Eles...
(Espaço despido de adereços, neutro. António e Joaquim entram de lados opostos da cena.)
JOAQUIM
- Olá, António.
ANTÓNIO
- Viva, Joaquim. Como vão as coisas?
JOAQUIM
- Não te posso dizer, pá.
ANTÓNIO
- Não me podes dizer o quê?
JOAQUIM
- Não te posso dizer como vão as coisas se não me disseres antes a senha.
ANTÓNIO
- A senha? Qual senha?
JOAQUIM
- A senha que é preciso dizer para saber como vão as coisas.
ANTÓNIO
- Oh pá, este “como vão as coisas” era uma forma de expressão, assim como se diz “como vai isso”...
JOAQUIM
- Sim, sim. Eles avisaram-me sobre essas perguntas.
ANTÓNIO
- Eles? Eles quem?
JOAQUIM (como se não o tivesse ouvido)
- Sim, que às vezes havia perguntas que pareciam ingénuas, mas que eram capciosas, que tínhamos que estar atentos e vigilantes.
ANTÓNIO
- Mas eles quem?
JOAQUIM
- Não te posso dizer se não sabes a senha.
ANTÓNIO
- A senha, outra vez?
JOAQUIM
- Claro, a SENHA!
ANTÓNIO
- E como é que se obtém a senha?
JOAQUIM
- São eles que a dão.
ANTÓNIO
- Eles quem?
JOAQUIM
- Não te posso dizer porque não sabes a senha!
ANTÓNIO (fica calado uns segundos; depois, cauteloso...)
- São eles que mandam?
JOAQUIM
- Bem... Sim e não.
ANTÓNIO
- Sim e não...? O que é que isso quer dizer?
JOAQUIM (apontando vagamente para o fundo do palco)
- Bem, eles mandam, mas acima deles está... ELE.
ANTÓNIO
- Ele?
JOAQUIM
- ELE!!!
ANTÓNIO
- OK, OK, não te stresses... Então ELE é que manda?
JOAQUIM
- Claro!
ANTÓNIO (novamente cauteloso)
- E manda o quê?
JOAQUIM
- Ora, manda o que lhe apetecer...
JOAQUIM (mais afirmativo)
...mas sempre para o nosso bem!
ANTÓNIO
- Claro, com certeza. E não me podes dizer quem são eles?
JOAQUIM
- Nem penses! Se eles soubessem que eu tinha dito a alguém que não sabe a senha quem eles eram, eles castigavam-me.
ANTÓNIO
- Ai eles castigam?
JOAQUIM
- Claro, quando a gente não segue o Regulamento.
ANTÓNIO
- Regulamento? Que regulamento?
JOAQUIM
- Não te posso dizer porque
ANTÓNIO (interrompendo)
- Já sei, já sei! Porque não sei a senha.
JOAQUIM (sorrindo com satisfação)
- Vês como começas a perceber?
ANTÓNIO
- Sim, sim... Mas diz-me lá: e esse regulamento é assim... como...
JOAQUIM (um pouco enfadado)
- Ora, o Regulamento é um regulamento. Nunca viste um regulamento? Tem escrito o que tu podes e não podes fazer.
ANTÓNIO
- Tou a ver... e se eu quiser falar com eles, posso?
JOAQUIM
- Não, porque não sabes a senha.
( Olham um para o outro durante uns segundos)
JOAQUIM (em voz mais baixa, como se revelasse um segredo)
- São eles que falam contigo.
ANTÓNIO
- E como? Quando?
JOAQUIM
- Quando acharem que estás preparado.
ANTÓNIO
- Ah bom, então só tenho que esperar que eles me contactem.
JOAQUIM
- Sim, sim, eles sabem tudo, portanto vão descobrir quando tu estiveres preparado.
ANTÓNIO
- Bem, assim já fico mais descansado. Tchau, Joaquim, até qualquer dia.
JOAQUIM
- Tchau, António.
ANTÓNIO (sai de cena, enquanto comenta para a plateia)
- Sai-me cada um na rifa!
(Joaquim fica sozinho em palco. Certifica-se que António se foi embora, puxa do telemóvel, marca um número)
JOAQUIM
- Está? Serviço de contagem de pontos? É para dizer que fiz mais um contacto. Acho que se contactar mais dois já tenho direito ao bónus, não é? Obrigado.
(Desliga e passeia durante uns segundos, com ar satisfeito. Entra Alfredo)
JOAQUIM
- Olá, Alfredo.
ALFREDO
- Olá, Joaquim. Tás bom?
JOAQUIM
- Oh pá, não te posso dizer...
4 comentários:
Deliciosamente maquiavélico. Adorei os tons de "Catch 22".
Obrigado!
:))
hmmm... acho que me aconteceu coisa semelhante aqui há dias quando fui tratar de um assunto... deliciosamente surreal.
Então eras tu naquele sketch do "Gato": O papel / Qual papel? / O papel / etc
:)
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