segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

Mais à distância de um click, desta vez "em estrangeiro"...

Uma versão em inglês ("Passing away") de um pequeno texto ("A Passagem") aqui postado em 31 de Janeiro deste ano foi publicada, juntamente com a versão original, no nº 232 de Bewildering Stories. De publicação semanal, esta revista electrónica apresenta "speculative fiction as well as non-fiction, namely poetry, articles, essays, reviews, and art".
Vale a pena visitar.

Tomei conhecimento da Bewildering Stories na lista planetasf, uma espécie de Torre de Babel do século XXI, começada a construir por Sergio Gaut vel Hartman a partir da Argentina...

Consciência tranquila

“Tenho a minha consciência tranquila, Senhor Doutor Juiz”, declarou o arguido.
“O arguido tem conhecimento de que o tribunal precisa de verificar a sua declaração. Queira exibir a sua consciência perante este tribunal”.
“Não a tenho comigo, Senhor Doutor Juiz. Deixo-a sempre em casa quando saio”.
“Mas o arguido sabe que a lei obriga qualquer cidadão a fazer-se acompanhar permanentemente da sua consciência”.
O arguido baixou a cabeça, numa assunção de culpa. O juiz emitiu um despacho aplicando ao arguido a coima prevista na lei por não se fazer acompanhar pela sua consciência e outro despacho a enviar um oficial de diligências à residência do arguido. A audiência foi suspensa aguardando cumprimento do segundo despacho.
Mais tarde, o relatório do oficial de diligências descreveria que, na sequência de busca efectuada à residência do arguido, os funcionários do tribunal tinham encontrado, num compartimento confortável mas fechado à chave, a consciência do arguido alimentada por via intravenosa, totalmente adormecida devido à administração maciça de tranquilizantes. O “cocktail” que lhe estava a ser administrado foi identificado pelo laboratório da Polícia como um poderoso anestesiante, refinado em laboratórios referenciados pela Interpol nas ilhas Cayman, Bahamas, Seychelles e zona franca da Madeira.
A análise efectuada mostrou vestígios de várias drogas com origem em tráfico de influências, vírgulas mal colocadas em despachos governamentais, coordenadas das rotas do comércio de armas e fraudes em operações financeiras em diversas bolsas um pouco por todo o mundo, tudo misturado com um forte agente branqueador.
Os cuidados de saúde à consciência do arguido eram prestados continuamente por uma equipa de jovens ucranianas, trabalhando por turnos, sem recibo, profissionais de enfermagem no seu país de origem mas presentemente trabalhadoras no “Luzes da Noite”, conhecido bar de alterne de propriedade do arguido.
Perante esta evidência recolhida, o juiz ordenou o internamento da consciência do arguido na unidade de cuidados intensivos do Hospital Central, devendo ser mantida sob vigilância e protecção policial, e o processo foi suspenso até à sua recuperação, para que possa ser citada como testemunha.

domingo, 4 de fevereiro de 2007

Eles...


(Espaço despido de adereços, neutro. António e Joaquim entram de lados opostos da cena.)


JOAQUIM
- Olá, António.

ANTÓNIO
- Viva, Joaquim. Como vão as coisas?

JOAQUIM
- Não te posso dizer, pá.

ANTÓNIO
- Não me podes dizer o quê?

JOAQUIM
- Não te posso dizer como vão as coisas se não me disseres antes a senha.

ANTÓNIO
- A senha? Qual senha?

JOAQUIM
- A senha que é preciso dizer para saber como vão as coisas.

ANTÓNIO
- Oh pá, este “como vão as coisas” era uma forma de expressão, assim como se diz “como vai isso”...

JOAQUIM
- Sim, sim. Eles avisaram-me sobre essas perguntas.

ANTÓNIO
- Eles? Eles quem?

JOAQUIM (como se não o tivesse ouvido)
- Sim, que às vezes havia perguntas que pareciam ingénuas, mas que eram capciosas, que tínhamos que estar atentos e vigilantes.

ANTÓNIO
- Mas eles quem?

JOAQUIM
- Não te posso dizer se não sabes a senha.

ANTÓNIO
- A senha, outra vez?

JOAQUIM
- Claro, a SENHA!

ANTÓNIO
- E como é que se obtém a senha?

JOAQUIM
- São eles que a dão.

ANTÓNIO
- Eles quem?

JOAQUIM
- Não te posso dizer porque não sabes a senha!

ANTÓNIO (fica calado uns segundos; depois, cauteloso...)
- São eles que mandam?

JOAQUIM
- Bem... Sim e não.

ANTÓNIO
- Sim e não...? O que é que isso quer dizer?

JOAQUIM (apontando vagamente para o fundo do palco)
- Bem, eles mandam, mas acima deles está... ELE.

ANTÓNIO
- Ele?

JOAQUIM
- ELE!!!

ANTÓNIO
- OK, OK, não te stresses... Então ELE é que manda?

JOAQUIM
- Claro!

ANTÓNIO (novamente cauteloso)
- E manda o quê?

JOAQUIM
- Ora, manda o que lhe apetecer...

JOAQUIM (mais afirmativo)
...mas sempre para o nosso bem!

ANTÓNIO
- Claro, com certeza. E não me podes dizer quem são eles?

JOAQUIM
- Nem penses! Se eles soubessem que eu tinha dito a alguém que não sabe a senha quem eles eram, eles castigavam-me.

ANTÓNIO
- Ai eles castigam?

JOAQUIM
- Claro, quando a gente não segue o Regulamento.

ANTÓNIO
- Regulamento? Que regulamento?

JOAQUIM
- Não te posso dizer porque

ANTÓNIO (interrompendo)
- Já sei, já sei! Porque não sei a senha.

JOAQUIM (sorrindo com satisfação)
- Vês como começas a perceber?

ANTÓNIO
- Sim, sim... Mas diz-me lá: e esse regulamento é assim... como...

JOAQUIM (um pouco enfadado)
- Ora, o Regulamento é um regulamento. Nunca viste um regulamento? Tem escrito o que tu podes e não podes fazer.

ANTÓNIO
- Tou a ver... e se eu quiser falar com eles, posso?

JOAQUIM
- Não, porque não sabes a senha.

( Olham um para o outro durante uns segundos)

JOAQUIM (em voz mais baixa, como se revelasse um segredo)
- São eles que falam contigo.

ANTÓNIO
- E como? Quando?

JOAQUIM
- Quando acharem que estás preparado.

ANTÓNIO
- Ah bom, então só tenho que esperar que eles me contactem.

JOAQUIM
- Sim, sim, eles sabem tudo, portanto vão descobrir quando tu estiveres preparado.

ANTÓNIO
- Bem, assim já fico mais descansado. Tchau, Joaquim, até qualquer dia.

JOAQUIM
- Tchau, António.

ANTÓNIO (sai de cena, enquanto comenta para a plateia)
- Sai-me cada um na rifa!

(Joaquim fica sozinho em palco. Certifica-se que António se foi embora, puxa do telemóvel, marca um número)

JOAQUIM
- Está? Serviço de contagem de pontos? É para dizer que fiz mais um contacto. Acho que se contactar mais dois já tenho direito ao bónus, não é? Obrigado.

(Desliga e passeia durante uns segundos, com ar satisfeito. Entra Alfredo)

JOAQUIM
- Olá, Alfredo.

ALFREDO
- Olá, Joaquim. Tás bom?

JOAQUIM
- Oh pá, não te posso dizer...