sábado, 2 de dezembro de 2023

 

Hipnose, uma metáfora da vida humana

Começou a cerimónia promovida pela SIME - Sociedade Internacional de Medicina Esotérica - para a atribuição do Bisturi de Ouro ao Dr. Guillermo Gómez. O estatuto social da assistência era evidente pelas marcas dos carros estacionados no parque.

O que tornou o homenageado famoso foi o uso da hipnose para curar uma variedade de doenças, desde as puramente físicas até às mentais.

O Dr. Gomez tomou a palavra e começou a descrever, em voz lenta, em que consistia o seu trabalho. As luzes davam à sala o aspeto de uma aguarela de um pintor expressionista. A voz do médico era como um arpejo grave, ondulando no silêncio que envolvia o espaço.

O primeiro a sucumbir ao efeito da voz do orador foi um advogado na primeira fila. Ficou rígido, de olhos bem abertos, focado no infinito. Depois, outros membros da audiência seguiram-no, caindo em transe.

Um efeito inesperado ocorreu quando o orador, influenciado pela respiração calma e ritmada do público, entrou ele próprio em transe, ficando suspenso a meio de uma frase.

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Desde há quinze dias, há cerca de duzentos corpos rígidos no auditório do SIME. Alguns deles já cheiram mal.

domingo, 6 de novembro de 2022

O AFINADOR TEMPORAL


Já o seu pai, e o pai do seu pai, e os outros antepassados que não tinha conhecido se dedicavam à afinação temporal. Não se sabe quem descobriu que o motor do tempo eram os relógios, que para que o tempo fluísse era necessário um tique-taque ritmado. Na ausência de relógios tudo ficava estático, exactamente igual ao que fora no minuto anterior. Nas casas, em cada compartimento havia sempre um relógio, empurrando o tempo segundo a segundo.
Quando a comunidade queria honrar a memória de algum ilustre cidadão falecido, retirava todos os relógios da casa onde ele tinha vivido, e o interior da habitação ficava assim paralisado no tempo. Essas casas tornavam-se locais de veneração, e os visitantes tinham de deixar os relógios à entrada, para que o interior da casa se mantivesse inalterável pelos séculos vindouros. O afinador sentia o vazio destes locais com o tempo suspenso, como se fossem buracos numa trama bem tecida.
Anos atrás, um dos habitantes da cidade resolveu ir-se embora. Durante muito tempo ninguém teve notícias dele, até que um dia regressou. E contava histórias extraordinárias de locais onde o tempo fluía sem necessidade de relógios para o empurrar. Onde a entropia aumentava em todo o lado, e não apenas onde houvesse um relógio a provocar o seu crescimento.
De um modo geral,  a população reagiu com incredulidade ao que ele dizia. Sobretudo os mais velhos, que não se inibiam de exprimir a sua descrença e rejeição perante ideias tão absurdas quanto ofensivas. Estava programada uma reunião ordinária do Conselho da Cidade, e começou a circular, boca ao ouvido, que seria apresentada uma proposta para que aquele homem, fonte de ideias subversivas, fosse banido da cidade. Alguém lhe disse, e antes que isso acontecesse, ele pegou na sua reduzida bagagem e numa madrugada ainda escura, afastou-se pela estrada por onde tinha chegado.
A cidade regressou à sua calma habitual. Mesmo o desaparecimento, nos meses seguintes, de dois ou três jovens, apenas provocou alguns comentários em voz baixa. A versão mais comum dos acontecimentos era que teriam dado crédito àquelas notícias estapafúrdias e teriam ido à procura do local onde o tempo fluía livremente.
O afinador, indo de casa em casa na sua contínua tarefa de manutenção dos relógios, foi-se apercebendo de pequenas alterações no comportamento dos seus concidadãos.  Minúsculos detalhes que passariam despercebidos a alguém menos observador.
Era a dona de casa que parava, absorta, olhando em frente sem ver, até que o cheiro da sopa queimada a fazia despertar do seu torpor. Ou o moleiro que se esquecia de deitar o grão na tremonha e ficava, pensativo, a ver a mó rodar em vazio.
No dia da sua visita mensal ao relógio da torre, o afinador resolveu ir verificar com os seus próprios olhos as descrições que tinha ouvido. Nessa noite, com a cidade adormecida, fez uma mochila com alguma roupa, alimentos e a sua caixa de ferramentas, fechou a porta à chave e afastou-se pela estrada que saía da cidade.
Enquanto caminhava, ia pensando em como o tempo avançava nos campos cultivados. Talvez o ritmo dia/noite fosse suficiente para o empurrar, ou o barulho do vento nas folhas tivesse uma componente regular imersa no ruído aparentemente caótico.
Três dias levou a chegar à cidade mais próxima, bastante maior do que aquela de onde vinha. Percorreu as suas ruas com vagar, procurando indícios de mecanismos para empurrar o tempo, sem os encontrar. Havia relógios, por certo, mas parecia terem uma função passiva. Visitou um museu, local que percebeu ser destinado à preservação do passado, mas dentro do edifício o tempo fluía como em todo o lado.
Passou numa oficina de relojoeiro que tinha à porta um cartaz com os dizeres “Precisa-se aprendiz”. Entrou, conversou com o dono, e ajustou um salário (pequeno) e as restantes condições.
Alugou um quarto nas proximidades e no dia seguinte apresentou-se ao trabalho. O patrão logo se apercebeu que não tinha contratado um mero aprendiz, pelo que, a breve trecho, lhe aumentou o salário. A forma quase intuitiva como detectava avarias e as reparava rapidamente conquistaram a simpatia dos clientes.
Alguns anos passaram e o patrão, idoso e sem filhos, propôs-lhe sociedade. Tempos depois, com a morte deste, o afinador tornou-se ele próprio o proprietário do negócio. E pelas suas mãos continuaram a passar os relógios dos habitantes da cidade, para afinar ou reparar. Deixou de pensar nos relógios como máquinas de empurrar o tempo, e passou a vê-los simplesmente como objectos que mediam a passagem do tempo.
— xxx — 

Pensa por vezes na cidade onde nasceu e viveu uma parte da sua vida. Imagina que, pouco a pouco, à medida que os relógios forem parando por falta de manutenção, a cidade irá ficando cada vez mais parada no tempo. Imagina que dentro de alguns anos será descoberta por arqueólogos e o seu achamento dará grandes parangonas nos jornais, “Uma cidade onde o tempo não corre!”, o que atrairá os físicos e os filósofos, sempre interessados em discutir a natureza do tempo.
Mas isso serão problemas para a Academia, pensa o afinador. Ele só tem de se preocupar em limpar os mecanismos, lubrificar as rodas dentadas, eventualmente substituir uma peça já gasta nos relógios que lhe são confiados. E é isso que continuará a fazer enquanto o rio do tempo o continuar a transportar.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

 Eternal Life (Almost)

O meu conto com o título acima, publicado no Antipodean SF Issue 271, em Abril passado

https://webarchive.nla.gov.au/awa/20210420142451/http://pandora.nla.gov.au/pan/10063/20210421-0000/www.antisf.com.au/index.html,

foi um dos seleccionados pelo editor, Ion Newcombe, a quem agradeço, para ser incluido no AntipodeanSF Radio Show Aquilegia, que foi para o ar hoje, 17 de Outubro.
Podem ouvir aqui as vozes que viajam desde os antípodas. Do meu conto começam a falar ao minuto 23:55.


https://2nvr.org.au/show/antisf-radio-show/

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Singing and Voice

Mais um conto publicado no site Bewildering Stories:

http://www.bewilderingstories.com/issue881/singing_voice.html

Agradecimentos devidos a Don Webb e à restante tripulação. 

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Welcome to Our Hotel

Bewildering Stories acaba de publicar a minha estória com o título acima:

http://www.bewilderingstories.com/issue879/welcome_hotel.html

Agradecimentos a Don Webb e à restante equipa.

 


segunda-feira, 28 de setembro de 2020

EU,  AQUI  FECHADO

 

As portas

A porta principal está sempre fechada. Nos primeiros dias costumava tentar abri-la, mas já parei de fazer isso há muito tempo. É sólida, parece carvalho francês. A superfície é castanha, envernizada.
A outra porta dá acesso a uma minúscula casa de banho. O básico: lavatório, sanita e chuveiro. Um frasco com sabonete líquido preso à parede. Toalhas que de vez em quando são mudadas, não sei por quem. Não há nada para poder fazer a barba. Não há espelho.

As janelas

Não há. Tirando as portas e o postigo de que falarei adiante, não há qualquer abertura nas paredes. O compartimento é permanentemente iluminado com uma luz crua. Não há candeeiros, a luz difusa parece vir do tecto.

A mesa, a cadeira e o relógio

A mesa é minimalista. Um tampo de madeira e uns pés metálicos. Cadeira do mesmo estilo, o mobiliário parece ter vindo directamente de um catálogo do IKEA. Em cima da mesa, um relógio. De plástico preto, dígitos vermelhos, grandes, em fundo também preto. A caixa é completamente lisa, sem quaisquer botões.
Quando me trouxeram, a meio da noite, o relógio marcava 3:27. A precisão da memória para pormenores irrelevantes foi uma coisa que sempre me espantou. Com períodos de sono e vigília totalmente irregulares, e como não há janelas, neste momento não sei se quando o relógio marca 12:00 é meio-dia ou meia-noite. Questão aliás totalmente desprovida de interesse.

A cama

Estrutura metálica, simples, presa ao chão. Colchão de espuma, lençóis de algodão, um édredon. Almofada. Tudo branco.

O postigo

Ao lado da porta, a uma altura do chão de aproximadamente um metro e meio, há um postigo com cerca de 40 X 40 centímetros. Normalmente também não o consigo abrir, mas de vez em quando – parece ser aleatório, ou ainda não consegui descobrir o padrão – o relógio emite um som agudo e os dígitos piscam durante alguns segundos. Nessa altura sei que posso abrir o postigo e tenho acesso a um pequeno compartimento, onde está um prato de comida simples, mas nutritiva, um copo de água e uma colher. Levo tudo para a mesa, sento-me e como. Quando termino, coloco o prato, o copo e a colher no compartimento e fecho o postigo. Daí a algumas horas repete-se o ritual.

Passo a maior parte do tempo que estou acordado deitado na cama a olhar para o tecto. Ou sentado à mesa a olhar para o relógio. Às vezes fecho os olhos e tento descobrir o tempo que leva a passar um, ou dois, ou cinco minutos. É raro acertar. Umas vezes falho por defeito, outras por excesso.

Não tenho nada para ler, nem papel nem lápis para escrever. Relembro vezes sem conta a sequência de eventos que aqui me trouxe, na esperança de encontrar algum pequeno detalhe, qualquer indício que lance luz sobre tudo isto.

Dormia no meu apartamento quando acordei com a campainha da porta. Dois toques firmes, imperativos. Acendi a luz, calcei os chinelos e caminhei com passo incerto até à porta. Terceiro toque. “Estão com pressa!”, pensei.

Espreitei pelo óculo e vi três homens, de sobretudo preto e óculos escuros. Se não lhes abrisse a porta, de certeza que a arrombavam. Abri a porta.

O que estava à frente segurou um cartão uma fracção de segundo à frente do meu nariz, e disse:

- Vista-se rapidamente, tem de nos acompanhar.

Parecia uma cena tirada do “Men in Black”. Obedeci, o que é que eu podia fazer?

Meteram-me num carro, vendaram-me os olhos, e o carro andou durante o que me pareceu uma eternidade. Quando parou, fizeram-me sair, subir uns degraus, entrar num elevador, andar mais uns passos e chegámos aqui. Tiraram-me a venda, e enquanto eu olhava em volta, meio aturdido, sem dizer uma palavra saíram fechando a porta.

E é isto. Por vezes questiono-me: “e se tivesse resistido à detenção?” Mas contra aqueles três homens, a minha resistência teria sido fútil. Estaria na mesma aqui, eventualmente com algumas equimoses.

Tento imaginar as consequências do meu desaparecimento no mundo exterior.

A senhora que duas vezes por semana faz a limpeza do meu apartamento. Na primeira vez não deve ter estranhado nada, limpou, arrumou e saiu. Na segunda estranhou não haver nada fora do lugar, estar tudo tal qual tinha deixado. Como irá reagir quando no dia habitual de pagamento não encontrar em cima da mesa da cozinha o envelope com dinheiro que lá costuma estar? Irá queixar-se a alguém? Ou vai encolher os ombros e pensar “Má sorte a minha, vir trabalhar na casa de um aldrabão”?

O meu chefe no escritório onde trabalho, estranhará a minha primeira falta sem aviso, liga-me para o telemóvel e a chamada vai para a caixa do correio, no segundo dia fica mais preocupado e no fim do dia, imagino, telefona à polícia. Acho que há um prazo legal para uma pessoa ser dada como desaparecida. Provavelmente irão depois à minha casa, entrevistam os vizinhos, é um condomínio pacato, ninguém dá conta de nada, perguntam no quiosque dos jornais, no minimercado ao fundo da rua, no café da esquina, levam uma foto, conhece este senhor? Quando foi a última vez que o viu? Isto sou eu a imaginar, é o que vejo nos filmes. Mas pode acontecer que não façam nada disto, a polícia tem muita coisa que fazer, e o caso é simplesmente arquivado.

Na faculdade onde estudo à noite não tenho propriamente amigos. Há alguns colegas com quem costumo fazer os trabalhos de grupo, mas os trabalhos deste semestre já foram todos entregues, estamos (estávamos) a estudar para os exames, essencialmente trabalho individual, ninguém irá estranhar a minha ausência. Um eventual telefonema a pedir uns apontamentos emprestados que não seja atendido não é motivo para alarme. Liga-se a outro colega e resolve-se o problema.

Ponho-me a pensar se isto não fará parte de uma experiência sociológica, sobre as consequências do desaparecimento de um cidadão no tecido social mais próximo. Assim como o equivalente de atirar uma pedra à água e observar as ondas que se propagam a partir do ponto de impacto. Se não houver obstáculos na superfície os círculos concêntricos vão alargando com pouco amortecimento, é um fenómeno relativamente trivial, mas quando há rochas a aflorar na superfície líquida ou um canavial, as ondas que se propagam interferem com estes obstáculos, são reflectidas ou refractadas, ocorre uma dinâmica muito mais complexa.

Cada um de nós faz parte de uma teia invisível, mas nem por isso menos real, que nos liga aos familiares, aos amigos de infância, aos amigos mais recentes, à escola onde andámos, ao café que frequentamos, ao restaurante onde vamos às vezes jantar… De vez em quando há fios que se partem, outros novos que se incorporam na teia, uns mais grossos que resistem mais, outros finíssimos que desaparecem à mais leve brisa. Alguém disse que estamos vivos enquanto alguém se lembrar de nós. Mas quando desaparecer o centro desta teia, os fios agora soltos que nos ligavam aos outros poderão ainda chamar-se uma lembrança?

Ao mesmo tempo, isto é também uma experiência em psicologia. Modificações induzidas no comportamento de um espécime humano quando submetido a privação sensorial severa. Deve haver microfones embebidos nestas paredes, câmaras escondidas nestes painéis translúcidos que forram o tecto, a registar o mínimo som ou gesto, o mais pequeno enrugar da testa, todos os movimentos que faço, mesmo enquanto durmo. A forma como mastigo, como bebo água, como lavo os dentes… Um catálogo completo do comportamento de um homem em confinamento solitário…

Certamente haverá outros (provavelmente muitos mais) como eu, em quartos semelhantes, observados segundo os mesmos protocolos. Uma amostra estatística tem de ter uma certa dimensão para ser representativa da população. Cada um deles terá a sua teia de relações, maior ou menor consoante a sua “visibilidade” social. Essa teia será examinada cuidadosamente, aferindo o impacto do desaparecimento dessa pessoa. E até haverá, ocasionalmente, interacções entre algumas das teias.

Isto é provavelmente um projecto que se vem desenrolando há bastante tempo. Se assim não fosse, o desaparecimento de muita gente em simultâneo causaria alarme social. E uma operação desta dimensão tem de manter o tecido social inconsciente do que se está a passar. O observado não pode estar consciente dessa observação, se não o seu comportamento deixará de ser natural… Recordo agora, do tempo em que lia jornais (há quanto tempo?), pequenas notícias como “Desapareceu de casa de seus pais (…)”, “Desapareceu da casa de família (…)”, referentes a jovens, adultos, idosos, em geral acompanhadas de uma fotografia, que surgiam com alguma frequência nas páginas dos anúncios pessoais, eu em geral não ligava, a menos que a fotografia me lembrasse alguém conhecido… Mas já devia ter a ver com isto…

E chegará um dia em que o projecto terminará. Não por falta de financiamento, como às vezes acontece com os projectos mais comuns, mas porque já foi adquirido o conhecimento que era o seu objectivo.

E o que se faz às cobaias quando se encerra um projecto? Deixando de ter qualquer utilidade, a conclusão só pode ser uma: são descartadas!

Parece-me ouvir passos do lado de lá da porta. Apuro o ouvido. Sim, agora tenho a certeza! E o ruído de uma chave a entrar na fechadura. E vejo o manípulo a rodar…

A transferência

A porta abre-se e por ela entram os gorilas que me foram buscar a casa, séculos atrás. Ou os seus irmãos gémeos. Vestidos de preto, óculos escuros. Um deles entrega-me uma peça de roupa, dobrada.

“Vista isto, vamos sair.”

Desdobro a roupa. É um macacão de cor laranja. Visto-o. Reparo que as mangas têm uma banda que as torna justas nos pulsos.

Vendam-me os olhos, fazem-me entrar num carro, e circulamos de novo durante o que me pareceu quase uma hora. Paramos, saímos do carro, entramos nalgum tipo de edifício. Sinto que estou num local com mais gente à volta. Tiram-me a venda.

Um choque! Estou numa espécie de hangar, com algumas dezenas de outras pessoas, todas envergando macacões semelhantes. O meu primeiro pensamento foi: quem quer que sejam, estes tipos devem ter andado a ver doses massivas da Casa de Papel! À volta, encostados às paredes, vários dos gorilas, todos de igual, parecem ter todos saído de um ginásio de body building…

Dos altifalantes instalados junto ao tecto sai o som de um gong, como no fim do intervalo numa sessão de cinema. As conversas que se tinham iniciado a meia voz morrem.

“Olá a todos. Por esta altura já devem ter percebido que são participantes, se bem que involuntários, num estudo sobre confinamento. Terminou a Fase 1 desse estudo e vamos iniciar a Fase 2.

Devem seguir todas as indicações que vos forem dadas. A desobediência às ordens recebidas terá consequências que podem ser desagradáveis.

Vão ser separados em grupos de dez. Cada grupo viverá numa sala, onde será exposto a emissões de televisão. Os membros do grupo estarão em permanência sujeitos a observação, que será totalmente passiva, não interferindo com o vosso comportamento.

Enquanto durou a Fase 1 do estudo, muita coisa mudou no mundo exterior. Em breve se aperceberão dessas mudanças.

Vamos chamar grupos de dez nomes, que devem juntar-se no portão de saída, para ser conduzidos às salas respectivas.

Alberto… Francisco… Elisa… Henrique… Isabel…”

Quando alguém era chamado, piscava uma luz na banda do pulso esquerdo do macacão. Chegou a minha vez e com o resto do meu grupo, fomos dirigidos ao longo de um corredor, um dos gorilas à frente e outro atrás, para uma sala grande onde nos fizeram entrar, fechando depois a porta.

Numa metade da sala, um plasma gigante preso à parede e sofás posicionados de forma conveniente. Na outra metade uma mesa redonda, de tamanho adequado para o grupo se sentar à volta.

Olhando em redor da sala facilmente localizámos as câmaras que nos iriam manter sob observação contínua. Ninguém procurou os microfones que certamente estariam dissimulados nas paredes e tecto. Continuando a explorar o espaço, verificamos que a sala tem uma segunda porta que comunica com um dormitório com dez camas. Na parede do fundo do dormitório há duas casas de banho, para homens e mulheres.

O grupo

Alguém sugeriu que nos apresentássemos, sentámo-nos à volta da mesa e cada um de nós disse quem era e forneceu alguma informação sobre a sua história pessoal até ao ponto em que estávamos. Parecia uma sessão dos Alcoólicos Anónimos. Mas ficámos a saber que todos tinham tido uma experiência de confinamento solitário semelhante à minha.

O grupo constituía uma interessante amostra em termos de profissões. Dois administrativos, um engenheiro, um técnico de vendas, um empregado de mesa, uma caixa de supermercado, uma enfermeira, um mecânico de automóveis, dois estudantes. E de estados civis: Três solteiros (a viver sozinhos), mais dois solteiros (a viver com os pais), um divorciado, dois casados, dois a viver com namoradas.

Quando terminou a ronda de apresentações, já devíamos estar já a ser observados, porque ligaram a TV.

Às primeiras imagens ficámos todos em silêncio. O que o ecrã nos mostrava era a cidade de Lisboa, em pleno dia, deserta! A câmara percorria a Rua Augusta, o Terreiro do Paço, imagens ao longo do rio, zonas onde habitualmente se vêm filas de tuk-tuks e montes de turistas de mochila e garrafinha de água na mão, nada. Corte para o Porto. A Ponte D. Luís, zoom sobre a Ribeira, a zona dos Clérigos, a porta da livraria Lello, sem o enxame habitual de turistas e nativos. Quando (muito raramente) se via uma pessoa, caminhava apressadamente, como se quisesse fugir da rua quanto antes. Agarofobia, foi a palavra que me veio à cabeça, o medo dos espaços abertos.

O facto de a gravação não ter som acrescentava ainda mais estranheza às imagens.

Olhámo-nos sem saber o que dizer, quando a transmissão mudou, agora era o interior de um supermercado, respirámos de alívio, aqui pelo menos havia pessoas, mas quando a câmara se aproximou vimos que todos usavam uma máscara que lhes tapava a boca e o nariz. E havia algo estranho na forma como se movimentavam, parecendo que procuravam manter-se afastados uns dos outros.

Ou comentários dispararam no nosso grupo.

“Isto é de algum filme, só pode!”

“Olha, é o supermercado onde eu costumo ir. Mas nunca lá vi ninguém mascarado!”

A emissão mudou de novo. Agora era a imagem de uma rua com um grupo de mascarados a partir montras, a saquear lojas, a incendiar caixotes do lixo. À entrada em cena da polícia de choque, muitos dos manifestantes começaram a atirar tudo o que tinham à mão às forças da ordem, que ripostavam com gás lacrimogéneo, mas só com o aparecimento de uma viatura com um canhão de água a polícia conseguiu pôr os manifestantes em fuga.

A meio deste clip o Tiago exclamou: “Atenção, malta, isto não é em Portugal!”

Vários olharam para ele: “Como é que sabes?”

“Olhem para as tabuletas das lojas, pá! Acham que “Pâtisserie” ou “Orfèvres” são nomes portugueses?”

E a sessão continuou, sequência após sequência, algumas delas retiradas de filmes sobre catástrofes que um ou outro de nós conseguia identificar, outras que poderiam passar por legítimas reportagens, imagens reais de locais reais. O que não quer dizer que o fossem. Ao fim de algum tempo, entre preocupados e saturados, levantámo-nos dos sofás e fomos sentar-nos à mesa. Tomás começou a falar.

“Malta, primeiro uma pergunta: Quem é que está preocupado?”

Duas ou três mãos levantaram-se, hesitantes. A minha foi uma delas.

“E assustado?”

Mais quatro mãos que se levantaram.

“E quem é que está borrado de medo?”

Houve risos à volta da mesa quando duas mãos se ergueram, acompanhadas de dois sorrisos meio envergonhados.

“OK, eu tenho uma ideia para explicar estas cenas. Acho que fazemos parte de uma experiência sobre o medo.”

“Explica lá isso melhor.”

“Fazem-nos ver filmes preocupantes ou assustadores para nos fazerem ter medo. E o facto de não sabermos se são imagens reais ou falsas aumenta a ansiedade.”

“Mas para quê? Qual é o objectivo?”

“Bem, isso não sei… Mas acho que além de nos filmarem e gravarem o que dizemos, também estão a medir os nossos parâmetros vitais… Esta banda no nosso pulso esquerdo, onde acendiam as luzinhas quando nos chamaram, deve transmitir a pulsação, a tensão arterial e sei lá o quê mais! Assim quantificam as nossas reacções ao que nos está a ser mostrado. Isto é big data! Tem muito valor para os tipos do marketing!”

“Há meses vi um programa de televisão sobre isso”, acrescentei eu. “Alguns governos tentam instalar o medo nas pessoas para dessa forma conseguirem um controlo maior sobre elas. Vocês não se lembram da história do Trump com a construção do muro entre os Estados Unidos e o México? Criar o medo aos mexicanos para obter apoio para a construção do muro!”

O dia a dia

Em pouco tempo adaptámo-nos à rotina. Às horas das refeições traziam-nos embalagens com comida quente, como nas viagens de avião de longo curso, e faziam rolar uma mesa com dois jarros, café e chá. A um canto da sala havia em permanência um bebedouro com copos plásticos.

Quando terminávamos, o pessoal que nos trazia a comida levava a mesa de volta, recolhiam embalagens vazias e demais lixo e saíam. Nunca falavam connosco, nem nos respondiam quando nos dirigíamos a eles.

No terceiro ou quarto dia, saltou a tampa ao Tiago.

Tiago

Se fôssemos psicólogos, poderíamos ter-nos apercebido a tempo. Notámos que ele andava cada vez mais calado, já não falava tanto sobre o filho bebé que estava em casa com a mulher, mas nada nos preparou para a sua reacção explosiva. Ao jantar, atirou a comida ao chão e começou a dar murros e pontapés na porta, enquanto gritava “Deixem-me sair! Quero ir-me embora!”

Todas as nossas tentativas para o acalmar foram infrutíferas.

Alguns segundos depois a porta abriu-se, dois gorilas agarraram nele e levaram-no.

Isto foi há dois dias. Não tornámos a vê-lo nem tivemos qualquer notícia dele.

A fuga

As luzes do dormitório tinham sido apagadas, preparava-me para pegar no sono quando senti a presença de alguém junto à minha cama. Uma voz sussurrou:
“Não te mexas! Ouve com atenção!”

Era o Joaquim.

“Vou tentar sair daqui, e preciso de ajuda. Aquela abertura de ventilação na parede do fundo deve dar acesso a uma conduta que espero leve ao exterior, à entrada de ar fresco. Mas antes quero tapar a câmara que está ali ao canto, em cima. Preciso de subir aos teus ombros para chegar à câmara, e tapá-la com um retalho de pano, que cortei do meu lençol. Alinhas?”

Deslizei da cama e rastejámos os dois até ao canto do dormitório. Agachei-me, ele subiu para os meus ombros, levantei-me lentamente e alguns segundos depois ouvi-o murmurar: “Já está! Podes baixar-me.”

Dirigimo-nos para a abertura de ventilação. Continuávamos a falar em voz muito baixa, porque além da câmara agora neutralizada devia haver também microfones nas paredes.

“Precisamos de outra ajuda, porque depois de eu entrar na abertura é necessário tornar a aparafusar a grelha, para retardar o mais possível a descoberta da fuga.”

Acordámos o Nuno, e explicámos rapidamente a situação.

“E tens uma chave de parafusos?”, perguntei ao Joaquim.

“Fui cortando pedaços de alumínio das embalagens de comida, e fiz uma chave Philips, ficou um bocado tosca, mas deve servir.”

Repetimos o procedimento, com ele aos meus ombros. Desta vez demorou um pouco mais, porque ele precisou de desenroscar os quatro parafusos de fixação, e o trabalho foi feito praticamente às escuras. Quando terminou, Joaquim passou-nos a grelha e os parafusos, içou-se para dentro da abertura e desapareceu no interior da conduta.

Subi para os ombros do Nuno, coloquei de novo a grelha no local e aparafusei-a. Não ficou tão bem apertada como estava antes, mas o suficiente para não levantar suspeitas quando vista do chão. Desci e voltámos a deitar-nos, no máximo silêncio.

O que o Joaquim contou mais tarde

Quando se apanhou no terraço do edifício, Joaquim respirou fundo. Olhou para o céu estrelado, felizmente era lua nova, a última coisa de que precisava era um luar brilhante.

As prioridades de actuação estavam claras na sua cabeça: sair do terraço e ver-se livre do macacão laranja.

Depois de ter rastejado ao longo da conduta de ventilação, que como ele supunha ia dar ao terraço, conseguira sair da conduta arrancando a grelha, que estava presa por molas relativamente fracas. Uma pesquisa rápida no terraço levou-o à descoberta de um casinhoto usado pela manutenção para armazenar ferramentas e equipamentos, cuja porta não resistiu a um empurrão. Entre utensílios diversos, Joaquim descobriu uma corda, que levou até ao bordo do terraço. Prendeu uma ponta da corda a uma das chaminés, passou-a por cima do pequeno muro e desceu, os pés apoiados na parede, até chegar ao chão. Benditas as sessões de montanhismo nos escuteiros da sua adolescência!

O edifício tinha uma envolvente arborizada, que Joaquim percorreu rapidamente até chegar ao muro exterior. Uma das árvores tinha um ramo grosso que passava por cima do muro. Subiu à árvore, deslizou pelo ramo até passar o muro, pendurou-se do ramo e aterrou de pernas flectidas no passeio da rua.

Foi andando sempre pelas zonas mais sombrias da rua. Entrou num bairro de vivendas, moradias só com piso térreo, e viu algo que o encheu de alegria: uma dona de casa tinha deixado roupa num estendal. Saltar o muro do jardim, tirar uma camisa e uns jeans do arame, despir o macacão, vestir a roupa “emprestada” e dobrar o macacão foi feito num ápice.

Um camião do lixo apareceu no início da rua, a lâmpada avisadora pulsando azul e branco. Joaquim pegou no macacão dobrado e colocou-o num contentor do lixo. Ficou escondido até ver os funcionários da câmara recolher esse contentor e esvaziá-lo no camião. Assumindo que a banda do pulso esquerdo conteria um dispositivo de localização, eventuais perseguidores iriam seguir o camião. E se fossem lentos a reagir, iriam até à incineradora da ValorSul em S. João da Talha!

Agora vestido de forma muito menos chamativa, Joaquim orientou-se e iniciou a caminhada, de forma cautelosa, para onde tinha de ir.

O resgate

Era madrugada quando acordámos com uma explosão. Saltámos das camas e passámos para a sala. Sentámo-nos à volta da mesa, esperando o desenrolar dos acontecimentos. Alguns roíam as unhas.

Ouvimos ainda o que nos pareceram disparos, abafados pela distância e pelas portas fechadas. Até que a fechadura da porta da sala foi rebentada com um tiro.

Três homens vestidos de preto e com as caras cobertas por máscaras entraram de súbito, varrendo o espaço com os feixes de luz das lanternas acopladas às armas.

“Somos da polícia! Viemos libertar-vos! Mantenham-se tranquilos e quietos por mais algum tempo.”

Ouvíamos agora mais passos apressados no corredor.

“Aqui estão oito, todos bem!”, disse um dos polícias para alguém no exterior.

Dois deles saíram e na sala ficou apenas um. Víamos agora melhor, parecia ser das Operações Especiais e vestia um colete à prova de bala. Mantinha-se junto à porta, nunca deixando de empunhar a arma.

Ao fim do que nos pareceu uma eternidade, vieram comunicar ao polícia que nos guardava: “Ordens para os juntar a todos no hangar.”

Minutos depois estávamos todos no local onde nos tinham juntado à chegada.

“Peço a vossa atenção! Sou o superintendente Martins, do Grupo de Operações Especiais da PSP. Vocês têm estado prisioneiros de uma organização criminosa, cujos contornos se apresentam ainda um pouco difusos. Mas o importante é que conseguimos neutralizar a sua actividade e vocês estão livres.

Tenho a certeza de que gostariam de regressar rapidamente às vossas casas. Mas peço um pouco mais de paciência, porque vamos ter de vos identificar e tomar nota dos vossos depoimentos. Depois deste procedimento iremos levar-vos a casa. Existem limitações à movimentação no espaço público, devido ao facto de haver uma pandemia à solta. A situação de saúde pública está muito diferente da que era quando vocês foram raptados.”

Fez uma pausa e com um gesto chamou alguém que estava ao canto da sala. Quando a pessoa se aproximou vimos que era o Joaquim, já vestido com roupa normal.

“Esta operação cumpriu os seus objectivos, que era libertar-vos e capturar os responsáveis pelo vosso sequestro. Para o seu êxito foi fundamental a actuação deste vosso colega de cativeiro, que conseguiu fugir e alertar as forças policiais para o que se estava a passar aqui.”

O pessoal da nossa sala começou a bater palmas e em breve toda a gente aplaudia. O Joaquim sorria, timidamente.

“Mais um pormenor. Encontrámos o colega que foi retirado há dias de junto de vós, fechado num quarto com isolamento acústico. Aparenta estar bem, mas já seguiu numa ambulância para o hospital, para ser submetido a exames médicos.”

A conferência de imprensa

Uma semana mais tarde, o director da Polícia Judiciária convocou uma conferência de imprensa. Eu e o Joaquim fomos assistir. Disse-me que tinha sabido que o Tiago estava bem e já em casa. Ainda me parecia estranho ver uma sala com todos os ocupantes de máscara a tapar nariz e boca.

“Há alguns dias, na sequência da resposta a uma operação de sequestro que teve lugar na cidade de Lisboa, foi possível descobrir que esta operação fazia parte de outra muito mais vasta, de âmbito internacional. Em colaboração com a Europol e a Interpol foi possível uma actuação célere que levou à detenção de um número elevado de pessoas em vários países da Europa e das Américas do Norte e Sul, bem como ao resgate de um número considerável de pessoas sequestradas.

O objectivo desta rede era obter informação para aperfeiçoar os algoritmos de Inteligência Artificial que são usados para monitorizar, seguir e prever o comportamento dos cidadãos. Desta forma poderiam melhorar a fabricação de fake news e de um modo geral tornar mais eficientes todos os procedimentos de controlo dos cidadãos. Os beneficiários últimos desta actuação seriam grandes empresas multinacionais, interessadas em criar o consumidor perfeito, que compre sem se questionar, e organizações políticas de extrema-direita, a quem interessa injectar o medo nos cidadãos, que os leva a aceitar medidas de controlo social que normalmente não apoiariam. Juntem a isto enormes fluxos financeiros entrando e saindo de paraísos fiscais e ficarão com uma ideia do que está em jogo.

Os governos nacionais e as instituições internacionais parece terem levado a sério esta ameaça, e creio que assistiremos nos próximos tempos a medidas efectivas no sentido de controlar e combater com eficácia este tipo de actividades ilícitas e criminosas.

Estou à vossa disposição para responder a perguntas, pedindo desde já a vossa compreensão para o facto de que, como há ainda investigações em curso um pouco por todo o mundo, algumas perguntas poderão ficar sem resposta.

Eu e o Joaquim caminhámos lentamente em direcção à saída. Já na rua, virei-me para ele e perguntei-lhe:

“Ouve lá, como é que conseguiste que a polícia acreditasse em tudo o que lhes contaste e actuasse tão rapidamente?”

Com um sorriso irónico, respondeu-me:

“Bem, o facto de ser irmão de um Inspector da Judiciária ajudou um bocado!”

terça-feira, 14 de julho de 2020

A PERSISTÊNCIA DAS GRALHAS

Para o Rogério Ribeiro, que sabe a razão deste conto 


A revisão do capítulo 3 tinha levado mais tempo do que o esperado (’como tudo na vida’, pensou Alfredo. ‘Bem, nem tudo’, respondeu mentalmente a si próprio, num diálogo interior em que frequentemente se comprazia. ‘Só as coisas chatas, as agradáveis até levam menos tempo’...)

Antes de passar ao capítulo seguinte, resolveu dar uma última leitura ao que tinha terminado. E na terceira página, o seu olhar treinado detectou uma que tinha a certeza de ter corrigido: a palavra “inçerteza” (sim, há escritores que cometem erros “de palmatória”). Como diabo a gralha tinha tornado a aparecer?

Corrigiu e continuou a leitura. Até ao fim do capítulo descobriu mais duas gralhas, que corrigiu, e que novamente estava seguro de ter corrigido na revisão.

Imprimiu o capítulo e guardou as folhas impressas numa gaveta. E abriu o ficheiro com o capítulo 4, para continuar a trabalhar. Cerca de duas horas mais tarde tinha terminado o trabalho. Mas antes de ir dar uma volta para espairecer, obedecendo a uma leve sensação de desconforto, abriu de novo o ficheiro do capítulo 3, tirou as folhas impressas da gaveta e começou a comparar o que tinha no écran e no papel, página a página, palavra a palavra. E quando chegou à terceira página a sua respiração ficou suspensa: a palavra “inçerteza” estava de novo no ficheiro. Tal como as outras duas gralhas mais à frente! Fechou o computador e pegou no telemóvel.

Deixou tocar durante algum tempo e desligou. ‘Deve ter o telemóvel sem som, é o costume’. Ele e o Zé Luís tinham sido colegas no secundário. O amigo sempre tinha sido um entusiasta dos computadores, tinha optado por Ciências e Tecnologias e seguido para Engenharia Informática. Alfredo, mais interessado nas letras, escolhera Línguas e Humanidades e terminara com um mestrado em Tradução e Serviços Linguísticos. Ainda se encontravam com alguma frequência, em particular quando havia algum evento sobre ficção especulativa, de que ambos eram ávidos consumidores.

‘Preciso falar contigo! Podemos almoçar hoje?’

Mensagem curta e concisa, premiu Send e ligou a televisão para ver mais um episódio de Devs. Ainda não tinha acabado o genérico, chegou a resposta.

‘Almoçar não dá, já tenho uma reunião marcada. Uma bejeca ao fim da tarde?’

‘OK’

E Alfredo voltou ao visionamento da série.



--- xxx ---


Pouco passava das seis e a cervejaria enchia lentamente. Alfredo entrou, pediu uma imperial ao balcão e sentou-se numa mesa com vista para a porta. Minutos depois chegou Zé Luís.

“Viva! Deixa-me ir buscar combustível e já falamos”. E desandou em direcção ao balcão. Voltou daí a pouco com uma cerveja na mão.

“OK, então o que é que se passa?”

Alfredo explicou-lhe detalhadamente o que se tinha passado com a revisão do texto. Quando terminou, o amigo ficou calado alguns segundos.

“Tenho de olhar para as entranhas do teu computador, mas só posso ir a tua casa depois de amanhã. Mas, entretanto, podemos ir fazendo alguma coisa.” E enquanto dizia isto, foi tirando o portátil da maleta onde o trazia, abriu-o e ligou-o, de uma bolsa no interior da maleta tirou uma pen, e copiou para lá qualquer coisa. Entregou a pen ao amigo, desligou o portátil e arrumou tudo.

“Quando chegares a casa, instalas o programa que vai aqui na pen. Este programa vai monitorizar tudo o que entra e sai do teu computador. Podes continuar a trabalhar, porque se os gajos te quisessem lixar todo o trabalho já o tinham feito. Quando acabares um bloco de trabalho guarda uma cópia numa pen ou num disco externo, mas desligas esse suporte assim que acabares de copiar. Depois de amanhã à noite passo na tua casa e aí já devemos ter alguma coisa mais objectiva para trabalhar.”

E ditas estas palavras acabou de beber a imperial, apertou a mão a Alfredo e zarpou.

No dia seguinte, Alfredo enviou uma mensagem a Zé Luís.

‘A que horas estás a pensar chegar amanhã? Vou encomendar pizza.’

A resposta foi sucinta: ‘8’.


--- xxx ---


À hora combinada, Zé Luís estava a tocar à campainha. Alfredo fê-lo entrar para a cozinha e abriu as caixas de pizza que o estafeta da Glovo tinha trazido dez minutos antes. Tirou duas cervejas do frigorífico e sentaram-se a comer. Quando terminaram, Alfredo disse:

“Deixa isso, que eu depois arrumo. Vamos para a sala e enquanto começas, vou fazer dois cafés.”

Ligou a máquina, pegou em duas cápsulas, e minutos depois levava os cafés para a sala, onde Zé Luís já estava a trabalhar.

Ainda tentou acompanhar o que ele estava a fazer, mas só via linhas de código a deslizar pelo écran, enquanto os dedos de Zé Luís saltavam no teclado. Não lhe disse nada, porque sabia que os informáticos quando engrenam num trabalho não gostam de ser interrompidos. Pegou no último livro que tinha começado e sentou-se no sofá a ler. Passada quase uma hora, Zé Luís levantou-se da cadeira e espreguiçou-se.

“OK, já tapei os ‘buracos’ por onde eles entraram. A partir de agora já não vais ter mais brincadeiras com as tuas revisões. Agora queria ver se percebo quem estes tipos são. Mas para isso vou ter de usar o meu computador, que está artilhado com umas ferramentas que o teu não tem.”

Desligou o computador de Alfredo e abriu o seu. Novamente durante largo tempo o único som na sala era o martelar do teclado. Ao fim de algum tempo Zé Luís levantou-se e soltou um “Uauuu!”

“Não vais acreditar donde isto veio!”

Perante o olhar interrogativo de Alfredo, continuou:

“Já ouviste falar em Deep web ou Dark web? Não são a mesma coisa, mas muita gente pensa que sim. Não interessa agora os pormenores, mas é uma parte da web que não é acessível através dos motores de busca. Uma espécie de catacumbas numa cidade onde a generalidade das pessoas anda por ruas e estradas. Encontra-se lá de tudo! E com um bocado de sorte e de pensamento lateral, e com as pegadas que eles deixaram no teu computador, consegui chegar ao grupo responsável pelo que te aconteceu. E ouve o nome: ‘Exército Divino contra a Perfeição Humana’.

Alfredo fez uma cara de incredulidade que levou o amigo a soltar uma gargalhada. Este continuou:

“O racional é muito simples. Primeiro: Só Deus é perfeito. Segundo: Tentar fazer algo perfeito é pretender ser igual a Deus, o que é, sem mais considerações, uma atitude blasfema. Terceiro: Os membros do Exército Divino têm como missão introduzir imperfeição nas criações humanas.”

“Nota que não se propõem destruir o que fizeste. Apenas introduzir o grãozinho de imperfeição que faz com que a tua criação nunca possa aspirar à perfeição divina.”

“E o que vais fazer?”

“A eles? Nada, deixá-los em paz. Estes ainda são dos tipos mais inofensivos que podes encontrar na Dark net. O teu problema está resolvido. A partir de agora, gralhas num texto revisto por ti só as que tu próprio deixares passar.”

Deu outra gargalhada e acrescentou: “Vamos dar uma volta para desmoer a pizza!”

domingo, 7 de junho de 2020


Coisas do Cérebro

(Com uma Grã-referência à magnificência de João Galamba de Almeida)

Era um leitor omnívoro. Lia tudo o que lhe caía nas mãos. Romance, poesia, biografia, viagens, ensaio, teatro, correspondência… Mas também lia jornais, revistas, panfletos publicitários, guias turísticos, boletins da Junta de Freguesia…
E, perguntará o leitor, a que se devia essa obsessão compulsiva pela leitura? Porque muito cedo tinha descoberto que a sua esperança de vida aumentava na proporção daquilo que lia. Lendo, ia conseguindo afastar o desenlace final.
Mas um dia descobriu que tinha esquecido completamente o primeiro livro que tinha lido. E depois outro, e outro…
E pouco a pouco ganhou a certeza de que, por cada novo livro que lia, havia outro livro que esquecia.
E assim não ficou na história por conseguir adiar a Morte através da leitura, facto que continua a ser universalmente ignorado, mas por ser o primeiro caso documentado de que a capacidade do cérebro humano é limitada. E quando enche, para entrar mais qualquer coisa, alguma outra coisa tem de sair.