sábado, 9 de junho de 2007

Em Maio de 2004, teve lugar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa o 1º Encontro Literário de Fantasia e Ficção Científica, que nos dois anos seguintes reencarnou como Fórum Fantástico. Convidado a participar pelo Rogério Ribeiro, preparei o texto que se segue , e para “ilustrar” a apresentação, fiz uns rabiscos nuns acetatos, alusivos às obras de Calvino, que fui projectando ao longo da conversa. Este trabalho foi publicado nas actas do Encontro e posteriormente no fanzine Dragão Quântico. A presente versão tem pequenas alterações em relação às duas anteriores. Também já li mais alguns livros de Calvino, mas não quis alterar demasiado o texto original...

Italo Calvino: Fantasia, ficção especulativa, slipstream... ou simplesmente literatura?

RESUMO (não é bem, mas podia ser...)
O cartógrafo que desenha mapas do mundo real usa como ferramenta principal uma caneta de ponta fina, porque as fronteiras entre os países, contestadas ou não, são linhas, que estabelecem um corte territorial, uma descontinuidade administrativa, política, por vezes cultural, mas (quase) sempre autoritária.
Quem pretendesse mapear o território literário, teria que usar um pincel e trabalhar sobre papel poroso, mais uma aguarela do que um desenho à pena, porque as fronteiras entre géneros são frequentemente mal definidas, difusas, por vezes reivindicadas por partidários dos dois (ou mais) géneros limítrofes, mas suficientemente amplas para que alguns autores consigam viver dentro delas.
E se numa noite de inverno um viajante iniciasse a travessia de uma dessas fronteiras, na sua caminhada entre duas cidades invisíveis, poderia seguir o atalho dos ninhos de aranha e entrando no bosque, olhando para cima, ter a sorte de avistar o barão trepador, ou mais adiante encontrar uma das metades do visconde cortado ao meio. Neste caso, deverá certificar-se de qual das metades se trata, pois isso poderá ter consequências no desenrolar da sua história pessoal.
Se pelo contrário o destino o fizer encontrar o cavaleiro inexistente – façanha desde logo notável – este poderá conduzi-lo ao castelo dos destinos cruzados, e talvez à porta esteja Italo Calvino que, sorrindo, lhe pegará no braço e o conduzirá numa visita guiada enquanto lhe conta como Palomar se perdeu em devaneios numa loja de queijos, o que poderá querer significar – mas isto está aberto à discussão – que a literatura (também) é para comer.

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Na segunda metade da década de 50, numa cidade do interior alentejano, um adolescente não encontrava muitas alternativas à leitura como ocupação das longas férias de Verão. Um vizinho meu, mais velho, tinha um conjunto razoável de volumes da colecção "O livro de bolso" da Portugália Editora, que me foi emprestando e que eu fui devorando. Foi assim que encontrei (ou que veio ter comigo) o primeiro livro de Italo Calvino: O Atalho dos Ninhos de Aranha.
Eu gostava dos filmes neo-realistas italianos, e a temática do livro "agarrou-me": além disso, a narrativa do ponto de vista de uma criança introduzia um certo grau de estranheza. Interessante...

O segundo encontro, mais ou menos na mesma altura, foi com O Visconde Cortado ao Meio. Esta parábola sobre o bem e o mal, uma espécie de Dr Jekill & Mr Hyde originados por um tiro de canhão na guerra entre a Áustria e a Turquia (1716), levou-me a dar mais um passo em direcção ao interior do universo de Calvino. Deste livro, a lembrança mais marcada é a piscadela de olho de Calvino à base maniqueísta do nosso pensar: as acções do "meio visconde bom" conseguem por vezes ter piores consequências do que as da metade má.


Após um muito, mas muito longo intervalo afastado desse universo, encontro O Cavaleiro Inexistente no quarto do meu filho, então a frequentar o 9º ano. Tinha-lhe sido emprestado por um colega. Pego nele por curiosidade, e o insólito da história toma conta de mim: aquela armadura vazia, mas ao mesmo tempo tão cheia das virtudes da cavalaria, do sentido do dever, do "politicamente correcto" medieval apresenta analogias com algumas pessoas com quem nos cruzamos no dia a dia, cascas sem miolo, pouco mais do que discursos ocos.


Mais um ou dois anos, e em Agosto, numa feira do livro no norte do país, surge à minha frente O Barão Trepador. Era o que me faltava ler para completar a trilogia Os Nossos Antepassados. Durante duas semanas, ao ritmo calmo das férias do Verão, fui acompanhando as deambulações de Cosimo, o primogénito de uma família nobre, saltando de árvore em árvore e organizando (humanizando) o ambiente arbóreo onde haveria de passar o resto da vida.


Noutra feira do livro, desta vez no átrio do Pavilhão Central do Instituto Superior Técnico, com saldos provenientes de diversas editoras, os meus passos dirigem-me para As Cidades Invisíveis sobre as quais já tinha lido e ouvido. As conversas entre Marco Polo e Kublai Kan levantam questões, fazem vibrar algumas fundações das nossas estruturas mentais, lembram-nos que a realidade que vemos é muitas vezes um cenário e que quando esse cenário é rasgado, o que aparece por detrás pode ser outro cenário... As cidades e a memória, as cidades e o desejo, as cidades e os sinais, as cidades subtis, as cidades e as trocas, as cidades e os olhos as cidades e o nome, as cidades e os mortos, as cidades e o céu, as cidades contínuas, as cidades ocultas: estas as classes que Italo Calvino usa para catalogar as cidades descritas por Marco Polo. Colocamo-nos na posição de Kublai Kan ou de Marco Polo? O primeiro tenta ver o que o outro observou e descreve, ou será que é o segundo que procura e acaba por encontrar aquilo que nasce na imaginação do primeiro?


Sobre este livro, escreveu Gore Vidal (The New York Review of Books): Of all tasks, describing the contents of a book is the most difficult and in the case of a marvellous invention like Invisible Cities, perfectly irrelevant.
Surge depois a colecção Mil Folhas do Público, e o seu número 11 é Se Numa Noite de Inverno Um Viajante, do qual nessa altura o Luís Rodrigues me fala muito bem. O próprio Calvino o define como um "romance sobre o prazer de ler". Comprado, começado, e capítulo a capítulo é um novo território que se desdobra, ou novos territórios, com códigos de leitura que vão forçosamente variando, num permanente desafio entre autor e leitor (e leitora!), como num jogo do gato e do rato.


Algum tempo mais tarde, na FNAC do Colombo, em Lisboa, encontro Palomar. Nova revelação: a forma como ele analisa e comenta a sua realidade quotidiana deveria ser utilizada como material de estudo em qualquer oficina de escrita criativa. O seio nu, A pantufa desirmanada ou O museu dos queijos são pequenos textos saborosos, mas que mantêm o sabor em sucessivas leituras.



Sobre O Castelo dos Destinos Cruzados não vou dizer nada porque é o que ando a ler neste momento.


E os percursos para encontrar Calvino (ou qualquer outro autor...) aumentaram exponencialmente com todos os caminhos e atalhos que têm sido abertos no ciberespaço. Uma pesquisa no Google com o nome “Italo Calvino” fornece material suficiente para semanas de leitura. E na preparação para esta palestra encontro na Web um fragmento de Cosmicómicas, ziliões de anos de evolução compactados e humor q. b., onde surgem personagens de nomes impronunciáveis, como o narrador, Qfyfq, que aposta obsessivamente com o seu amigo (k)yK sobre o desenvolvimento futuro do universo, desde o aparecimento dos átomos nos primeiros instantes às cotações da bolsa no século XX. O que li foi suficiente para incluir o título na minha wish list de livros, em permanente actualização.


A pluralidade de caminhos, a multiplicidade de leituras num universo ficcional riquíssimo leva a que qualquer esquema classificativo da obra de Italo Calvino se revele forçosamente redutor e esteja condenado ao insucesso.
Os “encontros” entre a minha trajectória de leitor e as obras de Italo Calvino irão certamente continuar no futuro ...

2 comentários:

Anónimo disse...

Belo texto! Calvino é um dos meus escritores preferidos, principalmente no livro "Se Numa Noite de Inverno Um Viajante".

De vez em quando visito este canto de escrita. Gosto muito.

Margarida Coelho (ex-aluna do IST)

P.S. Também me rendi à blogosfera. Pode encontrar-me em http://mouraaveirense.blogspot.com

João Ventura disse...

Bem vinda, Margarida!
Já passei pelo mouraaveirense, muito bonito.
Volta sempre.

Bjns

J.