domingo, 4 de fevereiro de 2007

Eles...


(Espaço despido de adereços, neutro. António e Joaquim entram de lados opostos da cena.)


JOAQUIM
- Olá, António.

ANTÓNIO
- Viva, Joaquim. Como vão as coisas?

JOAQUIM
- Não te posso dizer, pá.

ANTÓNIO
- Não me podes dizer o quê?

JOAQUIM
- Não te posso dizer como vão as coisas se não me disseres antes a senha.

ANTÓNIO
- A senha? Qual senha?

JOAQUIM
- A senha que é preciso dizer para saber como vão as coisas.

ANTÓNIO
- Oh pá, este “como vão as coisas” era uma forma de expressão, assim como se diz “como vai isso”...

JOAQUIM
- Sim, sim. Eles avisaram-me sobre essas perguntas.

ANTÓNIO
- Eles? Eles quem?

JOAQUIM (como se não o tivesse ouvido)
- Sim, que às vezes havia perguntas que pareciam ingénuas, mas que eram capciosas, que tínhamos que estar atentos e vigilantes.

ANTÓNIO
- Mas eles quem?

JOAQUIM
- Não te posso dizer se não sabes a senha.

ANTÓNIO
- A senha, outra vez?

JOAQUIM
- Claro, a SENHA!

ANTÓNIO
- E como é que se obtém a senha?

JOAQUIM
- São eles que a dão.

ANTÓNIO
- Eles quem?

JOAQUIM
- Não te posso dizer porque não sabes a senha!

ANTÓNIO (fica calado uns segundos; depois, cauteloso...)
- São eles que mandam?

JOAQUIM
- Bem... Sim e não.

ANTÓNIO
- Sim e não...? O que é que isso quer dizer?

JOAQUIM (apontando vagamente para o fundo do palco)
- Bem, eles mandam, mas acima deles está... ELE.

ANTÓNIO
- Ele?

JOAQUIM
- ELE!!!

ANTÓNIO
- OK, OK, não te stresses... Então ELE é que manda?

JOAQUIM
- Claro!

ANTÓNIO (novamente cauteloso)
- E manda o quê?

JOAQUIM
- Ora, manda o que lhe apetecer...

JOAQUIM (mais afirmativo)
...mas sempre para o nosso bem!

ANTÓNIO
- Claro, com certeza. E não me podes dizer quem são eles?

JOAQUIM
- Nem penses! Se eles soubessem que eu tinha dito a alguém que não sabe a senha quem eles eram, eles castigavam-me.

ANTÓNIO
- Ai eles castigam?

JOAQUIM
- Claro, quando a gente não segue o Regulamento.

ANTÓNIO
- Regulamento? Que regulamento?

JOAQUIM
- Não te posso dizer porque

ANTÓNIO (interrompendo)
- Já sei, já sei! Porque não sei a senha.

JOAQUIM (sorrindo com satisfação)
- Vês como começas a perceber?

ANTÓNIO
- Sim, sim... Mas diz-me lá: e esse regulamento é assim... como...

JOAQUIM (um pouco enfadado)
- Ora, o Regulamento é um regulamento. Nunca viste um regulamento? Tem escrito o que tu podes e não podes fazer.

ANTÓNIO
- Tou a ver... e se eu quiser falar com eles, posso?

JOAQUIM
- Não, porque não sabes a senha.

( Olham um para o outro durante uns segundos)

JOAQUIM (em voz mais baixa, como se revelasse um segredo)
- São eles que falam contigo.

ANTÓNIO
- E como? Quando?

JOAQUIM
- Quando acharem que estás preparado.

ANTÓNIO
- Ah bom, então só tenho que esperar que eles me contactem.

JOAQUIM
- Sim, sim, eles sabem tudo, portanto vão descobrir quando tu estiveres preparado.

ANTÓNIO
- Bem, assim já fico mais descansado. Tchau, Joaquim, até qualquer dia.

JOAQUIM
- Tchau, António.

ANTÓNIO (sai de cena, enquanto comenta para a plateia)
- Sai-me cada um na rifa!

(Joaquim fica sozinho em palco. Certifica-se que António se foi embora, puxa do telemóvel, marca um número)

JOAQUIM
- Está? Serviço de contagem de pontos? É para dizer que fiz mais um contacto. Acho que se contactar mais dois já tenho direito ao bónus, não é? Obrigado.

(Desliga e passeia durante uns segundos, com ar satisfeito. Entra Alfredo)

JOAQUIM
- Olá, Alfredo.

ALFREDO
- Olá, Joaquim. Tás bom?

JOAQUIM
- Oh pá, não te posso dizer...

4 comentários:

Anónimo disse...

Deliciosamente maquiavélico. Adorei os tons de "Catch 22".

João Ventura disse...

Obrigado!
:))

Artur Coelho disse...

hmmm... acho que me aconteceu coisa semelhante aqui há dias quando fui tratar de um assunto... deliciosamente surreal.

João Ventura disse...

Então eras tu naquele sketch do "Gato": O papel / Qual papel? / O papel / etc
:)