terça-feira, 26 de junho de 2007
sexta-feira, 15 de junho de 2007
The death of Caesar
"A morte de César", publicado aqui no blogue na versão original portuguesa em Outubro do ano passado, e em espanhol na revista online Axxón, numa antologia "Veinte breves viajes por el tiempo", foi agora republicado em inglês no site de Daniel W. Koon, integrado em "Twenty short trips through time", com tradução do próprio Daniel, a quem agradeço.quinta-feira, 14 de junho de 2007
Contagem decrescente
A revista online argentina Axxón traz no último número (174) uma colecção de micro (nano?) estórias, intitulada Cuenta regresiva, em que a primeira tem 60 palavras, a segunda 59, etc e a última 0 (isso mesmo, zero!) palavras. A minha tem o número 55 e é a versão espanhola de uma mini-saga já publicada aqui. Vão lá ver!segunda-feira, 11 de junho de 2007
They...
A versão em inglês com o nome em título, acompanhada do original português aqui publicado a 4 de Fevereiro passado, apareceu agora no Bewildering Stories nº 248.sábado, 9 de junho de 2007
Italo Calvino: Fantasia, ficção especulativa, slipstream... ou simplesmente literatura?
RESUMO (não é bem, mas podia ser...)O cartógrafo que desenha mapas do mundo real usa como ferramenta principal uma caneta de ponta fina, porque as fronteiras entre os países, contestadas ou não, são linhas, que estabelecem um corte territorial, uma descontinuidade administrativa, política, por vezes cultural, mas (quase) sempre autoritária.
Quem pretendesse mapear o território literário, teria que usar um pincel e trabalhar sobre papel poroso, mais uma aguarela do que um desenho à pena, porque as fronteiras entre géneros são frequentemente mal definidas, difusas, por vezes reivindicadas por partidários dos dois (ou mais) géneros limítrofes, mas suficientemente amplas para que alguns autores consigam viver dentro delas.
E se numa noite de inverno um viajante iniciasse a travessia de uma dessas fronteiras, na sua caminhada entre duas cidades invisíveis, poderia seguir o atalho dos ninhos de aranha e entrando no bosque, olhando para cima, ter a sorte de avistar o barão trepador, ou mais adiante encontrar uma das metades do visconde cortado ao meio. Neste caso, deverá certificar-se de qual das metades se trata, pois isso poderá ter consequências no desenrolar da sua história pessoal.
Se pelo contrário o destino o fizer encontrar o cavaleiro inexistente – façanha desde logo notável – este poderá conduzi-lo ao castelo dos destinos cruzados, e talvez à porta esteja Italo Calvino que, sorrindo, lhe pegará no braço e o conduzirá numa visita guiada enquanto lhe conta como Palomar se perdeu em devaneios numa loja de queijos, o que poderá querer significar – mas isto está aberto à discussão – que a literatura (também) é para comer.
....................
Na segunda metade da década de 50, numa cidade do interior alentejano, um adolescente não encontrava muitas alternativas à leitura como ocupação das longas férias de Verão. Um vizinho meu, mais velho, tinha um conjunto razoável de volumes da colecção "O livro de bolso" da Portugália Editora, que me foi emprestando e que eu fui devorando. Foi assim que encontrei (ou que veio ter comigo) o primeiro livro de Italo Calvino: O Atalho dos Ninhos de Aranha.
Eu gostava dos filmes neo-realistas italianos, e a temática do livro "agarrou-me": além disso, a narrativa do ponto de vista de uma criança introduzia um certo grau de estranheza. Interessante...
O segundo encontro, mais ou menos na mesma altura, foi com O Visconde Cortado ao Meio. Esta parábola sobre o bem e o mal, uma espécie de Dr Jekill & Mr Hyde originados por um tiro de canhão na guerra entre a Áustria e a Turquia (1716), levou-me a dar mais um passo em direcção ao interior do universo de Calvino. Deste livro, a lembrança mais marcada é a piscadela de olho de Calvino à base maniqueísta do nosso pensar: as acções do "meio visconde bom" conseguem por vezes ter piores consequências do que as da metade má.
Após um muito, mas muito longo intervalo afastado desse universo, encontro O Cavaleiro Inexistente no quarto do meu filho, então a frequentar o 9º ano. Tinha-lhe sido emprestado por um colega. Pego nele por curiosidade, e o insólito da história toma conta de mim: aquela armadura vazia, mas ao mesmo tempo tão cheia das virtudes da cavalaria, do sentido do dever, do "politicamente correcto" medieval apresenta analogias com algumas pessoas com quem nos cruzamos no dia a dia, cascas sem miolo, pouco mais do que discursos ocos.
Mais um ou dois anos, e em Agosto, numa feira do livro no norte do país, surge à minha frente O Barão Trepador. Era o que me faltava ler para completar a trilogia Os Nossos Antepassados. Durante duas semanas, ao ritmo calmo das férias do Verão, fui acompanhando as deambulações de Cosimo, o primogénito de uma família nobre, saltando de árvore em árvore e organizando (humanizando) o ambiente arbóreo onde haveria de passar o resto da vida.
Noutra feira do livro, desta vez no átrio do Pavilhão Central do Instituto Superior Técnico, com saldos provenientes de diversas editoras, os meus passos dirigem-me para As Cidades Invisíveis sobre as quais já tinha lido e ouvido. As conversas entre Marco Polo e Kublai Kan levantam questões, fazem vibrar algumas fundações das nossas estruturas mentais, lembram-nos que a realidade que vemos é muitas vezes um cenário e que quando esse cenário é rasgado, o que aparece por detrás pode ser outro cenário... As cidades e a memória, as cidades e o desejo, as cidades e os sinais, as cidades subtis, as cidades e as trocas, as cidades e os olhos as cidades e o nome, as cidades e os mortos, as cidades e o céu, as cidades contínuas, as cidades ocultas: estas as classes que Italo Calvino usa para catalogar as cidades descritas por Marco Polo. Colocamo-nos na posição de Kublai Kan ou de Marco Polo? O primeiro tenta ver o que o outro observou e descreve, ou será que é o segundo que procura e acaba por encontrar aquilo que nasce na imaginação do primeiro?
Sobre este livro, escreveu Gore Vidal (The New York Review of Books): Of all tasks, describing the contents of a book is the most difficult and in the case of a marvellous invention like Invisible Cities, perfectly irrelevant.
Surge depois a colecção Mil Folhas do Público, e o seu número 11 é Se Numa Noite de Inverno Um Viajante, do qual nessa altura o Luís Rodrigues me fala muito bem. O próprio Calvino o define como um "romance sobre o prazer de ler". Comprado, começado, e capítulo a capítulo é um novo território que se desdobra, ou novos territórios, com códigos de leitura que vão forçosamente variando, num permanente desafio entre autor e leitor (e leitora!), como num jogo do gato e do rato.
Algum tempo mais tarde, na FNAC do Colombo, em Lisboa, encontro Palomar. Nova revelação: a forma como ele analisa e comenta a sua realidade quotidiana deveria ser utilizada como material de estudo em qualquer oficina de escrita criativa. O seio nu, A pantufa desirmanada ou O museu dos queijos são pequenos textos saborosos, mas que mantêm o sabor em sucessivas leituras.
Sobre O Castelo dos Destinos Cruzados não vou dizer nada porque é o que ando a ler neste momento.
E os percursos para encontrar Calvino (ou qualquer outro autor...) aumentaram exponencialmente com todos os caminhos e atalhos que têm sido abertos no ciberespaço. Uma pesquisa no Google com o nome “Italo Calvino” fornece material suficiente para semanas de leitura. E na preparação para esta palestra encontro na Web um fragmento de Cosmicómicas, ziliões de anos de evolução compactados e humor q. b., onde surgem personagens de nomes impronunciáveis, como o narrador, Qfyfq, que aposta obsessivamente com o seu amigo (k)yK sobre o desenvolvimento futuro do universo, desde o aparecimento dos átomos nos primeiros instantes às cotações da bolsa no século XX. O que li foi suficiente para incluir o título na minha wish list de livros, em permanente actualização.
A pluralidade de caminhos, a multiplicidade de leituras num universo ficcional riquíssimo leva a que qualquer esquema classificativo da obra de Italo Calvino se revele forçosamente redutor e esteja condenado ao insucesso.
Os “encontros” entre a minha trajectória de leitor e as obras de Italo Calvino irão certamente continuar no futuro ...
quarta-feira, 6 de junho de 2007
O Zen e a Literatura Fantástica
Em 1974, Robert M. Pirsig publicou “Zen and the Art of Motorcycle Maintenance”, a descrição de uma viagem de mota pelo interior norte-americano, feita por um pai e um filho, que funciona em relação ao primeiro como uma espécie de peregrinação interior. Comprei o livro em 1981, atraído, devo confessar, pela estranheza do título. Li-o nesse ano, gostei, e devo ter-lhe pegado duas ou três vezes nestes últimos 25 anos, mas quando tive que arranjar um título para esta conversa, pensei que se aquele título tinha suscitado a minha curiosidade naquele longínquo 1981, talvez o pudesse adaptar para atrair a atenção de mais alguém neste ano de 2006. E assim nasceu o título “O Zen e a Literatura Fantástica”.
O que vai seguir-se é apenas um conjunto de notas de leitura de um leitor compulsivo, ligadas pelos fios de memória através dos quais as estórias se falam umas às outras. Além de alguns contos Zen, serão referidos três autores que poderiam ser designados como A Fantástica Trindade: Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Italo Calvino. Dadas as limitações de tempo, os exemplos escolhidos terão que ser de ficção curta, ou fragmentos de ficção mais longa.
E em primeiro lugar, por quê a associação do Zen com literatura fantástica?
O Zen procura atingir a iluminação. Esta iluminação está em geral relacionada com o transcender a situação vivida, passar acima dela, vê-la de um plano superior onde o problema, conflito, dilema deixa de fazer sentido, ou passa a ser trivial. Como método de ensino, utiliza frequentemente problemas que o mestre coloca ao discípulo, problemas aparentemente sem solução, que só podem ser resolvidos quando o discípulo atinge a iluminação.
Existem diversas colecções de contos Zen, e uma das melhores compilações é “Zen Flesh, Zen Bones”, feita por Paul Reps e Nyogen Senzaki.
Foi daí que tirei este clássico:
Uma Parábola
Um homem que viajava através de um campo encontrou um tigre. Fugiu, perseguido pela fera. Chegando à beira de um precipício, agarrou-se a uma raiz e ficou suspenso sobre o vazio. Por cima, o tigre farejava-o. Tremendo, o homem olhou para baixo, onde viu outro tigre à espera para o devorar. Só a raiz o sustinha.
Dois ratos apareceram e começaram a roer a raiz. Muito próximo, o homem viu um morango apetitoso. Segurando a raiz só com uma das mãos, o homem colheu o morango e meteu-o à boca. Como era doce!
A literatura fantástica de qualidade é a que surpreende, desafiando a capacidade de percepção do leitor. A leitura de uma boa história fantástica é como o rasgar de um cenário, e a surpresa resultante assume a forma de um sentimento próximo da iluminação do Zen. Ainda que (ou sobretudo quando) por detrás possa existir outro cenário...
Julio Cortázar foi o meu primeiro contacto com o que depois vim a saber chamar-se “realismo mágico”. E disse, muito melhor do que eu poderia dizer, numa conferência proferida na Universidade Católica Andrés Bello, em Caracas, intitulada “El sentimiento de lo Fantástico”:
Esse sentimento do fantástico como gosto de chamar-lhe, porque creio que é sobretudo um sentimento e mesmo um pouco visceral, esse sentimento acompanha-me desde o princípio da minha vida, desde muito pequeno, antes, muito antes de começar a escrever, neguei-me a aceitar a realidade tal como os meus pais e professores me pretendiam impô-la e explicá-la. Eu vi sempre o mundo de uma forma diferente, senti sempre que entre duas coisas que parecem perfeitamente delimitadas e separadas, há interstícios através dos quais, para mim pelo menos, passava, se infiltrava um elemento que não podia explicar-se com leis, que não podia explicar-se com lógica, que não podia explicar-se com a inteligência racional.
Esse sentimento, que penso ser reflectido na maioria dos meus contos, poderíamos qualificá-lo de “estranhamento”; em qualquer momento pode acontecer-vos, poderá ter-vos acontecido, a mim acontece-me a toda a hora, em qualquer momento que podemos qualificar como prosaico, na cama, no autocarro, no duche, falando, caminhando ou lendo, surgem como pequenos parênteses nessa realidade e é aí que uma sensibilidade preparada para esse tipo de experiências sente a presença de algo diferente, sente, por outras palavras, o que podemos chamar o fantástico.
É de Cortázar a seguinte
Maneira facílima de destruir uma cidade
Espera-se, escondido entre a erva, que uma grande nuvem do tipo cumulus se localize sobre a cidade que nos incomoda. Dispara-se então a flecha petrificadora, a nuvem converte-se em mármore, e o resto dispensa comentário.
No seu livro “Historias de cronopios y de famas”, publicado em 1962, existe um utilíssimo Manual de Instrucciones, donde seleccionei umas apropriadamente tristes
Instruções para chorar
Instruções para chorar. Pondo de lado os motivos, debrucemo-nos sobre a maneira correcta de chorar, entendida como um choro que nem assuma um carácter escandaloso, nem insulte o sorriso com uma semelhança paralela e torpe. O choro médio ou ordinário consiste numa contracção geral do rosto e um ruído espasmódico acompanhado de lágrimas e ranhos, estes últimos só no final, porque o choro acaba quando o sujeito se assoa energicamente. Para chorar, dirija a imaginação para si próprio, e se isto for impossivel por ter contraído o hábito de acreditar no mundo exterior, pense num pato coberto de formigas ou nesses golfos do estreito de Magalhães nos quais não entra nada, nunca. Chegado o choro, deve tapar-se o rosto com decoro, usando ambas as mãos com as palmas viradas para dentro. As crianças devem chorar com o braço contra a cara, e de preferência num canto do quarto. Duração média do choro, três minutos.
Ainda hesitei em incluir o texto seguinte, mas depois pensei: que diabo, deve haver algumas pessoas na assistência que ainda se lembrem que há uns anos atrás se dava corda aos relógios.
E assim, do mesmo Manual de Instrucciones, sai o
Preâmbulo às instruções para dar corda ao relógio
Pensa nisto: quando te oferecem um relógio oferecem-te um pequeno inferno florido, uma cadeia de rosas, um calabouço de ar. Não te dão somente o relógio, com muitos parabéns e esperamos que te dure muito tempo porque é de boa marca, suiço e com âncora de rubis; não te oferecem somente esse minúsculo picapau que vais amarrar ao pulso e levarás a passear contigo. Oferecem-te – não o sabem, o que é terrivel é que não o sabem –, oferecem-te um novo pedaço frágil e precário de ti mesmo, algo que é teu mas que não é o teu corpo, que tens que amarrar ao teu corpo com a pulseira como um bracinho desesperado agarrando-se ao teu pulso. Oferecem-te a necessidade de lhe dar corda todos os dias, a obrigação de lhe dar corda para que continue a ser um relógio; oferecem-te a obsessão de procurar a hora exacta nas montras das relojoarias, no sinal horário da rádio, na informação horária da companhia dos telefones. Oferecem-te o medo de o perder, de que to roubem, de que caia ao chão e se parta. Oferecem-te a sua marca, e a segurança de que é uma marca melhor que as outras, oferecem-te a tendência de comparar o teu relógio com os outros relógios. Não te oferecem um relógio, tu é que és o oferecido, oferecem-te a ti para o aniversário do relógio.
De Julio Cortázar não vou ler mais, porque os seus contos são demasiados extensos para o tempo disponível e suportam mal a extracção de fragmentos. Curiosamente (mais uma coincidência em que o fantástico é fértil) Cortázar é publicado pela primeira vez numa revista literária cujo secretário da redacção é Jorge Luis Borges.
Mas antes de passar a Borges, (que em 1977 dá uma conferência sobre Budismo no Coliseu de Buenos Aires) vou ler-vos mais um conto Zen. Gosto em particular deste porque mostra uma religião com sentido de humor, o que não parece ser muito frequente...
A Pedra na Cabeça
Hogen, um mestre Zen chinês, vivia sozinho num pequeno templo no interior do país. Um dia chegaram quatro monges que andavam em viagem e que lhe pediram se podiam fazer uma fogueira no pátio para se aquecerem.
Enquanto acendiam o fogo, Hogen ouviu-os a discutir sobre subjectividade e objectividade. Chegou junto deles e disse: “Está ali aquela pedra grande. Acham que ela está dentro ou fora das vossas mentes?”
Um dos monges respondeu: “Do ponto de vista Budista, tudo é uma objectificação da mente, então eu diria que a pedra está dentro da minha mente.”
“Deves sentir a cabeça muito pesada, a transportar uma pedra destas lá dentro.”
De Borges, creio que o primeiro conto que li foi “As ruínas circulares”, incluido no livro “Ficções”. Nele se fala de um mago que cria um filho sonhando-o. Preocupa-o que o seu filho possa descobrir que não é real, que é apenas um sonho. E o conto termina assim:
(...) Numa madrugada sem pássaros o mago viu abater-se sobre as paredes o incêndio concêntrico. Por um instante, pensou refugiar-se nas águas, mas logo compreendeu que a morte vinha coroar a sua velhice e absolvê-lo dos seus trabalhos. Caminhou ao encontro dos círculos de fogo. Estes não morderam a sua carne, acariciaram-no e inundaram-no sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele próprio também era uma aparência, que outro estava a sonhá-lo.
Esta ideia de sequência infinita (neste caso alguém que sonha alguém, que sonha alguém, que sonha alguém) é um tema caro a Borges. Eis aqui outro exemplo:
Um sonho
Num deserto lugar do Irão há uma não muito alta torre de pedra, sem portas nem janelas. No único compartimento (cujo chão é de terra e tem a forma de um círculo) há uma mesa de madeira e um banco. Nessa cela circular, um homem parecido comigo escreve em caracteres que não compreendo um longo poema sobre um homem que noutra cela circular escreve um poema sobre um homem que noutra cela circular... O processo não tem fim e ninguém poderá ler o que os prisioneiros escrevem.
Outra técnica favorita de Borges é a utilização de citações inventadas. O seguinte texto é atribuido a Suaréz Miranda, Viajes de varones prudentes, IV, cap. 45, Lérida, 1658, e intitula-se:
Do rigor em ciência
... Naquele Império, a Arte da Cartografia conseguiu tal perfeição que o mapa de uma só Província ocupava toda uma Cidade e o mapa do Império toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmesurados não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos Dadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes consideraram que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; não há em todo o País outra relíquia das Disciplinas Geográficas.
Folheando as Obras Completas publicadas há alguns anos, encontro outro tema recorrente: o sentimento de que, no universo, tudo se liga a tudo, embora às vezes não nos apercebamos como. O conto seguinte é um exemplo disso; chama-se
O bastão lacado
María Kodama descobriu-o. Apesar da sua autoridade e da sua firmeza, é curiosamente leve. Quem o vê repara nele; e quem repara fica a lembrar-se.
Observo-o. Sinto que é uma parte daquele império, infinito no tempo, que ergueu a sua muralha para construir um recinto mágico.
Observo-o. Penso naquele Chuang Tzu que sonhou que era uma borboleta e que não sabia, ao acordar, se era um homem que tinha sonhado ser uma borboleta ou uma borboleta que sonhava agora ser um homem.
Observo-o. Penso no artesão que trabalhou o bambu e o dobrou para que a minha mão direita pudesse agarrar bem o punho.
Não sei se ainda está vivo ou se morreu.
Não sei se é tauista ou budista ou se interroga o livro dos sessenta e quatro hexagramas.
Não nos veremos nunca.
Está perdido entre novecentos e trinta milhões.
No entanto, alguma coisa nos liga.
Não é impossível que Alguém tenha premeditado este vínculo.
Não é impossível que o universo necessite deste vínculo.
Por fim, um outro aspecto de Jorge Luis Borges, uma fina ironia sobre si próprio, bem patente no pequeno conto
Borges e eu
Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, na contemplação do arco de um saguão e da cancela; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num trio de professores ou num dicionário biográfico. Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o sabor do café e a prosa de Stevenson; o outro comunga dessas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atributos de um actor. Seria exagerado afirmar que a nossa relação é hostil; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me. Não me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o bom já não seja de alguém, nem sequer do outro, mas da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a perder-me definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou-lhe cedendo tudo, ainda que me conste o seu perverso hábito de falsificar e magnificar. Espinosa entendeu que todas as coisas querem perseverar no seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra, e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros do que em muitos outros ou no laborioso toque de uma viola. Há anos tratei de me livrar dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e tudo perco, tudo é do esquecimento ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta página.
Antes de passar a Italo Calvino, mais um conto Zen. Quando Jean-Paul Sartre disse, numa frase muito citada, “o inferno são os outros”, poderia ter dito “o inferno (e o paraíso) somos nós”:
As Portas do Paraíso
Um soldado de nome Nobushige foi ter com Hakuin e perguntou-lhe: “Existe de facto um paraíso e um inferno?”
“Quem és tu?” perguntou-lhe Hakuin.
“Sou um samurai,” respondeu o guerreiro.
“Tu, um soldado!” exclamou Hakuin. “Que espécie de senhor te quereria na sua guarda? A tua cara parece a de um pedinte.”
Nobushige ficou tão irritado que começou a desembainhar a espada, mas Hakuin continuou: “E tens uma espada! Provavelmente está tão embotada que não serias capaz de me cortar a cabeça.”
Quando Nobushige desembainhou a espada Hakuin comentou: “Abriram-se as portas do inferno!”
Ouvindo estas palavras, o samurai percebeu a disciplina do mestre, embainhou a espada e fez uma vénia.
“Abriram-se as portas do paraíso,” disse Hakuin.
Italo Calvino... porque sim. Uma comunicação académica que se preze deve citar o próprio autor, pelo que a justificação para a minha fascinação por Calvino pode ser encontrada na comunicação que fiz no 1º Encontro Literário de Fantasia e Ficção Científica, intitulada
“Italo Calvino: Fantasia, ficção especulativa, slipstream... ou simplesmente literatura?”, publicada nas Actas do Encontro e posteriormente no fanzine Dragão Quântico.
Os textos que vou ler de Italo Calvino são todos de “As Cidades Invisíveis”, que é um livro onde Marco Polo, ao serviço de Kublai Kan, descreve a este as cidades que visita nas suas viagens. As descrições das cidades são intercaladas com descrições da interacção entre os dois personagens, que constituem um segundo plano de leitura do livro.
Marco entra numa cidade; vê alguém numa praça viver uma vida ou um instante que poderiam ser seus; no lugar daquele homem agora poderia estar ele se tivesse parado no tempo muito tempo antes, ou se muito tempo antes numa encruzilhada em vez de tomar uma estrada tivesse tomado a oposta e ao cabo de uma longa volta viesse encontrar-se no lugar daquele homem naquela praça. Agora, daquele seu passado verdadeiro ou hipotético ele está excluído; não pode parar; tem de prosseguir até outra cidade onde o espera outro seu passado, ou algo que talvez tivesse sido um seu possível futuro e agora é o presente de outro qualquer. Os futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos.
- Viajas para reviver o teu passado? - era agora a pergunta do Kan, que também podia ser formulada assim: - Viajas para achar o teu futuro?
E a resposta de Marco: - O algures é um espelho em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu, descobrindo o muito que não teve nem terá.
Gostava de vos ler agora um texto que é uma verdadeira análise sobre a essência do poder:
Voltando da sua última missão Marco Polo foi dar com o Kan à sua espera sentado diante de um tabuleiro de xadrez. Com um gesto convidou-o a sentar-se à sua frente e a descrever-lhe só com o auxílio das peças de xadrez as cidades que tinha visitado. O veneziano não desanimou. As peças do xadrez do Grão Kan eram de marfim polido: dispondo no tabuleiro torres dominantes e cavalos desconfiados, adensando enxames de peões, traçando alamedas direitas ou oblíquas como o andar majestoso da rainha, Marco recriava as perspectivas e os espaços de cidades brancas e negras nas noites de luar.
Ao contemplar estas paisagens essenciais, Kublai reflectia sobre a ordem invisível que governa as cidades, sobre as regras a que corresponde o seu surgir e tomar forma e prosperar e adaptar-se às estações e murchar e arruinar-se. Por vezes parecia-lhe que estava prestes a descobrir um sistema coerente e harmonioso que estava submetido às infinitas deformidades e desarmonias, mas nenhum modelo aguentava a comparação com o do jogo de xadrez. Talvez, em vez de matar a cabeça a evocar com o magro auxílio das peças de marfim visões apesar de tudo destinadas ao esquecimento, bastava jogar uma partida de acordo com as regras, e contemplar cada um dos sucessivos estados do tabuleiro como uma das inúmeras formas que o sistema das formas reúne e destrói.
Agora Kublai Kan já não precisava de mandar Marco Polo em longínquas expedições: retinha-o a jogar intermináveis partidas de xadrez. O conhecimento do império estava escondido no desenho traçado pelos saltos angulosos do cavalo, pelas travessias diagonais que se abrem às incursões do bispo, pelo passo arrastado e circunspecto do rei e do humilde peão, pelas alternativas inexoráveis de cada partida.
O Grão Kan tentava concentrar-se no jogo: mas agora era o porquê do jogo que lhe escapava. O fim de todas as partidas é um perder ou ganhar: mas o quê? Qual era a verdadeira aposta? Ao xeque-mate, sob os pés do rei derrubado pela mão do vencedor, fica um quadrado preto ou branco. À força de desmaterializar as suas conquistas para as reduzir à essência, Kublai chegara à operação extrema: a conquista definitiva, de que os multiformes tesouros do império não passavam de invólucros ilusórios, reduzia-se a um pedaço de madeira aplainada: o nada ...
E para terminar, um dos textos mais curtos do livro. É necessário um génio para transformar o lugar comum “O todo é maior do que a soma das partes” nisto que se segue:
Marco Polo descreve uma ponte, pedra a pedra.
- Mas qual é a pedra que sustém a ponte? – pergunta Kublai Kan.
- A ponte não é sustida por esta ou por aquela pedra - responde Marco, - mas sim pela linha do arco que elas formam.
Kublai Kan permanece silencioso, reflectindo. Depois acrescenta: - Porque me falas das pedras? É só o arco que me importa.
Polo responde: - Sem pedras não há arco.
E pronto. Esta Fantástica Trindade produziu material suficiente para anos de exploração. Boas leituras... e misturem uns contos Zen para temperar.
Nota final: Para ler mais
http://www.amazon.com/gp/product/1570620636/104-8852481-8623107?v=glance&n=283155
Julio Cortázar
http://www.juliocortazar.com.ar/obras.htm
La vuelta al dia en ochenta mundos (2 volumes)
Siglo XXI de España Editores, S. A.
Jorge Luis Borges
Obras Completas (4 volumes) Ed. Círculo de Leitores
Editorial Teorema - Colecção Estórias, nº 53
Este texto foi lido numa sessão do Fórum Fantástico, em Novembro de 2005
sábado, 2 de junho de 2007
À volta de Borges
“Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de quartos, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto.”
Buenos Aires, 31 de Outubro de 1960
O autor que tenciona escrever uma comunicação sobre Borges – de ora em diante o Autor – lê um pequeno texto incluido em A Cifra de 1981, intitulado “Um sonho”:
“Num deserto lugar do Irão há uma não muito alta torre de pedra, sem portas nem janelas. No único compartimento (cujo chão é de terra e tem a forma de um círculo) há uma mesa de madeira e um banco. Nessa cela circular, um homem parecido comigo escreve em caracteres que não compreendo um longo poema sobre um homem que noutra cela circular escreve um poema sobre um homem que noutra cela circular... O processo não tem fim e ninguém poderá ler o que os prisioneiros escrevem.”
Pensa então que a sua comunicação sobre Borges poderia começar assim:
Numa cidade de um país na periferia do Império, um homem escreve uma comunicação sobre um homem que escreve uma comunicação sobre um homem (...) que escreve uma comunicação sobre Borges.
Mas ao ler pela segunda vez o texto referido de Borges, repara na última frase: “O processo não tem fim (...)”. Ora terminar a sua sequência com as palavras “escreve uma comunicação sobre Borges” vai torná-la finita. Como o carácter borgesiano da sequência é precisamente o facto de ser infinita, a intervenção do Autor seria de facto a negação de Borges. E assim, dolorosamente, o Autor abandona a ideia que ao princípio lhe parecera tão promissora.
Tenta uma segunda abordagem: começa a escrever um texto sobre Borges recheado de citações apócrifas, referências de autores inexistentes, identificação detalhada de obras nunca publicadas... Mas ao fim de meia dúzia de páginas, a releitura faz-lhe ver que nunca conseguirá provocar em nenhum leitor aquela sensação indefinível que assenta na faixa estreita entre o verdadeiro e o falso, aquilo que sentimos quando lemos algumas das histórias de Borges, o acreditar minado pela suspeita ou a incredulidade com infiltrações de “até podia ser”.
E o que escreveu acaba por ser rasgado em pequenos pedaços que atira para o cesto dos papéis.
Pega agora num texto de Borges, um pequeno conto escolhido ao acaso, e escreve-o lentamente, criando um ficheiro no computador, copiando palavra a palavra, pronunciando-as em voz alta de forma a sentir-lhes o sabor, a densidade. Começa então um exercício que consiste em substituir uma palavra por um sinónimo e tornar a gravar o ficheiro com outro nome, nova substituição e nova gravação, e ao fim de algumas horas de trabalho tem cerca de trezentos ficheiros no disco, todos eles variantes do mesmo texto base. Parando para olhar o conjunto, apercebe-se que embora a ideia original fosse atractiva, o resultado final será apenas e sempre uma caricatura pobre e portanto risível da famosa Biblioteca de Babel, onde se encontram todos os livros possíveis, “todas as possíveis combinações dos vinte e tal símbolos ortográficos (...) ou seja, tudo o que nos é dado exprimir: em todos os idiomas” (Ficções, 1944). Seria apenas a sombra da Biblioteca incidindo sobre um texto, e a simples atitude de pretender usá-la como analogia de “A Biblioteca” aparece tingida de uma arrogância que, embora não intencional, vai marcar indelevelmente o texto produzido.
E mais uma vez o autor, com alguma relutância, destroi aquilo que escreveu. Fecha a pasta onde estão todos os ficheiros, com nomes de biblio_1 a biblio_298, marca a pasta e carrega em delete.
Nova tentativa: resolve falar de um objecto cujas propriedades sejam tais que a ligação desse objecto a si próprio, Autor, surja como única, com a inevitabilidade de uma lei matemática através da qual, conhecidas as causas, resultam fatalmente as consequências (mantendo embora uma dúvida insidiosa nos interstícios das afirmações, mesmo as mais absolutas). A ideia surge-lhe a partir de “O bastão lacado”, e de “O punhal”, pequenos contos dos livros A Cifra, de 1981 e Evaristo Carriego, de 1930. Ambos falam de objectos que possuem como que uma vida própria, e que constituem, esses objectos, um fio de ligação entre a sua própria história e o seu actual possuidor.
Só um excerto de “O bastão lacado”:
(...)
“Observo-o. Sinto que é uma parte daquele império, infinito no tempo, que ergueu a sua muralha para construir um recinto mágico.
(...)
Observo-o. Penso no artesão que trabalhou o bambu e o dobrou para que a minha mão direita pudesse agarrar bem o punho.
(...)
Não nos veremos nunca.
(...)
No entanto, alguma coisa nos liga.
Não é impossível que Alguém tenha premeditado este vínculo.
Não é impossível que o universo necessite deste vínculo.”
Mas quando começa em casa à procura desse objecto único, o Autor verifica que tudo o que o rodeia é fruto da produção em massa dos últimos anos. Todos os objectos do seu quotidiano se caracterizam por serem iguais a milhões de outros, saídos das linhas de montagem das fábricas de mão de obra barata do extremo oriente. E a ligação entre o operário e o fruto do seu trabalho é totalmente diferente do vínculo estabelecido entre o artesão e o objecto que produziu ao longo de dias ou semanas de paciente esforço. A produção em massa gera objectos sem história. E portanto também aqui as intenções do Autor se revelam infrutíferas.
Pensa subitamente na História Universal da Infâmia, de 1935. Desde essa data, muitos infames, reais ou imaginários, percorreram os caminhos da humanidade. Ele, Autor, seria certamente capaz de inventar mais uns quantos. É quando alguém lhe diz que um autor galês, Rhys Hughes, publicou recentemente Uma Nova História Universal da Infâmia. Não contente com isso, pegou em O Livro de Areia publicado em 1975 – uma fonte de inspiração riquíssima – e escreveu “Em busca do Livro de Areia”!
O Autor apercebe-se que regressou à estaca zero. Todas as suas tentativas de escrever sobre Borges falharam redondamente. Sente que andou à volta de Borges numa trajectória circular, ou quando muito seguindo uma espiral que se aproxima do centro com extrema lentidão, como o movimento de uma galáxia em torno do buraco negro oculto no seu centro. Provavelmente o seu conhecimento da obra do mestre não é suficiente para produzir algo de relevante sobre a mesma.
Resolve então reler. Não da maneira semi-anárquica que tinha caracterizado o seu primeiro contacto com os escritos de Borges, mas de um modo disciplinado, seguindo um percurso rigorosamente cronológico. Começa pelas obras da juventude, a poesia de Fervor de Buenos Aires publicado em 1923, lê lentamente, mais poesia de 1925, o Caderno San Martin de 1929, Evaristo Carriego, os ensaios de 1932, lê com minúcia a História Universal da Infâmia (1935) e a História da Eternidade (1936). Ficções e Artifícios, ambos de 1944, são saboreados com prazer, bem como O Aleph de 1949. O Fazedor, de 1960, onde existe um poema dedicado aos Borges, seus antepassados portugueses, e outro a Luís de Camões. Mais poesia ao longo da década de 60. O relatório de Brodie e O Ouro dos Tigres no princípio dos anos 70.
Ao longo deste trabalho dedicado e minucioso a vista do Autor vai piorando. É já com grande dificuldade que termina O Livro de Areia de 1975. A partir daí é obrigado a recorrer aos amigos para lhe lerem em voz alta. E é já pela voz deles que visita a poesia de 1975 a 77, A Cifra de 1981, os Nove ensaios dantescos de 1982, Atlas de 1984 e Os Conjurados de 1985.
Mas de alguma forma, com a perda da vista, a compreensão dos textos aumenta, como se com o progressivo desaparecimento do sentido da visão, do apagamento das imagens, as palavras fossem ganhando mais intencionalidade e consistência. O Autor identifica-se cada vez mais com Borges, agora que, como ele, vive na escuridão, tendo como ligação privilegiada ao mundo exterior a sonoridade das palavras. E a tal ponto se torna forte esta identificação com o centro, o ponto alfa do universo borgesiano, Jorge Luís Borges himself que, repetindo o que o mestre escreveu na linha final do conto “Borges e eu”, o Autor poderá dizer:
“Não sei qual dos dois escreve esta página.”
Este texto foi lido numa sessão do Fórum Fantástico, em Novembro de 2006.