quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Ratings...


Patrick Murphy entrou no estacionamento do parque de campismo, parou, desligou o motor e travou o carro. Tirou da bagageira a mochila e o restante equipamento, trancou o carro e dirigiu-se à loja do parque, onde comprou alguns alimentos e pediu a chave da cabana que tinha alugado para as suas curtas férias.
O parque tinha uma área familiar, com casas de madeira e espaço para tendas e caravanas, e uma zona mais “selvagem”, com pequenas cabanas espalhadas pelo bosque. Para atingir esta zona mais afastada, Patrick teve de atravessar a zona da piscina e do parque infantil, onde vários casais jovens brincavam com os filhos pequenos. Vinha-lhe sempre à memória a morte da mulher dando à luz o seu primeiro filho, que também não sobrevivera ao parto. E era com tristeza e com um sentimento de perda que via a felicidade alheia, imagem do que poderia ser a sua vida se...
Entrado no bosque, esforçou-se por concentrar a atenção no carreiro que conduzia à sua cabana. Era uma construção pequena, mas limpa e minimamente equipada. Esvaziou a mochila, preparou duas sanduíches que trouxe com uma cerveja para o alpendre, e ali ficou sentado a comer e beber devagar, enquanto o sol, em parte visível através das copas das árvores, descia no horizonte. Ali permaneceu mais algum tempo a ver surgir a noite, foi deitar-se e dormiu um sono agitado.
Na manhã seguinte, levantou-se cedo, meteu na mochila comida e água, um mapa, bússola e GPS e saiu da cabana, caminhando algumas horas pelo terreno acidentado em volta do parque. A meio da tarde, já no percurso de volta à cabana, o seu telemóvel tocou. Quando viu que a chamada era do chefe, Patrick soube logo que alguma coisa de grave se passava.
(…)
“Sim, andei a fazer tracking e devo ter estado numa zona sem cobertura de rede.”
(…)
“Alerta vermelho? Vou imediatamente.”
Entrou na cabana, recolheu rapidamente as suas coisas e foi à loja do parque, onde pagou os 5 dias de alojamento que tinha reservado. À pergunta do responsável da loja se alguma coisa lhe tinha desagradado, respondeu que não, mas que tinha de regressar mais cedo do que o previsto.
Três minutos mais tarde estava na estrada a acelerar, iniciando a viagem de regresso.

--- XXX --- 

Patrick não se lembrava de ter visto no seu serviço uma reunião como aquela. À volta da mesa havia representantes da NSA, CIA, FBI, e mais uma ou duas agências de que ele mal tinha ouvido falar. O seu chefe abriu a reunião, apresentou todos os participantes e passou a palavra ao representante da Intelligence Analysis Agency:
“Há 4 dias ocorreram duas mortes nesta cidade, à primeira vista acidentais e como tal catalogadas. Um homem foi atropelado à saída do edifício em que trabalhava por um automóvel cujo condutor se pôs em fuga, e outro homem caiu no poço do elevador do edifício onde vivia. A viatura envolvida no atropelamento e o respectivo condutor nunca foram encontrados, e o responsável da empresa de manutenção dos elevadores garante que não havia nada de errado com o mesmo, e não consegue explicar como terá ocorrido o acidente.
Um ponto comum em relação às duas mortes: ambos eram analistas na Fisher. No dia seguinte, outro funcionário desta empresa foi encontrado morto em casa: a cocaína que tinha consumido estava misturada com um tóxico letal. Ainda outro, a caminho do trabalho, perdeu o controlo do carro e sofreu um choque frontal com um camião, ao qual não sobreviveu. Outro que no dia de folga tinha ido jogar paint-ball como era seu hábito, foi atingido, não pela bolinha com tinta, mas por uma bala a sério. E de muitas outras formas, que seria fastidioso estar a enumerar, foram em três dias eliminados a maior parte dos analistas da Fisher. Os poucos que escaparam estão neste momento sob protecção policial em locais secretos.
Em relação às chefias intermédias, foi uma operação mais compacta; os vice-presidentes e directores tinham ido comemorar o aniversário de um deles para um clube nocturno e o uísque velho que beberam tinha alguma coisa além de uísque... Quando o CEO, que chegara atrasado, entrou no clube, já os paramédicos entretanto chamados tinham desistido das manobras de reanimação. Não escapou um!
O CEO, que passou a andar acompanhado de vários guarda-costas, dirigiu-se no dia seguinte num carro com vidros à prova de bala para a marina onde tinha o seu iate. Quando estava a cerca de uma milha da costa, uma enorme explosão provocou um rombo no casco que fez afundar o iate em menos de um minuto.
Quando começámos a correlacionar estes factos, fomos olhar outra vez informação recente cujo conteúdo tínhamos descartado como improvável.
Há poucas semanas tinha havido rumores da formação de uma nova organização, com origem em vários países europeus. Fontes não totalmente credíveis falavam de gente ligada directa ou indirectamente ao IRA, à ETA, às Brigadas Vermelhas italianas, ao grupo Baader-Meinhof?, mesmo a descendentes da resistência grega que nas montanhas combateu os nazis, às FP25 portuguesas... E esta gente ter-se-ia agrupado para 'combater o sistema capitalista financeiro responsável pela globalização'.
Isto pareceu na altura totalmente fantasista e não lhe demos qualquer crédito. Neste momento estamos a classificar como 'possível' e penso que virá a ser considerado 'provável'. Uma operação com este nível de precisão cirúrgica necessita de um know-how que um grupo como o que eu descrevi poderá possuir. Sobretudo a vantagem resultante do cruzamento de activismos muito diferentes, utilizando as técnicas mais eficientes...”
Cala-se bruscamente quando a luz vermelha no tecto da sala começa a piscar. O chefe de Patrick, alertado pelo seu próprio auricular, que nunca tira do ouvido, liga os televisores existentes na parede do fundo, já pré-programados para a NBC, CBS, ABC e Fox. As imagens transmitidas parecem, numa escala reduzida, a fase final do 11 de Setembro: uma enorme nuvem de poeira, expandindo lentamente, no lugar onde antes estava – é fácil de reconhecer pelos prédios vizinhos – a sede da Mads'R'us, a segunda mais importante agência de rating. Decorrem menos de três minutos e a CBS põe no ar uma gravação de um vídeo amador onde, apesar da pouca qualidade da imagem, se distinguem claramente explosões ao nível do primeiro andar e o colapso subsequente do edifício, o terraço a chegar quase ao nível do solo antes que a nuvem de poeira obscureça tudo. Tecnicamente, uma demolição perfeita.
O chefe de Patrick reage imediatamente. “A próxima vai ser a Normal&Under! Pat, leva o piquete, vão para lá de helicóptero e começa a montar a segurança. Irão chegar reforços. Estes tipos são muito bons, diabolicamente bons, temos de ser mais rápidos que eles. Go, go!”
Quando chega ao terraço o heli já tem as pás a girar, os homens do piquete acomodam-se nos assentos, Patrick caminha curvado até à porta, entra e senta-se ao lado do piloto. Este levanta de imediato o aparelho, que sobe numa longa curva e se dirige para a sede da agência Normal&Under.
No heliporto do edifício da agência, o heli paira meio metro acima do pavimento e Pat e os seus homens saltam e correm para a entrada que leva às escadas. As instruções foram dadas durante o voo. Os homens deslocam-se para controlar as entradas, enquanto Patrick percorre os gabinetes do pessoal de topo, todos nos dois pisos superiores, com janelas amplas, alguns com duas paredes envidraçadas, e força-os a moverem-se para uma sala interior, menos exposta. Levando consigo um dos directores, Patrick vai descendo, andar por andar, e vai sendo informado, “sala dos mercados europeus”, “sala da América Latina”, e o que Patrick vê são dezenas de pessoas, cada uma em frente de um computador, gráficos coloridos que deslizam nos monitores, e os analistas usam o telefone, e batem no teclado, por vezes há um que faz um comentário para o colega do lado, mas de um modo geral cada um está concentrado no monitor que tem na frente, e Patrick percorre as salas identificando as vulnerabilidades, e numa parte remota do seu cérebro há um sentimento de estranheza, então estes é que são os tipos que estabelecem os famosos ratings que fazem e desfazem reputações  de empresas e países, parecem tão pacíficos ali, em frente aos monitores, mas as consequências das suas decisões podem ser terríveis, será que eles pensam nisso, mas o trabalho reocupa a sua consciência, chegou ao rés-do-chão do edifício, pela porta principal entram agora reforços com equipamento de combate. Patrick assume o comando e dá instruções aos comandantes dos pelotões. Dirige os grupos de intervenção para reforçar a segurança montada inicialmente, os especialistas em explosivos para a realização de um varrimento exaustivo do edifício. Os homens dispersam, iniciando as missões que lhes foram atribuídas.
Sempre em ligação rádio com os seus homens, Patrick regressa à sala onde juntou os executivos, para lhes fazer o ponto da situação. Foi encontrá-los reunidos, tomando decisões sobre anúncios de rating a emitir.
O CEO interrompeu a reunião para perguntar: “Como vão as coisas, major?”
Patrick responde: “A segurança está montada em todo o edifício. Ninguém entra nem sai sem passar por nós. Temos de esperar até haver mais informação sobre o exterior.”
“OK, major, nós continuamos a trabalhar. Desde que viemos para aqui já baixamos o rating de dois ou três países e de uma meia dúzia de empresas...”
E riu-se, apoiado pelos sorrisos dos vice-presidentes.
Patrick não acha graça, apenas diz: “Quando houver novidades, virei aqui”, e vira costas, sai da sala, apanha o elevador para o rés-do-chão.
No átrio, verifica o posicionamento dos seus homens, confirma por rádio que do terraço à garagem tudo está a postos. O edifício parece limpo de explosivos. Foram colocados snippers nos telhados, terraços e janelas dos prédios vizinhos, ouve o ruído do heli que descreve círculos sobre a zona.
E no entanto, o instinto de Patrick diz-lhe que a situação é diferente de tudo o que já viveu até então. Em todas as crises anteriores em que esteve envolvido, ele e a força que comandava eram os caçadores, agora ele tem a sensação de estarem sitiados, aquele aperto no estômago não engana, agora são eles os ratos, e os gatos estão lá fora, ninguém sabe onde...
Vêm ter com ele o capitão Boyd, seu adjunto. Patrick conhece todos os seus homens, sabe dos seus problemas familiares, sabe por exemplo que o pai de Bill Boyd morreu recentemente; precisando de uma intervenção cirúrgica viu-se sem recursos, devido à falência da companhia onde tinha o seu seguro de saúde, arrastada na hecatombe do sistema bancário. Demasiado orgulhoso para pedir ajuda ao filho, este só veio a saber da situação quando já nada podia fazer.
E Patrick conhece muitas outras situações, até mesmo no seu círculo mais próximo. Há poucos dias encontrou um tio da falecida mulher, veterano do Vietname, a trabalhar no MacDonalds, em resultado do colapso do seu fundo de pensões. E não era ele a única pessoa de idade naquele restaurante a atender os pedidos ou a limpar as mesas...
E um tio avô na Irlanda que se suicidou, desesperado por ver as economias de uma vida de trabalho engolidas na falência do banco onde as tinha colocado.
E Patrick pensa que há qualquer coisa de errado em estar ali a proteger os responsáveis pela ruína de milhões de pessoas, mas que continuam, numa sala protegida, o seu trabalho destruidor. Alguma coisa faz click na sua cabeça. Acciona o botão do rádio e fala:
“Atenção a todas as unidades, aqui Condor, senha Fechadura, operação cancelada, repito, operação cancelada. Todas as unidades regressam à base, imediatamente.”
Os diversos grupos de intervenção abandonam rapidamente o edifício, os snippers deixam os edifícios vizinhos, o som do heli é cada vez mais fraco à medida que se afasta. Depois de ver sair todo o pessoal, Patrick sai também com Bill, fingindo não notar o ar surpreso do seu adjunto. Despede-se dele dizendo, “Afasta-te daqui que isto vai certamente aquecer. Fica bem.”
Patrick caminha rapidamente sem olhar para trás. Percorridos quatro ou cinco quarteirões começa a ouvir o som meio abafado de armas automáticas, os tiros devem ser dentro do edifício. Pensa que o seu chefe tinha razão, these guys are damn good!. Patrick continua a andar e a sua presença vai-se tornando indistinta enquanto mergulha mais e mais na cidade anoitecida...

3 comentários:

luisa disse...

Um filme que gostava de ver... pela catarse, claro :)

Pé na estrada disse...

Muito bom. Ora o Patrick foi para o mato passear, e os terroristas europeus safaram-se... ai ai (suspiro) ;-)

João Ventura disse...

Claro, Luísa, só pela catarse... :)

Olá, Bé, há histórias que acabam bem, outras que acabam mal, e podem acontecer ambas as coisas consoante os(as) leitores(as)...