para o quarto, mas ele ainda estava a dormir com a anestesia. Mas o médico disse que lhe tinham pegado a mão e agora era esperar para ver como o organismo reagia. Levou sete horas a operação!”
“Ah, e o médico disse também que se não fosse a rapidez dos primeiros socorros ele não se tinha safado. Já tem que te agradecer, Ivan...”
O ucraniano mostra um sorriso tímido “Não foi nada, eu fui treinado para coisas assim...”
Começa o trabalho do dia mas sente-se uma atmosfera diferente no estaleiro. De quando em quando, Raul observa Ivan, quando o ucraniano não está a olhar, e é como se o visse pela primeira vez.
Pelo fim da manhã o encarregado volta a telefonar à mulher de Jacinto. Ela está à cabeceira do marido, diz que ele já acordou, não tem febre e está bem-disposto.
Hora do almoço, os homens dirigem-se para o telheiro, como habitualmente. Raul, que tem andado calado durante toda a manhã, diz para um dos outros: “Vai lá dizer ao russo que pode vir comer aqui para o pé de nós.” Os outros entreolham-se disfarçadamente, mas ninguém comenta.
Ivan ouve o convite, sorri, levanta-se do degrau onde estava sentado e vem juntar-se aos outros debaixo do telheiro. Há um certo constrangimento à volta da mesa, mas o almoço acaba e os homens voltam ao trabalho.
A meio da tarde a obra é visitada por Inspectores do Trabalho e do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
Os primeiros recebem a notificação sobre o acidente ocorrido, aceitam que a prática utilizada era a correcta e que a cinta metálica partiu prematuramente devido provavelmente a algum defeito que passou despercebido ao pessoal que procedeu à embalagem.
Mas os inspectores do Serviço de Estrangeiros descobrem que Ivan não tem todos os papéis em ordem. O ucraniano assegura que o patrão anterior – que de resto lhe ficou a dever dinheiro – lhe tinha dito que tinha revalidado esse documento. Mas os inspectores são rígidos – um documento caducado é um documento caducado – e passam-lhe uma intimação para se apresentar no dia seguinte na sede do Serviço. A consequência previsível é a deportação.
Ivan está destroçado, agarra o blusão e a caixa do almoço e sai da obra, mal se despedindo dos outros. Vê-lo afastar-se daquela maneira deixa um nó na garganta dos colegas.
O resto do dia de trabalho arrasta-se, interminável. Na hora de largar, Raul diz de repente para os outros: “Vou ao sindicato, têm lá advogados, devem poder fazer qualquer coisa. Não podem mandar o russo de volta prá terra depois do que ele fez pelo Jacinto!”
E os outros homens, como se estivessem à espera desta tomada de posição, dizem quase em simultâneo: “Vamos lá todos!”

E uma vontade colectiva sai do estaleiro para fazer aquilo que deve ser feito.

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