sábado, 3 de abril de 2010

A floresta

A floresta era muito antiga. Diziam os mais velhos da aldeia que já os avós dos seus avós a tinham conhecido naquela colina. Diziam também que há muitos anos os magos nela se reuniam para a celebração dos seus rituais. E os habitantes da aldeia evitavam aproximar-se da floresta e muito menos atravessá-la.
Contava-se na aldeia que uma vez um lenhador tinha decidido ir lá cortar lenha e, segundo uns, não tinha voltado, segundo outros, tinha regressado enlouquecido, sem dizer coisa com coisa.

O "miúdo" não tinha nome. Era órfão – a mãe tinha morrido há anos e o vagabundo de olhos dourados que a tinha engravidado nunca mais fora visto na aldeia – e alimentava-se do que aparecia, do que lhe davam, ou do que roubava se não lhe davam.
O miúdo gostava da floresta. Sentia-se bem no meio das grandes árvores, por vezes dormia num espaço atapetado de folhas secas, entre duas grossas raizes e era como se as árvores lhe falassem durante o sono. Sentia que na floresta era benvindo, ao contrário da aldeia onde, sem ser agredido, era sempre tratado como algo de estranho.
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Alguns anos fluiram. O rapaz passara praticamente a viver na floresta. Subia aos ramos mais altos, passava de árvore em árvore, e já não precisava sonhar para ouvir a floresta; mesmo acordado já entendia os murmúrios que a percorriam.
Desde o último inverno, tinha havido mudanças. As árvores diziam-lhe que iriam partir em breve, mas o rapaz não percebia o que isso queria dizer.
O ano tinha sido caracterizado por uma actividade solar extrema, mas sobre isso o rapaz não sabia nada. Na noite do solstício, uma magnífica aurora boreal encheu de luzes coloridas o céu e o rapaz subiu ao topo da copa para apreciar, maravilhado, o espectáculo.
Foi quando começou a ouvir o ruído, a sentir a vibração. Parecia que as raízes das árvores se mexiam; desceu até aos ramos mais baixos, segurou-se bem e ficou, meio receoso, aguardando os acontecimentos.
Olhou para cima e o que viu deixou-o pasmado. Nos ramos superiores tinham começado a surgir umas bolhas, que cresciam. Cada vez que uma bolha tocava na bolha vizinha, fundia-se com ela formando uma bolha maior. Este processo continuou e a meio da noite cada árvore tinha um enorme balão envolvendo a parte superior da copa.
O ruído surdo na zona das raízes continuava, mas o rapaz teve medo de descer para ir ver do que se tratava e continuou sentado no mesmo ramo, enquanto o céu foi lentamente clareando, e a lua cheia descendo em direcção ao horizonte.
Quando os primeiros raios do sol nascente tocaram a floresta, deram início à última parte da rotina de propagação que desde há muitos séculos estava embebida no material genético daquela espécie. Os balões expandiram ainda mais, as forças de impulsão aumentaram e milímetro a milímetro, as árvores foram sendo puxadas para cima. Quanto mais soltas do solo iam ficando as raízes maior a velocidade de subida, e meia hora depois do nascer do sol todas as árvores flutuavam no ar, como uma gigantesca esquadrilha de dirígíveis.
O conjunto começou lentamente a dispersar. Cada árvore deslocava-se deixando-se levar pelo vento e corrigindo a trajectória utilizando jactos de gás que saíam de pequenos orifícios no tronco. Quando as raízes – que além de órgãos de fixação eram também sensores multi-banda de extrema sensibilidade – detectavam em baixo solo apropriado, uma chuva de sementes era projectada a grande velocidade, introduzindo-se no solo e dando início imediato ao processo que naquele local fará aparecer uma nova floresta.
O percurso da árvore que transportava o rapaz passou quase directamente por cima da aldeia. Todos os habitantes tinham saído das casas e olhavam o céu, com olhares mistos de incredulidade e temor.
Sentado num dos ramos, as mãos firmes segurando outros dois, o rapaz reconheceu muitos dos aldeões. Mas de uma forma um pouco confusa, e enquanto a sua árvore continuava a trajectória projectando de quando em quando sementes na direcção do solo, sentiu que a aldeia já era o passado; o seu futuro, esse estava no caminho das árvores voadoras.

5 comentários:

Pé na estrada disse...

Eh pá!!! E vai haver continuação deste conto? é que apetece mesmo!!!
Comentário técnico (é a isto que os ecólogos chamam de migração das árvores devido às alterações climáticas??) LOL

João Ventura disse...

Estava a ver que os florestais não apareciam a comentar! :)
"migração das árvores devido às alterações climáticas??"
Pode ser, mas por caminhos não previstos nos manuais de ecologia...
:P

Pé na estrada disse...

LOL!! Os florestais estão atentos, mas por vezes demoram a ter tempo para ler, ih ih ih
Pois imagino o manual de ecologia do "Odum" a relatar como as árvores de uma ou outra espécie consegue migrar, e, neste caso, até levanta vôo!!
Vá, fico à espera de continuação deste texto!!!!

T disse...

Gosto deste conceito de árvores voadoras:)
Prédios voadores não há?
Estou como a Conceição, aguardo pela continuação!

João Ventura disse...

O betão é mais complicado de pôr a voar... :( Recusa, amua, faz birras... enfim, não colabora!

:P