A Mina das Palavras
Às oito é a mudança de turno. Os trabalhadores que saem passam pelas cabines de inspecção onde são submetidos ao Teste de Chomsky-Jakobson, que essencialmente consiste na recitação de frases padrão para detecção de palavras escondidas. Alguém que seja apanhado a contrabandear palavras é submetido à
inibição. Ficar 3 meses sem conseguir falar e a comunicar apenas por gestos é um castigo bem duro, mas o pior é a marginalização, não raro violenta, que a sociedade pratica contra os traficantes de palavras. Quem for apanhado segunda vez… não se sabe qual a pena, porque ninguém foi apanhado segunda vez.
Desde há muito se conhece o poder das palavras. O homem lembra-se de ouvir o seu avô - que foi mineiro toda a vida e que o criou após a morte prematura dos seus pais - dizer mais que uma vez,
quem controla as palavras, controla tudo. Toda a fileira das palavras é um monopólio do Estado. A mineração, as operações de processamento intermédio, a embalagem, a distribuição, a venda final.
Qualquer cidadão, quando inquirido, tem de demonstrar que está autorizado a usar o vocabulário que possui. A PdP - Polícia das Palavras - é a entidade com poderes para deter, interrogar, castigar ou eliminar alguém que tenha um comportamento desviante em relação às palavras.
O homem, cuja identificação é M2067, uma cara inexpressiva no meio de muitas outras - passar despercebido é uma arte que se aprende - desce no elevador que leva os mineiros desde a entrada até ao nível -6, o mais profundo em exploração. O homem tem um segredo, é ventríloquo, o que lhe permite pronunciar palavras enquanto tem outras alojadas nas cordas vocais.
Nunca deixes que ninguém descubra este teu dom, nem digas a ninguém que o tens, era o aviso diário do avô. Se esta sua característica, que o torna num perfeito contrabandista de palavras, fosse conhecida das autoridades, M2067 (apenas 67 para os companheiros de turno) seria sumariamente anulado e o seu corpo enviado para as câmaras de reciclagem. Por isso ele é em extremo cauteloso e procura sempre apagar-se no meio dos seus camaradas mineiros.
Em certos sectores da mina, à mistura com palavras triviais tendem a aparecer em grande quantidade palavras relacionadas com um tema comum. M2067 esteve há algumas semanas a trabalhar na galeria 129, com um filão de teor muito elevado em palavras como “empreendedor”, “mercados”, “ajustamento”, “ambição”, “empréstimo”, “austeridade” e outras do mesmo tipo. Soube por um dos funcionários administrativos da mina que há países grandes compradores desta classe de palavras.
Enquanto caminha, 67 vai repassando o mapa da mina na sua cabeça. Embora nunca o dê a entender, ele conhece a mina melhor que os engenheiros que dirigem a exploração. As horas passadas com o avô a memorizar localizações de poços e galerias foram extremamente valiosas; o velhote tinha trabalhado na mina uma vida inteira e seria capaz, se fosse necessário, de percorrê-la de olhos fechados.
Tens de encontrar a galeria dourada, dizia-lhe muitas vezes, e a forma como o dizia levava o homem a pensar que aí estaria a solução para mudar, não sabe bem o quê, porque não tem palavras para o definir.
À equipa de que faz parte foi hoje atribuída uma galeria com palavras pouco valiosas: preposições, artigos, palavras com uma sílaba, duas sílabas, raras com três sílabas. Apesar do seu baixo valor, são estas palavras que que formam a base da conversa corrente, pelo que há que extraí-las constantemente. É abundante o veio destas palavras baratas, e os homens vão enchendo vagonetas de palavras que são empurradas até ao monta-cargas que as transporta para à superfície, onde são submetidas à lavagem e seguidamente à triagem, onde são separadas por categorias, embaladas e enviadas para a distribuição.
Enquanto vai fazendo o seu trabalho, 67 está sempre atento a palavras valiosas que por vezes aparecem incrustadas em aglomerados de palavras quase sem valor. Foi quase por acaso que há dois anos descobriu a palavra “irrevogável”. Conseguiu escondê-la, contrabandeá-la para fora da mina e vendê-la a uma rede especializada em “exportação”. Disse-lhe mais tarde o seu contacto na rede que tinha sido vendida a um político estrangeiro.
É a meia-hora para almoço e os homens espalham-se e sentam-se ou deitam-se para descansar um pouco, comendo qualquer coisa das lancheiras que trouxeram. M2067 desloca-se para uma zona menos iluminada e quando vê que ninguém está a olhar afasta-se rapidamente, em direcção a uma entrada de galeria bloqueada por onde passaram antes de chegar à face onde estão agora a trabalhar. Ele sabe que uma entrada bloqueada significa que do outro lado há palavras que a direcção da mina decidiu não extrair. Pode ser simplesmente um filão esgotado.
67 examina o cadeado que prende a corrente para ver se será fácil forçá-lo, quando na sua cabeça ressoa um dos conselhos do avô, procura nos sítios menos óbvios. Recua, passeia o feixe de luz da lâmpada a toda a volta e há uma zona na parede oposta da galeria que atrai a sua atenção, umas partículas de poeira que dançam no foco da lâmpada, aproxima-se e sente uma corrente de ar que sai de uma fenda debaixo de uma pedra saliente. O homem hesita um momento, tira o ferro que traz entalado no cinto e começa a picar por baixo da pedra. O material da parede é friável e com poucos minutos de escavação obtém uma abertura suficiente para rastejar através dela. Do outro lado é uma galeria, não tão larga como as que estão em exploração, onde tem que haver largura para os carris das vagonetas. Antes de prosseguir por essa galeria, o homem tapa a abertura por onde entrou, de modo a torná-la não detectável a quem passar do outro lado.
A galeria prolonga-se por algumas dezenas de metros, que o homem percorre, devagar, explorando com a luz da lâmpada à sua volta à medida que vai progredindo. De súbito a galeria desemboca numa câmara bastante mais vasta, e o mineiro fica extasiado com o que vê. Há veios riquíssimos que percorrem as paredes, e são palavras que o homem nunca encontrou, mas que sabe instintivamente que são palavras importantes, porque ao serem pronunciadas é como se abrissem janelas na sua mente: “liberdade”, “justiça”, “igualdade”, “solidariedade”, “democracia”, “fraternidade”. Esta só pode ser a Galeria Dourada de que o avô lhe falava, e estas palavras que estão ali à espera de serem extraídas e usadas ele terá que as passar a outros. E ganha subitamente a consciência que, a partir de agora, esse será o objectivo da sua vida.