quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Coisas do baú (1)

Alguns textos com idades entre os vinte e os trinta anos, unicamente existentes em suporte papel, com tão má qualidade que nem o software OCR consegue "apanhá-los", o que implica introduzi-los penosamente palavra a palavra. Editei o mínimo, apenas gralhas, porque a ideia era mesmo mostrar coisas antigas. O que segue é um deles...

Linhas convergentes
"Tem toda a razão, minha amiga", disse o Conselheiro, pousando a chávena de chá na mesinha com incrustações de marfim. "Tudo está muito mudado actualmente. E infelizmente para pior." Isto dito, recostou-se mais confortavelmente na poltrona forrada de veludo e tirando um cigarro da cigarreira de prata, acendeu-o com meticuloso cuidado.
A sua interlocutora, os dedos brincando distraidamente com as pérolas do colar, continuou:
"Veja a política, por exemplo. O meu amigo recorda-se certamente do meu falecido tio. Ainda ontem, ao folhear o álbum de família, tornei a ver o seu retrato. Um aprumo! Uma personalidade! Pois ele era embaixador na Basluvónia na altura em que aquele primeiro-ministro (esqueci-me do nome) começou a tomar umas medidas, enfim, pouco próprias, nacionalizações, coisas desse género."
"E o exército resolveu intervir. E uma noite, havia um baile no Palácio Real (quem nos contou isto foi a tia, porque o tio era homem de poucas falas, como sabe) penso que era uma recepção ao corpo diplomático, e no meio de uma valsa, a orquestra parou subitamente de tocar. O general Zalovic, em uniforme de gala, entrou no salão, aguardou que se fizesse silêncio e dirigiu-se aos presentes: Excelências, (contava a tia que se poderia ouvir um alfinete a cair no chão) verificando que a política seguida por este país estava a torná-lo um foco de instabilidade nas relações internacionais, uma Junta Militar, a que presido, decidiu tomar nas suas mãos os destinos da nossa Pátria. O governo foi deposto e o parlamento suspenso. A Junta garante a protecção das pessoas e bens dos cidadãos estrangeiros. A legislação recentemente promulgada será reexaminada à luz dos reais interesses da Basluvónia. Disse isto, fez continência, deu meia-volta e retirou-se. No dia seguinte a cavalaria saiu à rua para dominar alguns pequenos tumultos, foram presos uns quantos agitadores e o país voltou à normalidade. Foi naturalmente imposta a censura à imprensa, o que fez respirar de alívio as pessoas de bem, cujos nomes eram contantemente enxovalhados nas folhas radicais.
Era assim a política nesse tempo. Era tacto, diplomacia, savoir-faire... não era nada desta confusão de agora! Desvios de aviões! Raptos! Sequestros!"
O Conselheiro sacudiu um imaginário grão de poeira do vinco das calças e abanou a cabeça enfaticamente:
"Plenamente de acordo. De resto, ainda há bem poucos dias, em conversa com o meu grande amigo (...)"

*****

"E tens a certeza que o António foi apanhado?"
"Absoluta. É a única coisa que o faria faltar ao encontro. Foi por isso que accionei o plano de emergência. Nunca se sabe quanto tempo se resiste lá dentro sem falar."
Dois homens num banco de autocarro. Um lê o jornal, o outro olha pela janela. A conversa é murmurada, apenas o necessário para se sobrepor ao ruído de fundo do trânsito à hora de ponta.
O autocarro pára. Eles descem. Na rua, um terceiro homem espera-os.
"Foram buscar o Roberto ao jornal! E estão a passar o nosso bairro a pente fino."
"Isso não nos deixa qualquer hipótese de escolha. Encontramo-nos no sítio combinado dentro de meia hora. Tenham cuidado."
Os três homens desaparecem em direcções diferentes. Anoitece.

*****

(...)
"Mas isso que constou a respeito dele seria verdade? Que eu nunca dou ouvidos a boatos, mas..."
"Calúnias, minha amiga, calúnias! Uma pessoa que chega onde ele chegou cria naturalmente inimigos. Invejas..."
"Note que eu sempre o considerei uma pessoa de sólida formação moral. Basta ver a forma como ele educa os filhos..."
O pêndulo do relógio brilha com o reflexo do fogo que arde na lareira. O Conselheiro pensa numa desculpa para se ir embora. (Esta velha quando começa a falar nunca mais se cala! Se não precisasse da influência dela para esta operação financeira...)
"Olhe, vou-lhe contar um caso que chegou ao meu conhecimento e que dá uma ideia do seu carácter. O caseiro de uma das suas propriedades..."

*****

Luís acende um cigarro e aspira profundamente o fumo.
"O.K., a casa é esta. A dona é velha, rica, família no governo e na banca e vive sozinha com uma criada. Mas hoje parece que tem visitas, a julgar pelo carro com motorista estacionado em frente da porta. Melhor!"
É noite completa. No bairro residencial quase o silêncio, como se a cidade fosse muito longe.
Luís a Pedro:
"Portanto tocas à porta da frente e tens que entreter a criada pelo menos um minuto, enquanto nós entramos por uma janela das traseiras. Depois aguardas, e quando vires a luz do primeiro andar apagar e acender três vezes, cavas e telefonas aos jornais. Sabes o resto, não sabes?"
Pedro fz que sim com a cabeça. Troca apertos de mão com Luís e Manuel e estes desaparecem ao longo do muro baixo do jardim que rodeia a vivenda.
Os dois homens estão agora junto de uma das janelas que dão para o jardim, ao nível do solo. Ouvem, amortecido, o som da campainha da porta. Aguardam alguns instantes e Manuel começa a trabalhar na janela, de modelo antigo, que cede ao fim de poucos segundos. Entram na casa. A luz da lnterna eléctrica revela móveis antigos, um baú, um armário. A porta!
Corredor. Alguns degraus até ao nível da rua. Ao começarem a subir a escada alcatifada que conduz ao piso superior, ouvem através de uma porta a voz da criada que fala com Pedro.
Reposteiros. Óleos nas paredes. Uma armadura. Porcelanas.
Luís e Manuel caminham ao longo do corredor. Param junto de uma porta. Luís espreita pelo buraco da fechadura. Endireita-se. Tira do bolso do casaco a pistola automática e destrava-a. Manuel faz o mesmo. A mão esquerda de Luís começa a rodar lentamente o manípulo do trinco. Empurra a porta que se abre sem ruído. Dentro da sala, uma voz masculina:
"(...) uma ideia do seu carácter. O caseiro de uma das suas propriedades..."

sábado, 14 de agosto de 2010

Gregor Samsa (6)

A 3ª Guerra Mundial
Gregor Samsa tinha lido que após uma guerra nuclear, os únicos sobreviventes seriam as baratas.
A cimeira EUA – URSS em Praga seria uma boa altura para começar. Em grande, com o assassinato simultâneo dos dois líderes...
O seu exército de pequenas carapaças negras já estava bem treinado...

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Gregor Samsa (5)

Teoria da evolução: adaptação ao meio
A alimentação foi inicialmente um problema, mas Gregor Samsa encontrou a solução de forma algo inesperada.
Quando aquele vizinho o encontrou na escada e começou a gritar histericamente, Gregor, em legítima defesa, atacou-o à dentada.
Os humanos podem ser muito irritantes, mas como fonte de proteínas não estão mal…

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Gregor Samsa (4)

Há que tentar sempre dar a volta por cima…
Uma vez passado o choque inicial, Gregor Samsa conformou-se e tentou ver o lado positivo da situação: É muito melhor ser uma barata gigante no reino das baratas do que um obscuro caixeiro-viajante, levando uma vida miserável no meio dos humanos…

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Gregor Samsa (3)

Sonhos…
A barata despertou do pesadelo com uma sensação de alívio…
Tinha sonhado que era um homem, um daqueles monstros que tentam pisá-la sempre que a encontram, atarefada nas suas andanças diárias. Lembrava-se que o monstro se chamava Gregor Samsa, e que estava angustiado porque pensava ser uma barata…

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Gregor Samsa (2)

Há situações em que ser pequeno pode ajudar...
Já transformado em barata, Gregor Samsa caiu no mesmo buraco onde Alice tinha caído noutra história.
Comeu da metade do cogumelo que fazia diminuir de tamanho e ficou realmente minúsculo…
A única consolação é que assim escapará mais facilmente às fúrias da Rainha de Copas…

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Gregor Samsa (1)

No mês passado, Sergio Vel Hartman lançou um pedido de textos com o máximo de 49 palavras, tendo como tema Gregor Samsa. Arranjei 5 (3+ 2) que lhe enviei e que ele teve a gentileza de traduzir para espanhol. Essas versões traduzidas apenas surgirão à luz quando o projecto em que se inserem aparecer. Mas os originais irão ser aqui divulgados, one by one
Vai hoje o primeiro.

O uno e o múltiplo
Gregor Samsa leu uma notícia que o intrigou sobre um Gregor Samsa que se tinha transformado numa barata.
“Curiosa coincidência”, pensou, e começou a sentir uma forte comichão nas costas, nas articulações, em todo o corpo…
A essa hora, um outro Gregor Samsa lia uma notícia…

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Uma hipótese que merece ser testada

Surpreende-me que entre a avalanche de comentários que têm dissecado o despacho do Freeport, nenhum comentador tenha sugerido a existência de efeitos relativísticos na percepção da passagem do tempo pelos senhores procuradores.
O teste desta hipótese envolveria meter os sujeitos da experiência num foguetão que seria acelerado até uma velocidade próxima da da luz e depois desacelerado, e quando saíssem do foguetão perguntar-lhes a data e a hora. Se para eles tivessem passado meia dúzia de horas enquanto na Terra tivessem decorrido, digamos, 6 anos, a hipótese estaria confirmada.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Notícias do futuro (1)

Obituário

Faleceu ontem, vítima de doença prolongada, o senhor Eleutério Silva, que era o único português vivo a saber de cor a tabuada da multiplicação até ao 9 X 9.
Por proposta da Fundação dos Amigos da Matemática, o Presidente da República irá atribuir a Eleutério Silva, a título póstumo, a medalha de mérito da Ordem da Instrução Pública.
O funeral realiza-se esta tarde para o Talhão dos Cientistas do cemitério do Alto de S. João. Às 18 horas, em todos os reality shows em exibição em todos os canais de televisão será observado um minuto de silêncio.
À família enlutada, a TêVêPub apresenta as mais sentidas condolências.

domingo, 1 de agosto de 2010

A Paradoxical Song

Numa vida paralela, participei durante 4 anos num projecto de investigação europeu intitulado Fire Paradox, sobre os múltiplos aspectos envolvidos no fogo florestal.
O projecto terminou em Fevereiro passado, e a reunião de encerramento teve lugar em Friburgo. No regresso, o atraso num voo de ligação, com as correspondentes horas para queimar no aeroporto, fizeram nascer o seguinte poema, talves porque ainda tinha nos ouvidos um fabuloso concerto de China Moses, a que assistimos numa das noites que passámos naquela cidade (estas reuniões também têm um lado social, queriam o quê?).
E assim, aqui fica a minha contribuição para a Silly Season em que já estamos mergulhados...


The Post-Paradox Blues

I was a Fire Paradox member
‘cause fire is very handsome
Then the end of February arised
And somethin’ strange come

It was nice to meet everybody
Walking, talking, ‘earing and show
Even go on the train uphill
To ‘ave a look at the beautiful snow

But this morning I feel sad
And why? I not ‘ave any clues
And the God of Fire came and said
Ma son, you’re feeling the Post-Paradox Blues…

The Post-Paradox Blues… Oh yeah…


Lirics by João Ventura (Feb 28, 2010)
Music yet to be composed…