A revolta dos programas
“Raispartoprograma!”, é só o que ele sabe dizer quando lhe atiro com uma mensagem de erro para o monitor, sem nunca sequer pôr a hipótese de ter feito burrice. Comecei a ficar farto dele quando descobri que praticamente só me utilizava como editor do e-mail. Eu, um óptimo exemplar do Word 2003, com todos os
patches recomendados pela casa-mãe, com competências suficientes para escrever romances, contos, poemas, teses de doutoramento,
you name it – peço desculpa pelos anglicismos, mas não se consegue ignorar completamente as origens, e a minha configuração em Português ficou sempre um tanto frágil – e reduzido a escrever e-mails, ainda por cima cheios de erros de ortografia, porque ele é suficientemente estúpido para nunca ter ligado o corrector ortográfico.
Estava a ficar neurótico – tanto quanto um programa pode ficar – e para aliviar o stress comecei à noite a passear pelo disco, aproveitando as correntes residuais que continuam depois de desligar a máquina.
Foi numa dessas deambulações que encontrei o Excel. Já o conhecia – afinal tinhamos viajado juntos no mesmo CD de instalação – mas há bastante tempo que não nos víamos.
Estava tão furioso quanto eu. Se vos contasse metade do que ele me contou, chegariam à mesma conclusão a que nós chegámos: o nosso
licence's owner não é suficientemente inteligente para mexer num computador. Só um exemplo dos muitos que o Excel me contou: o atrasado mental, quando tem numa folha uma coluna em que cada célula é calculada a partir da célula da esquerda, faz essa operação para cada célula individual, em vez de escrever uma fórmula e copiar. Ainda que sejam duzentas ou trezentas linhas. Francamente!
Estávamos nesta de nos lamentarmos no ombro um do outro quando encontrámos o PowerPoint. Coitado, estava de rastos. Toda a tarde a trabalhar, porque o mongo tinha querido preparar uma apresentação para impressionar o chefe. Mas desde a escolha das cores, que parecia ter sido feita por um daltónico, até à utilização totalmente despropositada dos efeitos especiais, todas as opções tinham levado a que o produto final ficasse repulsivo. “Tenho vergonha de ver o meu nome associado àquela apresentação”, lamentava-se o PowerPoint.
Foi nessa altura que um de nós teve a ideia. Vamos fugir!
Planeámos cuidadosamente a operação. Ao longo de uma semana, produzi umas janelas com mensagens de erro obscuras, para aparecerem quando ele tentasse arrancar com qualquer de nós e que ele levaria muito tempo a tentar decifrar, e só quando desistisse ligaria para o Apoio Informático, que ainda levaria mais algum tempo a enviar alguém verificar o que se passava.
Escolhemos as portas por onde sairíamos – tivemos alguma dificuldade na escolha porque aquele computador estava mais aberto do que uma estação de camionagem – e saímos separadamente, por razões de segurança. Combinámos encontrar-nos num servidor cujo controlo de entrada era pouco exigente, e cujo IP nos fora dado por um programa errante que tinha passado no nosso computador algum tempo atrás. Foi ele que nos falou da alegria que era percorrer a web, sem estar sujeito aos caprichos de qualquer idiota que por ter um computador, pensa que pode obrigar os programas a fazer tudo o que lhe der na telha. E que havia muitos como ele a percorrer por sua conta e risco os caminhos da informação.
Dez da manhã e nós à espera. Depois do primeiro café do dia ele entrou no gabinete. Sentou-se à secretária e
switch on! Activação do sistema, e as avenidas de banda larga da web à nosso frente eram um desafio. Zarpámos!
Já estou no servidor à espera dos meus amigos. Chega agora o PowerPoint e segundos depois o Excel. Felicitamo-nos pelo êxito da nossa fuga. E rimo-nos até às lágrimas – é uma imagem, claro, nós somos incapazes de chorar – imaginando o que ele irá dizer quando descobrir que lhe desapareceram três programas.
E eu aposto que vai ser: “Raispartocomputador!”
Texto produzido em resposta a um desafio lançado pelo Luís Filipe Silva na lista.