sexta-feira, 8 de maio de 2009

Amores trágicos (2)

O Arquitecto amava a cidade. Ela tinha nascido na sua cabeça; os primeiros esboços tinham surgido no monitor do seu computador; os planos de pormenor foram produzidos no seu atelier, e quando os primeiros edifícios começaram a romper dos alicerces entretanto abertos, o Arquitecto era visita frequente do gigantesco estaleiro onde milhares de operários trabalhavam 24 horas por dia, fazendo nascer a cidade que ele tinha imaginado.
Nos primeiros anos tinha sido um amor correspondido. Quando percorria as longas avenidas arborizadas, quando deambulava pelas praças cheias de sol, quando as pessoas se cruzavam com ele e o cumprimentavam afavelmente, ele sentia-se amado pela cidade.
Mas com o passar dos anos, começou a sentir que esse amor estava a deixar de ser correspondido. A profunda alteração de uma praça para alojar um descomunal hipermercado, o abate das árvores para instalar faixas de rodagem numa avenida outrora pedonal, algumas propostas suas sobre a gestão do espaço urbano rejeitadas no Conselho Municipal, críticas cada vez menos veladas nos meios de informação às suas concepções arquitectónicas e urbanistas...
Até que surgiu a gota que fez transbordar a taça: contra o seu parecer fundamentado, o Conselho Municipal tinha aprovado uma proposta de construção de uma nova urbanização periférica. O autor da proposta era desde há muito seu feroz opositor na Guilda dos Arquitectos, e a urbanização projectada em estilo neo-moderno iria ser esteticamente revoltante ao lado de uma cidade concebida e construída segundo os cânones do estilo medievo renovado.
O Arquitecto soube que tinha atingido o ponto de não retorno. A cidade, que tinha sido o amor da sua vida, tinha-o traído. Mas ele iria castigar essa traição.
Conhecia de cor as galerias técnicas que, como um sistema vascular, percorriam o subsolo da cidade, abaixo dos túneis de transporte rápido. Como chefe dos serviços de urbanismo, que ainda era, tinha também acesso ao paiol onde estavam guardados os explosivos de alta potência utilizados nas grandes obras de construção. Enquanto a nova urbanização ia sendo construída, ele foi pacientemente minando as fundações de todos os edifícios da sua cidade, começando pelos mais importantes, a sede do município, o grande salão de reuniões, a universidade, as escolas, o hospital...
E a meio da inauguração da nova urbanização, uma série de fortes explosões sacudiu a cidade. O colapso dos edifícios levantou uma enorme nuvem de poeira; e quando o pó assentou, sobre os escombros do que antes tinha sido a cidade ouviam-se as gargalhadas do Arquitecto, enlouquecido após assassinar a sua amada...

3 comentários:

Pé na estrada disse...

de génios e loucos todos temos um pouco.
Este texto até dava um argumento de uma curta metragem... fantástico como sempre!!
beijos

João Ventura disse...

Se conheceres um produtor interessado... só é preciso discutir os direitos de adaptação... :-)

Bjns

A OUTRA disse...

Belo texto que muito nos faz pensar.
Se os que "mandam" e os que querem mandar estivessem atentos a estes sentimentos, não fariam tanta "borrada".
Cada vez há mais amores tão trágicos como este.
Bom fim de semana
Maria