segunda-feira, 26 de março de 2007

Todos diferentes, todos iguais...

Os quatro terrestres apreciavam a primeira saída da nave depois da longa viagem. Sergei Schmidt, germano-russo, o engenheiro de sistemas, filmava o mar em diversas gamas de frequência, pois estava intrigado com a fosforescência que por vezes aparecia na superficie líquida. Chegando ao topo da colina, avistaram a avenida que parecia ser um local de passeio muito apreciado pelos indígenas. Brigitta Eco, exo-bióloga, filha de pai sueco e mãe italiana, ajustou a viseira do capacete para o modo telescópico, observou uns momentos os arcturianos e exclamou:
— Vejam, que giras são as crias!
Joshua Makulela era o chefe da missão. O transmissor implantado no ouvido emitiu um estalido e ele passou a dar atenção às mensagens que o controlo da nave lhe começou a enviar, informações de rotina, confirmação da reunião no dia seguinte com o Conselho Octópode. Quando terminou a transmissão, começou a ouvir a conversa que Takuji Barbosa mantinha com Brigitta:
— (...) e antes de entrar para a universidade, os meus pais mandaram-me um ano para o Japão. Fiquei em casa do meu avô, que era pescador na ilha de Rishiri, próximo da ponta norte de Hokkaido, e fui com ele algumas vezes pescar lulas gigantes. Eram muito parecidas com estes polvos andantes, a pesca era trabalhosa, mas davam uns bifes muito gostosos. Será que estes...
O nipobrasileiro interrompeu a frase e soltou uma gargalhada, a olhar para a cara incomodada de Brigitta, que além do mais era vegetariana. O chefe sentiu-se na obrigação de intervir:
— Barbosa – o tratamento pelo apelido mostrava que não estava satisfeito – outro comentário politicamente incorrecto como esse e serei obrigado a registá-lo no diário de bordo!

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— Mamã, o que é aquilo? – perguntou o juvenil arcturiano, apontando com dois tentáculos de cor rosada, indicação clara do seu estádio ainda assexuado de evolução.
— Não se deve apontar – corrigiu a mãe, dirigindo uma das antenas de visão para a direcção indicada. Focando o olho multifacetado, observou o que tinha provocado o espanto do produto do seu ovo mais recente.
O filho mais velho, que se distraía saltitando sobre três tentáculos de cada vez, olhou e disse, exibindo os conhecimentos adquiridos numa aula de exobiologia:
— São bípedes. De onde virão, papá?
O pai arcturiano esclareceu a família.
— O “Notícias de Arcturus” falou deles. São de um planeta chamado Terra, que orbita uma estrela chamada Sol, na periferia da galáxia. Vieram em missão de contacto e não devem ser hostilizados.
— São bons para comer? – perguntou o filho, com o apêndice sugador a pulsar de antecipação.
— Não te ensinaram na escola que não se deve comer outras espécies inteligentes? – admoestou a mãe.
— Vamos continuar o nosso passeio – ordenou o pai, e a família prosseguiu a sua deslocação pela avenida marginal, cruzando-se com outros membros da sua espécie, que saudavam com um ritual função da hierarquia relativa, estabelecida pelo rigoroso (e muito complexo) protocolo arcturiano.
Os mais pequenos seguiam agora mais à frente, numa brincadeira em que o filho fingia que pretendia dar um nó em dois tentáculos do juvenil, que lhe escapava com guinchos de satisfação. E disse a mãe arcturiana:
— Não falei há pouco para não impressionar os miúdos, mas eles são tão... anormais, que até senti ondulações na epiderme. Imagina, apenas quatro tentáculos, e dois deles reservados para a locomoção!
Ao que o pai arcturiano retorquiu:
— Eu não sou xenófobo, mas acho mal que o Conselho Octópode autorize a entrada de alienígenas em zonas da cidade tradicionalmente reservadas ao lazer familiar!

2 comentários:

Artur Coelho disse...

Belíssimo conto sobre os paradoxos da normalidade forçada...

João Ventura disse...

Obrigado, Artur
:)