Só cultura, só cultura, já chateia!
- Isto é uma pouca vergonha!- O que foi agora?
- Agora? É sempre! Sabes a que horas ontem consegui ver os resumos dos jogos da 1ª liga? Já passava da uma e meia da manhã!
O meu vizinho Aníbal estava ainda mais furioso do que era costume. E continuou:
- Eu também tenho direitos, também pago impostos, pá! E tenho que aturar programas sobre pintura, cinema, teatro, exposições, literatura, sei lá que mais… Desde que a SportTV faliu, as minhas noites são andar a saltar de canal em canal! Ontem apanhei uma mesa redonda sobre quem será o próximo prémio Nobel da literatura, uma entrevista com o ministro da cultura sobre o apoio ao teatro, um filme português – nem sei o que era, mudei logo de canal – um programa sobre a sobrevivência do lince ibérico, e nem uma noticiazinha sobre futebol…
Tínhamos entretanto chegado ao “Café do António”. Entrámos, pedimos as duas bicas do costume, e o Aníbal dirigiu-se à ponta do balcão onde estão os jornais para os clientes lerem. Folheou a pilha de jornais e perguntou ao empregado:
- Luís, onde está A Bola?
- Já não há, senhor Aníbal. O meu patrão deixou de a comprar porque poucos clientes a liam…
O Aníbal virou-se para mim, e parecia que deitava fumo.
-Eu não te digo? Até o António…, – e exibia com ar furibundo o Jornal de Letras, o Monde Diplomatique, a revista Ler, os suplementos literários de diversos jornais – Só merda, pá!, concluiu em voz baixa, porque alguns dos clientes sentados nas mesas começaram a olhar para ele de forma reprovadora.
Pagámos os cafés e saímos, ele a caminho da entrada do Metro e eu da paragem do autocarro. Passámos no quiosque dos jornais. O Aníbal não é da qualidade de desistir facilmente.
- Bom dia, senhor Fernando, tem A Bola?
- Deixe-me cá procurar; sabe, agora só mando vir 3 Bolas e 2 Recordes, e mesmo assim na maior parte dos dias não se vendem todos, tenho de os devolver. Olha, estava aqui escondida debaixo do último livro do Vasco Graça Moura, “Poesia e política no Portugal do século XX”. Já leu, senhor Aníbal? Devia ler! Isto sim, tem-se vendido como o milho!
Fiquei com receio que desse uma coisa má ao Aníbal. Mas ele só engoliu em seco, olhou para o relógio e disse: -Eh pá, já estou atrasado. Até logo, até logo…, e desandou em direcção à entrada do Metro.
O senhor Fernando do quiosque olhou para mim e encolheu os ombros. Olhámos ambos para o Aníbal que se afastava. Levava um livro na mão, com o qual tinha passado a viajar porque toda a gente no Metro lia livros durante o percurso, e ele sentia-se mal a olhar para o ar ou para a janela.
Aníbal entrou na carruagem e sentou-se. Olhou em volta para os seus companheiros de viagem, tentando ver o que liam. O casal no banco da frente, ele lia “A insustentável leveza do ser”, de Milan Kundera, e ela “Aparição”, de Vergílio Ferreira. A jovem no assento ao seu lado, não dava para ver a capa, mas pelo aspecto das páginas abertas lia poesia. Do outro lado do corredor, um homem de meia-idade, com um bigode bem aparado, lia um livro de que não conseguiu ver o autor, mas cuja capa dizia em letras grandes “A Filosofia Grega”. Aníbal abriu calmamente o seu livro, que tinha forrado de papel castanho opaco, para evitar os olhares condescendentes dos outros passageiros, e mergulhou na leitura de “Meu nome é Eusébio “...
3 comentários:
Lembro-me do gosto que tive em ler, nos anos 80, "A insustentável leveza do ser". Tal como acontece com muitos dos livros que li já me esqueci da história. Está, portanto, ali na estante a minha edição da Biblioteca de Bolso da Dom Quixote para ser relida um dia destes. Acredito que com o senhor Aníbal tudo é diferente. Ele não se vai esquecer assim tão facilmente do livro que vai lendo no metro.
Sim, sim, até porque ele gostou tanto que já é a segunda vez que o está a ler...
MUITO BOM ESSE Aníbal! deve ser interessante o Euzébio e seu nome.
Enviar um comentário