quarta-feira, 13 de julho de 2016

3 MICROCONTOS SOBRE O CANTO E A VOZ

Límpida como cristal


Era uma soprano extraordinária. Corriam várias histórias a seu respeito, havia quem assegurasse ter estado presente num recital em que a sua voz tinha feito um copo de cristal vibrar até se ter estilhaçado. Mas a maior parte colocava essas histórias na categoria “mitos urbanos”.

Em 2045, foi naturalmente convidada para o concerto comemorativo dos nove séculos decorridos desde o início da construção da catedral de Chartres. O templo tinha sofrido obras de restauro, e a pedra das paredes e colunas levara um tratamento superficial destinado, segundo os engenheiros de som autores do projecto, a melhorar o balanço entre o som absorvido e reflectido em todo o interior.

Teve início a Missa pro vocem angelorum e a assistência aguardava, expectante, o início do solo da soprano. Começou piano, e foi ganhando intensidade enquanto o coro ia diminuindo. Quando atingiu o fortissimo as mais de 150 janelas da catedral entraram em ressonância e numa fracção de segundo os vitrais do século XIII caíam estilhaçados no chão de pedra da catedral. Nem um escapou!


A Voz


No princípio era a Voz. A Voz primordial era simples, pouco mais que uma vibração, mas nela pulsava o universo. E durante milhões de anos foi o único som. Quando a Voz encontrou as pedras e as plantas, umas e outras reagiram à Voz e assim nasceram as vozes.

Depois apareceram os animais, com vozes que se moviam, e as vozes estáticas das pedras e das plantas foram lentamente desaparecendo.

Surgiu o homem e a sua voz foi evoluindo desde os gritos dos caçadores/recolectores até às canções de Schubert e às óperas de Verdi.

A Voz primitiva, que há milhões de anos tinha adormecido, acordou. E não gostou das vozes que ouvia. E apagou-as. E durante muito tempo só se ouvia a pulsação da Voz.

E quando a Voz adormeceu de novo, ficou só o silêncio. Ensurdecedor.

O solista da Cantata


O coro abrilhantava todas as cerimónias litúrgicas que tinham lugar na velha igreja do mosteiro. O irmão Bonifácio era um dos solistas, juntamente com os irmãos Torcato e Salvador, e o irmão Francisco, que dirigia o coro, andava há três semanas a ensaiar a famosa cantata atribuída a um dos fundadores do mosteiro, para ser incluída na missa do dia do santo padroeiro. Nenhum dos solistas se atrevia a perguntar ao irmão Francisco – conhecido pelo seu feitio difícil – quem iria cantar os solos.

O irmão Bonifácio queria desesperadamente ser o solista naquele dia, entre outras razões porque o Bispo viria presidir à cerimónia. E arquitectou um plano para que isso acontecesse. Não era um plano totalmente benévolo, mas nada que uma confissão bem feita não pudesse lavar.

Como trabalhava na farmácia do mosteiro, os seus conhecimentos sobre ervas medicinais e os seus efeitos eram superiores à média. Fez um preparado com várias ervas que misturou disfarçadamente na comida do irmão Salvador. No dia seguinte o pobre monge tinha a pele coberta de borbulhagem e o abade, receoso de que fosse algo contagioso, fez transferir Salvador para uma enfermaria reservada aos casos clínicos mais graves.

Quanto ao irmão Torcato, uma infusão misturada na sua malga do chá provocou-lhe um tremendo ataque de disenteria que levava o monge a correr periodicamente em direcção às latrinas.

Com o caminho livre, Bonifácio esmerou-se na preparação da cantata, queria ter a certeza que a cantaria o melhor possível.

E no entanto, “O homem põe e Deus dispõe”. Na madrugada do dia marcado uma violenta tempestade assolou a região. A carruagem onde viajava o Bispo ficou atolada na lama a pouco mais de uma légua do mosteiro, e várias árvores arrancadas pelo vento bloquearam diversas estradas, tornando as deslocações na região extremamente difíceis. Mesmo na cidade, a chuva forte e o vento impediram a grande maioria dos fiéis de se deslocarem à igreja. E o irmão Bonifácio cantou os solos para uma assistência constituída pelo sacristão, duas velhotas que moravam numa casa a poucos metros da igreja e dois ou três mendigos que tinham procurado o abrigo da igreja para fugir à intempérie.