Em 2010, a editora
Saída de Emergência publicou o
Almanaque do Dr. Thackery T. Lambshead de Doenças Excêntricas e Desacreditadas, onde tenho uma contribuição. Hoje, durante a
spring cleaning do disco do computador, encontrei outro conto que escrevi nessa altura, mas que então não chegou a ver a luz, e resolvi arejá-lo aqui. Assim como assim, é 1º de Abril...
DESEJO INCONTROLÁVEL DE SER DONO DO MUNDO (DIDSDDM)
Personae gigantismus;
Mundus dominium voluntas
Primeiro caso conhecido
Perde-se na noite dos tempos o registo do primeiro caso desta doença. Battleshout & Littleone (1953) propuseram a teoria de que o factor que faria despoletar a doença nas populações pré-históricas era o som de um fémur a partir qualquer outro objecto mais frágil; esta teoria foi liminarmente rejeitada por alguns participantes na conferência que também tinham visto o filme “2001 – Odisseia no Espaço”. Na sequência deste incidente, aqueles autores foram acusados de plágio e os seus nomes retirados do “Who’s Who in Medical Research”.
Assim os primeiros relatos da doença – ainda não reconhecida como tal – surgem no contexto das vidas dos grandes líderes políticos, militares e religiosos. As fases terminais da doença causam fascínio no público em geral, sobretudo pela grandiosidade das consequências. As múltiplas guerras que têm ocorrido ao longo da história humana, conquistas, colonizações, genocídios, são um mostruário dos efeitos desta doença que tem atacado os líderes das nações e povos envolvidos, e que só recentemente começou a ser reconhecida na comunidade médica.
Sintomas
Os sintomas são caracterizados por uma certa variabilidade entre os doentes afectados, mas existe uma tipologia com alguma consistência:
a) Exibição obsessiva e ostensiva de manifestações de poder pessoal.
b) Discursos agressivos, sobretudo se efectuados perante multidões.
c) Gosto acentuado por símbolos e rituais (medalhas, condecorações, desfiles, tomadas de posse, etc).
d) Forte tendência para atribuir a outros a culpa de tudo o que de mau acontece. Esses outros pertencem em geral a uma minoria étnica ou política.
e) Prazer evidente na humilhação e punição de subordinados.
História
Considerava-se inicialmente que só pessoas colocadas em cargos de topo nas organizações de que faziam parte podiam ser afectadas por esta doença. Isto tornava muito difícil a obtenção de dados objectivos, porque qualquer estudo médico pressupõe um acompanhamento de perto do doente a ser estudado, e a proximidade de doentes na fase terminal desta doença constitui um factor de risco pessoal para qualquer cientista que tente realizar este tipo de investigação.
Apesar disso, muitos estudos foram dedicados a doentes famosos como Gengis Kan, Átila, Staline, Hitler, Pol Pot, para só mencionar alguns, não tanto por observação directa dos pacientes, pelas razões já expostas, mas através de análises das consequências dos seus actos. A título de exemplo, uma pesquisa no Google para “Hitler” fornece mais de 30 milhões de referências e para “Stalin” mais de 11 milhões.
Todavia, o artigo seminal de Sharpeye & Deepthink (1979) veio demonstrar que o DIDSDDM está presente de forma endémica na população humana, e que toda a situação de poder – por reduzido que seja esse poder – dá lugar ao aparecimento de fases mais ou menos benignas de manifestação da doença.
São conhecidos os comportamentos arbitrários de chefes intermédios em qualquer cadeia hierárquica, que levam muitos observadores, por falta de enquadramento teórico, a confundi-los com o comportamento sádico, quando são na realidade sintomas – não identificados – característicos do DIDSDDM.
Mesmo em indivíduos desprovidos de qualquer poder – falamos aqui de subordinados no nível mais baixo de uma escala hierárquica – a doença encontra-se latente, o que é manifesto em frases do tipo “Ai se eu mandasse!...” emitidas com manifesto desejo de que essa situação se pudesse concretizar.
Tratamento
No passado recente, os efeitos sentidos da arbitrariedade de muitas chefias levou ao surgimento de uma escola de medicina radical que propunha simplesmente a eliminação dos doentes com DIDSDDM. Esta escola, inspirada por algumas correntes anarquistas, ficou conhecida pelo seu
slogan mais polémico: “Chefe bom é chefe morto!”.
No entanto, o
mainstream da prática médica é actualmente bem mais moderado. Numa fase inicial da evolução da doença, o paciente pode ser tratado retirando-lhe o poder que lhe foi conferido pela hierarquia. É prática aconselhada que esta acção seja súbita, porque a perda gradual do poder pode tornar os sintomas mais agressivos.
Este tratamento provoca em geral num prazo relativamente curto o desaparecimento dos sintomas. Pode ser necessário providenciar ao doente acompanhamento psicológico, pois a perda de poder – ainda que um poder minúsculo – pode ser acompanhada de efeitos secundários que se caracterizam por sintomas que são quase simétricos dos sintomas do DIDSDDM. Uma das razões pela qual muitos clínicos prescrevem apoio psicológico tem a ver com várias acções de má prática clínica levadas a tribunal por doentes que desenvolveram sintomas de privação do poder particularmente fortes.
Os sintomas agravam-se à medida que o paciente sobe os degraus da hierarquia. Na fase terminal da doença – quando ataca chefes políticos, religiosos ou militares – a única forma de cura corresponde ao confinamento do paciente a um espaço limitado, ou à sua eliminação física.
A primeira forma de tratamento não é 100% eficaz, porque não é irreversível: factores diversos podem contribuir para fazer cessar o confinamento do paciente, e nesse caso os sintomas reaparecerem de forma muito mais violenta. Quanto à eliminação física, por vezes tem acontecido de forma natural, outras tem sido provocada. O problema é que muitas vezes os agentes desta eliminação estão eles próprios afectados pelo DIDSDDM. Daí que seja uma opinião partilhada pelos especialistas que a erradicação total desta doença é um objectivo utópico.
Referências
Battleshout, A.B. & Littleone, Y.Z., 1953, An explanation for the appearance of the Mundus dominium voluntas desease, Actas do XXIII Congresso das Doenças Raras ou Infecciosas, vol. IV, pg. 365-372.
Sharpeye, I. & Deepthink, S., 1979, Must a chief be a sick person? – Some Personae gigantismus case studies, International Journal of Psychological and Sociological Pathologies and Chiefology Studies, 3-179.