quinta-feira, 7 de maio de 2009

Amores trágicos (1)

Aquele biólogo amava as bactérias. Sentia uma atracção irresistível por aqueles pequeninos seres e pelo seu incessante movimento, que observava com prazer horas e horas ao microscópio, bem como a taxa exponencial com que se reproduziam.
Mesmo o facto de algumas delas serem letais para organismos mais complexos não atenuava o amor intenso que sentia por elas. Pelo contrário. Principalmente aquelas que se encontravam na solução cujo período de maturação tinha terminado havia pouco.
Despejou o conteúdo do reactor para um tubo de ensaio. Tinham sido meses de trabalho, partindo de bactérias de agressividade moderada, manipulando cuidadosamente os DNAs, eliminando sem remorsos todas as variantes inúteis para o fim em vista, até chegar àquela estirpe, a arma bacteriológica mais eficiente até então desenvolvida.
Amava-as profundamente, e só tinha pena que elas não pudessem corresponder a esse amor.
Olhou o tubo à transparência. Quem diria que naqueles poucos centímetros cúbicos de líquido residia a capacidade de aniquilar um exército. E eram suas filhas, tinham sido produzidas pelo seu trabalho, não iria deixar que lhas tirassem! Levou o tubo à boca e engoliu o líquido que continha até à última gota.

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Ficou 3 dias em isolamento total nos Cuidados Intensivos, e durante esse tempo as bactérias destruíram meticulosamente toda a sua rede nervosa, até atingirem o cérebro.
“O grau mais elevado do amor não correspondido é o sacrifício supremo”, foi o seu último pensamento, no momento em que a linha verde pulsatória no monitor à cabeceira passou subitamente a horizontal, e o alarme começou a tocar no gabinete do enfermeiro de serviço.

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“Entendamo-nos, doutor, é preciso ser um bocado anormal para trabalhar no desenvolvimento de armas bacteriológicas”, dizia o general director do laboratório ao chefe do Serviço de Patologia do hospital. “Mas o nosso biólogo passou-se das marcas... Calcule que se apaixonou pelas bactérias! Felizmente foi fácil recuperar todo o trabalho do computador dele. Nem sequer tinha password, calcule! Bem dizem que o amor é cego...”
E o general riu-se, um riso militar e satisfeito.


Este texto e o que se segue foram escritos para uma antologia de nome "Amores diferentes", a ser editada na Argentina pelo Sergio Vel Hartman, projecto que parece estar adormecido...

2 comentários:

Miguel Garcia disse...

Boa tarde João,

As tuas sempre boas micronarrativas desta vez sobre microbrios!
É uma pena que existam projectos que unem vários paises na literatura e que ficam à espera que o sol fique azul...

Abraço, Bom fim de semana

João Ventura disse...

Olá Miguel
O segundo parágrafo é para mim algo críptico. Podes elaborar mais?

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