Benvindo ao nosso hotel...
O site A Irmandade, referido no post anterior, lançou um desafio para contos até 3000 palavras, inspirados pela imagem abaixo. Segue-se a minha contribuição.Benvindo ao nosso hotel…
O terapeuta de casas estava no parque da cidade, sentado num banco, à minha espera.
- Pedi-lhe para nos encontrarmos aqui para podermos conversar à vontade, longe de qualquer das IAs do seu hotel. Elas são muito solidárias… Vou também precisar de gravar esta conversa, como informação de base para o meu trabalho.
Perante o meu sinal de concordância, prendeu um botão na lapela do meu casaco e disse:
- Conte-me então o que se passou…
- Como certamente sabe, em hotéis como o nosso, o cliente quando faz uma reserva envia o seu perfil, que inclui todo o tipo de preferências, coisas que gosta e não gosta, de forma que a IA do quarto consiga satisfazer qualquer desejo seu, ainda que apenas sugerido.
O terapeuta manteve-se calado, e continuei:
- Começámos a perceber que se passava algo de estranho quando o quarto 35 serviu a um hóspede um uísque com água lisa natural, quando no perfil do cliente estava bem explícito que bebia sempre com duas pedras de gelo e água gaseificada. O cliente foi simpático, aceitou as nossas desculpas e não accionou a cláusula de indemnização, mas sofremos um susto e tanto, e ficámos de olho naquele quarto…
- Mas depois desse registámos outros incidentes: um desvio superior a 5 ºC na temperatura da água do banho no quarto 15, um roupão de banho vermelho quando o cliente gostava de verde no quarto 72, um pequeno-almoço com bacon para um cliente vegetariano no quarto 28, álcool servido a um cliente muçulmano no quarto 53… Neste caso tivemos mesmo que pagar a indemnização!
- A última aconteceu hoje de manhã. Os espelhos nas casas de banho não são verdadeiros espelhos, mas existe uma câmara através da qual a IA capta a imagem do hóspede, que é processada, sendo depois afixada no ecrã. O hóspede do quarto 81, quando olhou para o espelho, viu uma cara que não era a sua. Imagine o pandemónio! O cliente saiu do hotel numa fúria, ameaçando que ia direito ao seu advogado para nos pôr um processo!
Tive que parar um pouco, porque ainda sentia nos ouvidos os berros do cliente.
- Como gerente do hotel preciso de resolver esta situação rapidamente. A divisa do nosso hotel é “Se não se sentir totalmente como em casa, somos nós que lhe pagamos!”. Está a ver que este estado de coisas é insustentável!
- Muito bem. Vou pedir à minha secretária que reserve esse quarto para mim. Vou aparecer esta tarde no seu hotel.
E com isto o terapeuta levantou-se do banco e afastou-se. Regressei ao hotel, preocupado.
------- X --------
Tentei fazer com que o check-in do terapeuta fosse como o de qualquer outro cliente. Subi com ele até ao quarto 81 e entrámos. Ele ligou uma Tablet que trazia e arrancou com o que me pareceu um programa de diagnóstico da IA.
Os seus dedos deslizavam velozmente na placa, e o quarto pareceu começar a reagir, com flutuações no nível da iluminação, e um zumbido surdo que cresceu em contínuo, depois baixou, e finalmente estabilizou num padrão pulsatório.
O terapeuta abanou a cabeça de modo afirmativo.
- A primeira parte já está! Neutralizei as barreiras de protecção e desliguei os sensores. Já podemos falar à vontade. Agora vamos sondar mais em profundidade…
Entrou na casa de banho e em frente do espelho, começou de novo a usar a Tablet. O espelho mostrou um rosto.
- Foi o último cliente que utilizou o quarto – informei eu.
A face foi substituída por outra, e essa por outra, e assim sucessivamente, mas cada rosto que aparecia vinha deformado, alguns de forma totalmente grotesca, de modo que a sucessão de rostos fazia lembrar uma galeria de monstros. Um assobio cada vez mais agudo ia acompanhando a sequência de imagens. Subitamente o som parou, e o ecrã ficou coberto por um mosaico, sendo cada pequeno elemento um dos rostos previamente mostrados.
Então do centro começou a alastrar a imagem de uma nova face, que foi crescendo até ocupar quase toda a superfície. Um rosto anguloso, os olhos fixos, deixando ver através de uma semi-transparência o mosaico sobre o qual tinha crescido.
- Este é o homem que a treinou. Está sempre localizado na camada mais profunda, é a primeira face que encontram quando são activadas – explicou o terapeuta. Parou uns segundos, deslizou os dedos na Tablet e continuou:
- Ficou catatónica. Já não é possível recuperá-la. Terá de ser enviada para eutanásia.
Sentia-me como se me tivessem batido!
- Mas isto aconteceu por quê? E logo no meu hotel…
- Isto é mais frequente do que se julga. Estas IAs foram desenvolvidas para casas familiares, onde elas se identificam com os habitantes da casa. Mas aqui estão sempre a mudar de habitante, isso causa-lhes muitas vezes problemas nos algoritmos de identificação e nos circuitos de empatia…
- Há algum tempo fiz terapia profunda a uma IA de hotel cujos sintomas eram semelhantes aos desta. O fabricante queria saber o que se passava para eventualmente alterar os protocolos e procedimentos de fabrico. Quando explorava uma das camadas mais profundas ela teve um desabafo violento: “Este trabalho no hotel faz-me sentir uma prostituta!”.
- Mas o que é que se pode fazer?
- Aconselho a fechar o hotel durante uns dias, alegadamente para obras. Todas as IAs têm de ser recondicionadas. A minha experiência diz-me que quando surgem problemas em dois ou três quartos isto assume características virais e propaga-se rapidamente a todos os outros…
Suspirei fundo, e senti saudades do tempo em que comecei a trabalhar, há já uns quantos anos, em que nos hotéis os hóspedes eram atendidos por pessoas…